Consolação
Já entrando no gabinete, detive-me, porém, à porta,
comovido com aquele culto suave vendo-a escolher no ramo que, todas as manhã,
lhe é levado pelo florista, as mais belas rosas, de preferência os botões com que
ornamenta o retrato do filho amado, posto entre o grande tinteiro de bronze e a
caixa dos cigarros.
Deixei-me estar quieto como se assistisse a uma
cerimônia religiosa. E outra coisa não era aquele ofício de saudade, diante da
mesa que fora o altar em que ele estivera exposto toda uma noite, entre as
colunas flamejantes dos ciriais, com um crucifixo sobre o peito, e cercado de
flores.
Com que enlevo ela colocava uma a uma no vaso, as
rosas escolhidas!
Inclinava a cabeça para contemplá-las, a ver se estavam
bem. Endireitava uma, chegava outra mais ao centro, punha os botões às bordas
para que desabrochassem livremente, sem empeço.
Por fim, tomou o retrato delicadamente, a mãos ambas,
chegou-o aos lábios e reteve-o, muito tempo num beijo. Depô-lo no lugar próprio
e pôs-se a falar baixinho.
De repente, em ímpeto de desespero, ajoelhando-se, com
os braços estendidos sobre a mesa, de mãos postas, suplicava... O quê? E, por
entre lágrimas, agitada por soluços, a voz saía-lhe humilde, entrecortada e
aflita.
Que diria a pobre mãe naquela ascese dolorosa?
Adiantei-me pé ante pé. O alto tapete abafava-me o
rumor dos passos e assim, sem ser sentido, pude chegar até junto dela, e
ouvi-la.
Rezava. A Deus? Não, ao espírito do filho. Rezava
diante da imagem da sua grande, infinita saudade, pedindo-lhe o milagre da sua
presença, um aceno, que fosse, do Além, para consolo da sua alma vazia.
Senti com ela, e, docemente, para não assustá-la,
chamei-a.
Apesar da meiguice com que a tirei do arroubo,
sobressaltou-se, estremecendo assustada. Ajudei-a a levantar-se, passei-lhe um
braço pela cinta e, beijando-a na fronte, disse-lhe compadecido:
— Falavas-lhe? — Ela fitou-me com os olhos rasos de
água. — Também eu converso com ele, disse-lhe — não como tu, dirigindo-me ao
seu retrato — converso com ele dentro de mim: são as nossas almas que se falam.
Tu queres o absurdo.
— Como absurdo?
— Sim. Queres que uma sombra te ouça; que o nada te
responda. É absurdo. O retrato é um simples cartão de visita, lembra-nos a sua
passagem, só isto; ele, ele mesmo, paira em volta de nós como a luz,
envolve-nos como o ambiente, penetra-nos como o ar que respiramos.
Eu sinto-o. Juro-te que o sinto e o que talvez te
pareça indiferença, é tranquilidade que tenho pela certeza em que estou firmado
de que o não perdi de mim.
— Também eu o sinto — suspirou ela; — mas quisera
vê-lo, ainda que fosse por um segundo. Que ele me aparecesse em um relâmpago e
eu não sofreria mais. Por que não havemos nós de ver os nossos mortos? Quando
conseguiremos passar da sombra para a claridade do Além! Deus devia ser bom
para as mães...
— Deus é bom.
— Bom!... — disse meneando tristemente com a cabeça. —
Bom... Bom e nega-nos o pequenino consolo que lhe pedimos com tantas lágrimas.
Não mo quer mostrar durante a vigília, mostre-mo durante o sono, num sonho.
Quando dormimos desprendemo-nos do corpo, a alma faz
como um pássaro que se ala do ramo onde tem o ninho. Pois bem, no sono, por que
não mo deixa ver enquanto durmo? Seria um sonho, um sonho feliz. Nem isso. Por
quê?
— Por quê? Ai! de nós, aí! da vida se conseguíssemos
desvendar o segredo da Morte. O azul é o azul da alma. Quando viajamos que
fazemos nós no largo oceano — atravessamos a cortina diáfana, vencendo-a,
deixando-a atrás? Não, porque ela sempre se nos opõe, ao longe. E por que a
temos diante dos olhos sustamos a marcha? Não: prosseguimos com a certeza de
topar em porto onde tomemos pé.
Ninguém se deixa ficar no oceano, à matroca — procura
um rumo, norteia-se, toma um destino, rompe o azul. É preciso ter coragem e
bússola para andar nos mares; é preciso ter crença e fé para levar a alma além
da dúvida. Desesperos são temporais e é justamente nos temporais que se
conhecem os mareantes.
Se, no furor da tormenta, com os ventos desencadeados
e o mar grosso, a tripulação descorçoa e abandona o governo do navio, não
serão, decerto, as vagas que o hão de salvar do soçobro. É preciso ter fé, e tu
duvidas.
— Eu quisera ver, ter uma prova, por menor que fosse.
— Não as tens porque as buscas materialmente. No
escuro não poderás achar o perdido; procura com luz e a Luz, para pesquisas
tais, e a fé. Espera, continua a esperar, espera sempre e um dia, talvez, quem
sabe!...
Como pensas? Concentrando-te, isto é: encerrando-te em
ti mesma. É em nos mesmos que encontramos os nossos mortos. Eles vêm a nos,
como a luz; nós não podemos ir a eles.
Achas que Deus não é bom porque cerra, em impenetrável
sigilo, o segredo da Morte. Engano teu. Que seria a vida, senão horrenda
tortura, se tal mistério não existisse? Fosse o Além o Nada, o inferno ou o
Paraíso... Se fosse o Nada, todos viveriam a lamentar o perecimento, a
destruição definitiva; se fosse o inferno, que dor saberem todos que os
aguardava o tormento; se fosse o Paraíso, não haveria felicidade na terra
porque, comparando a via contingente e sofredora com a delícia da existência
paradisíaca, tudo fariam para desertar este mundo precário, com ânsia do outro,
de eternidade feliz. E os berços, que se aureolam de sorrisos, cercar-se-iam de
lamentações, porque viver seria tanto como penar.
Achas que Deus não é bom, porque não consente que o
vejas. O nosso egoísmo é que nos agrava o sofrimento. Tu, em verdade, não
choras o filho que deixou de viver, que está livre de todos os males que nos
torturam: choras o filho que perdeste, o bem que te foi levado, o amor que te
falta. Choras sobre ti mesma e julgas chorar sobre o seu túmulo.
— E isto basta-te? consola-te?
— Sim, basta-me, consola-me como me basta, para
consolação de tudo quanto tenho sofrido, a certeza, em que estou, de que Deus
existe. E se tu invocas o espírito do morto é porque estás certas de que ele
não desapareceu com a morte, não se desfez como o corpo e agora, mais do que
quando convivia conosco, triunfal, puro e eterno, tão puro como o teu amor, em
que ele se encarnou, e eterno, tão puro como a Essência a que regressou.
— E achas que faço mal em trazê-lo assim enfeitado de
flores?
— Mal? Por que mal? É um culto e todos os cultos,
quando neles há sentimento, como nesse em que pões toda a alma, são belos e
dignos de respeito.
Falo-te assim para que não chores tanto. Flores são
carinhos; lágrimas são tormentos e, se ainda o chamas de filho e o queres
venturoso, por que o hás de perturbar, entristecendo-o com tantas lágrimas?
Flores, sim quantas queiras. O que a morte podia
levar, levou. O que nos resta ficará conosco eternamente, a saudade, e chorá-lo
é devolver ao coração as lágrimas que dele tiramos.
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