Chico
Buarque atribulações de um romancista
“Leite derramado”
(Editora Schwarcz - 2009)
(Editora Schwarcz - 2009)
“Um
homem muito velho está num leito de hospital. Membro de uma
tradicional família brasileira, ele desfia, num monólogo dirigido à filha,
às enfermeiras e a quem quiser ouvir, a história de sua linhagem desde os
ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da
Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual. Uma
saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica, tendo como
pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos. A saga
familiar marcada pela decadência é um gênero consagrado no
romance ocidental moderno. A primeira originalidade deste livro, com
relação ao gênero, é sua brevidade. As sagas familiares são geralmente espraiadas
em vários volumes; aqui, ela se concentra em duzentas páginas. Outra
originalidade é sua estrutura narrativa. A ordem lógica e cronológica
habitual do gênero é embaralhada, por se tratar de uma memória
desfalecente, repetitiva mas contraditória, obsessiva mas esburacada. O
texto é construído de maneira primorosa, no plano narrativo como no plano
do estilo. A fala desarticulada do ancião, ao mesmo tempo
que preenche uma função de verossimilhança, cria dúvidas e
suspenses que prendem o leitor. O discurso da personagem parece espontâneo,
mas o escritor domina com mão firme as associações livres, as
falsidades e os não-ditos, de modo que o leitor vai
reconstruindo os acontecimentos e pode ler nas entrelinhas,
partilhando a ironia do autor, verdades que a personagem não consegue enfrentar. Em
suas leves variantes, as lembranças obsessivas revelam sutilezas
ideológicas e psíquicas. Tudo, neste texto, é conciso e preciso.
Nenhum elemento é supérfluo. Percorre todo o relato, como um baixo
contínuo, a paixão mal vivida e mal compreendida do narrador por uma
mulher. Os traços e gestos de Matilde, ao mesmo tempo que determinam a
paixão do marido, ocasionam a infelicidade de ambos. Embora vista de
forma indireta e em breves flashes, Matilde se torna, também para o
leitor, inesquecível. Outras figuras, fixadas a partir de
mínimos traços, também se sustentam como personagens consistentes. É
espantoso como tantas personagens conseguem vida própria em tão pouco
espaço textual. Leite derramado é obra de um escritor em plena posse de
seu talento e de sua linguagem.” (Leyla
Perrone-Moisés)
Essa
é a Orelha do livro de Chico Buarque citado acima. Quando a li da primeira vez,
ao correr do texto, adveio-me o espanto. Melhor dizendo: o susto. Depois reli
outras vez e mais outra e a cada vez o mesmo demônio respirava a meu lado,
impedindo-me, inclusive, de iniciar a leitura do livro. Fiquei entre
estarrecido e emparedado. Mas qual a razão de tanto assombro?
Já faz algum tempo que a formação estética do romance contemporâneo brasileiro mexe com meus nervos. Sinto que existe alguma coisa de enganadora, não no texto em si, mas, principalmente, na feitura gráfica, que é o que encerra e dá realmente o ponto final na obra do escritor. No caso dessa Orelha – que refaz a obra num resumo – há muitas coisas estranhas a considerar. Desfiemo-las, pois, na sua própria desordem...
Já faz algum tempo que a formação estética do romance contemporâneo brasileiro mexe com meus nervos. Sinto que existe alguma coisa de enganadora, não no texto em si, mas, principalmente, na feitura gráfica, que é o que encerra e dá realmente o ponto final na obra do escritor. No caso dessa Orelha – que refaz a obra num resumo – há muitas coisas estranhas a considerar. Desfiemo-las, pois, na sua própria desordem...
Relembrando:
“A primeira originalidade deste livro, com relação ao gênero, é sua brevidade.
As sagas familiares são geralmente espraiadas em vários volumes; aqui, ela se
concentra em duzentas páginas.”
Aliás,
duzentas não. O livro conta 195 páginas, mas como a numeração de cada capítulo
ocupa uma página inteira – são 23 capítulos – temos, enxutas, 172 páginas de
texto, no qual se pretende contar “a história de [uma] linhagem desde os
ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador da
Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual”.
Garotão, aliás, cuja trajetória final pode ocupar as 172 páginas de outro
romancezinho, quem sabe, lá pra frente.
Aqui
também tudo me espanta, porque não sei a quantas se anda ensinando literatura
nas universidades. Para mim, que só aprendi até o científico, a literatura
ficcional em prosa era representada – principalmente – por três gêneros: conto,
novela e romance.
Afinal,
não era o conto a estória curta? A novela não é algo assim como um gênero
intermediário entre o conto e o romance? E o romance não é um gênero em que a
ação dramática forma uma saga?
É
claro que todas as determinantes ficam submetidas à uma ordem estética, que é
superior. Mas é claro que me enganei! Apesar de todas essas definições ainda
constarem em currículos, apostilas e teses espalhadas pela internet, vejo que
também a definição ultramoderna dos gêneros literários anda se modificando.
Vejamos
o que diz o professor Manuel Pereira da Silva, catedrático pela Universidade de
Coimbra e mestrado pela USP, ambos em Literatura Comparada:
“A
primeira coisa que devemos tirar da cabeça é a história de que a diferença
entre esses três gêneros é o tamanho: o conto é curto, a novela é média e o
romance é longo. Nada disso é verdadeiro. Existem novelas maiores que romances
e contos maiores que novelas.”
E
existem romances menores do que contos?... Mas existe, sim, sem dúvida! Agora,
pronto! Eis-me de novo em dia com a estética literária. E também me lembrei que
realmente outro dia li um conto de 600 páginas. Sim senhor! Foi o livro “Os
catadores de conchas” do escritor britânico Rosamunde Pilcher, história que
caberia num conto. O resto das 500 páginas além do que seria um conto é
recheio, moldura, enfeite, jardim, flores, plantas, paisagem, memória,
dramazinhos localizados, tudo, enfim, que não cabe num conto. A história em si
é pequetitinha, pequetitinha. Mas é romance...
Donde
se deduz que também romance é, não só aquilo que chamamos de romance, mas
aquilo que escrevemos como um romance. Brincadeiras à parte, continuemos,
curiosos, degustando e apreciando as definições do ilustre professor a respeito
dos gêneros literários.
O
que é Conto?
“O
Conto contém apenas um único drama, um só conflito chamado de "célula
dramática". Uma célula dramática contém uma só ação, uma só história. Um
conto é um relâmpago na vida dos personagens. O espaço da ação é restrito. A
ação não muda de lugar. O objetivo do conto é proporcionar uma impressão única
no leitor.”
O
que é Novela?
“Uma
novela nada mais é que uma sucessão de células dramáticas, como se fossem
arrumadas em uma linha reta infinita. Diante dessa estrutura é possível
acrescentar mais uma célula dramática, mesmo depois de terminada a novela.” (*)
O
que é Romance?
“Com
esse conceito, podemos compreender a diferença entre Novela e Romance. A
diferença está na forma como as células são dispostas. No Romance elas estão
concatenadas formando um círculo, uma estrutura fechada. Uma sucessão lógica
com um encerramento definitivo. Seria impossível acrescentar mais uma célula
dramática, depois de terminado um romance.” (**)
Baseado
nessa informação moderníssima nós ficamos sem saber o que é o livro de Chico
Buarque “Leite derramado”, simplesmente porque ele se enquadra nos três gêneros
citados pelo emérito educador:
É
conto, porque é uma obra de uma só “célula” dramática, contém apenas um único
drama, um só conflito. O espaço da ação é restrito. A ação não muda de lugar...
É
novela, porque, antes de terminá-lo, o autor achou por bem violar a regra e,
nas entrelinhas, sem que ninguém percebesse (mas com clara advertência da
autora da orelha), achou por bem introduzir uma sucessão de novas células.
É
romance, não só porque na ficha técnica está escrito “Romance brasileiro”, mas
também porque “as células estão (...) concatenadas, formando um círculo. Uma
estrutura fechada. Uma sucessão lógica com um encerramento definitivo.” Bem, o
encerramento não está assim tão definitivo porque já dei a dica pro Chico
Buarque contar a saga do último membro da família, o garotão que vive em
Copacabana cheirando cocaína adoidado.
Agora,
dando um salto para frente, submeto a parte da verossimilhança, que parece
parte da estética do romance, a um juízo de dúvidas. Primeiro porque a
construção da saga de duzentos anos não se concretizou. Não foi contada uma
história, “uma saga familiar caracterizada pela decadência social e econômica,
tendo como pano de fundo a história do Brasil dos últimos dois séculos.”
Apesar
de todo talento do escritor, trata-se de uma impossibilidade prática e técnica
narrar uma saga sem: 1) concatenação, 2) cronologia e 3) verossimilhança.
Ademais há de se considerar aquilo que, na narrativa, parece inconcebível: que
“um homem muito velho” – e por isso já com a “memória desfalecente” – possa
desfiar num monólogo de cento e tantas páginas “a história de sua linhagem
desde os ancestrais portugueses, passando por um barão do Império, um senador
da Primeira República, até o tataraneto, garotão do Rio de Janeiro atual.”
Chico
Buarque não foi o primeiro nem será o último autor a cair nessa esparrela.
Temos romances de escritores famosos em que a narrativa memorial se perde em
centenas de páginas, como se o dom do pensamento se expandisse em neurônios
tantos e tais numa cronologia sem fim e a perder de vista. Outros já cometeram
narrativas em forma de carta que entre o Prezado Senhor e o Atenciosamente se
recheiam centenas de páginas com minudências tantas que só mesmo o leitor não
se dá conta que se trata de uma missiva apenas no nome... Mas, afinal, o que
seria do artista e da obra de arte se a sua criatividade e a sua alma ficassem
restritas a conceitos tão belos quanto idiotas?,
Ora,
dirão que falei, falei, falei, mas não dei minha opinião sobre o romance (vá
lá!) de Chico Buarque. É verdade. Apesar de criticar o que leio, não sou
propriamente um Crítico Literário. Além do mais, Chico Buarque não carece de
crítica literária: como Paulo Coelho, ele tem uma plêiade de admiradores que
compra e deglute qualquer coisa que ele expila pelos sete orifícios tântricos.
Para vender o seu trabalho, musical ou literário, Chico Buarque não precisa de
adjutório e charlatanice de críticos engrolados que sobrevivem puxando saco de
editores e autores. Como não precisa, não dá, portanto, a mínima se gostei ou
não gostei.
(*) Então, durante todo esse tempo, nós, os leitores, fomos enganados com as sucessivas “continuações” de romances célebres, como o famoso “E o vento levou”, de Margaret Mitchell, continuado por Donald McCraig, com "Rhett Butler's People" e por Alexandra Ripley, com “Scarlett”. Na parte nacional temos as várias intervenções feitas na obra de Machado de Assis por escritores brasileiros.
---Imagem:Revista Manchete, nº 764, 10 de dezembro de 1966.
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