Casas de Cômodos
Há no Rio de Janeiro, entre os
que não trabalham e conseguem sem base pecuniária fazer pecúlio e até
enriquecer, um tipo digno de estudo – é o “dono de casa de cômodos”; mais
curioso e mais completo no gênero que o “dono de casa de jogo”, pois este ao
menos representa o capital da sua banca, suscetível de ir à glória, ao passo
que o outro nenhum capital representa, nem arrisca, ficando, além de tudo,
isento da pecha de mal procedido.
Quase sempre forasteiro,
exercia antes um ofício na pátria que deixou para vir tentar fortuna no Brasil;
mas percebendo que aqui a especulação velhaca produz muito mais do que o
trabalho honesto, tratou logo de esconder as ferramentas do ofício e de
fariscar os meios de, sem nada fazer, fazer dinheiro. Foi a um patrício seu,
estabelecido no comércio, pediu e dele obteve uma carta de fiança, alugou um
vasto casarão de dois ou três andares, meteu-se lá dentro, pregou escritos em
todas as janelas; e agora o verás!
Como na Capital Federal há
mais quem habite do que onde habitar, começou logo a entrar-lhe pela casa, à
procura de cômodos, uma interminável procissão de desamparados da sorte e de
magros lutadores pela vida, que lhe foram enchendo surdamente, do primeiro ao
último, os numerosos quartos. Mais houvesse, e não faltariam para os ocupar
estudantes pobres, carteiros e praticantes do correio, repórteres de jornais
efêmeros, moços de botequim, operários de todas as profissões, comparsas e
figurantes de teatro, pianistas de contrato por noite, cantores de igreja,
costureiras sem oficina, cigarreiros sem fábrica, barbeiros sem loja,
tipógrafos, guarda-freios, limpa- trilhos, bandeiras de bondes, enfim toda essa
gente, para quem se inventaram os postos mais ingratos na luta pela vida, os
mais precários e os mais arriscados; essa gente que em tempo de paz morre de
fome, e em tempo de guerra dá de comer com a própria carne às bocas de fogo das
baterias inimigas.
Mas, por entre a aflita
farandolagem dos ganhadores de pão para a boca, surge sempre na casa de cômodos
um tipo que é o desespero do locador e o tormento dos locatários. Refiro-me ao
poeta boêmio.
O poeta boêmio é para o
alugador de cômodos o osso do seu ofício. Sem emprego, sem rendimentos de
nenhuma espécie, sem mesada e sem mobília, carregado de sonhos, que são os
filhos que lhe deu Quimera, sua amante, o poeta vive da desgraça e da glória de
ser poeta, atravessando indiferentemente todos os andares da miséria, olhos
fitos no ideal, aos encontrões com os miseráveis que sobem e com os miseráveis
que descem as longas escadarias do negro e frio castelo. Seu pé quase descalça
não respeita o que topa, nem escolhe o terreno que pisa, e vai mundo afora,
kneippeando pelos simétricos canteiros da burguesia indignada e pelos relvosos
coradouros das lavadeiras em fúria.
Esse é o anjo mau da casa, o
terror dos vizinhos, o malquerido de todos os locatários. Dorme enquanto os
outros trabalham e durante a noite conversa com as estrelas, declamando em voz
alta coisas de amor e de fantasia que, ali, só ele e elas compreendem. Esse
nunca paga. Mas que importa o calote de um boêmio, cujo quarto era um pouco
maior que uma sepultura, se os outros inquilinos aí ficam para ir despejando,
todos os meses, na funda algibeira do malandro, os trinta, os quarenta, os cinquenta
e os cem mil-réis; e se com esse dinheiro pode o alugador de cômodos pagar o
aluguel do prédio, e comer, e beber, e gozar, pondo ainda de parte o seu
pecúlio em que já se abotoa a futura riqueza e talvez a futura comenda?
E assim vai vivendo o esperto
forasteiro à barba longa, perna alçada e barriga farta, enquanto os outros trabalham
para ele.
Lá um belo dia de fim de mês,
um dos estudantes da casa, tendo devorado a mesada, atira a canastra pela
janela e foge em seguida, abandonando a estreita cama de ferro, a mesinha e o
lavatório; e, como os maus exemplos aproveitam sempre, um segundo estudante, e
um terceiro e um quarto, seguem, como as famosas pombas de mestre Raimundo
Correia, o voo do companheiro, e cá vão ficando no pombal as meias cômodas, as
estantes americanas e as cadeiras compradas no belchior.
E outros, e outros inquilinos,
atrasados no pagamento do mês vencido, lá se vão a contragosto não já pela
janela, mas pela porta da rua, com uma descompostura atrás, deixando nas
gloriosas mãos do triunfador, como despojo da luta, os tarecos que constituíam
a sua mobília.
Então, o dono da casa de
cômodos começa a anunciar “QUARTOS MOBILIADOS” e começa a cobrar aos novos
hóspedes o duplo do que cobrava aos primitivos. E, ao fim de algum tempo, aí
está o nosso homem pondo de parte, a cada mês, o triplo do que dantes punha,
porque já não aluga aposento sem mobília e sem roupa de cama.
São sempre os inquilinos quem
guarnecem de móveis as hospedarias desse gênero. Daí a ter o que se chama Casa de pensão só vai a um passo, e a
coisa faz-se quase sempre do seguinte modo: – Como o malandro nada mais tem a
fazer durante todo o mês do que cobrar os aluguéis no dia primeiro, enche as
horas de calor a ensinar habilidades ao seu cão ou ao seu papagaio, e nas horas
frescas vai para a calçada da rua cavaquear com os vizinhos.
Entre estes há sempre uma
quitandeira de quem o dono da casa de cômodos, começando por merecer a
simpatia, acaba por conquistar a confiança e o amor. Juntam-se e, quando ela dá
por si, está cozinhando e lavando para todos os hóspedes do eleito do seu
coração, sem outros vencimentos além das carícias, que lhe dá o amado sócio.
Assim chega a empresa ao seu
completo desenvolvimento, e o dono da casa de pensão começa a ganhar em grosso,
acumulando forte, sem trabalhar nunca, nem empregar capital próprio, até que um
dia, farto de aturar o Brasil, passa com as luvas o estabelecimento e retira-se
para a pátria, deixando, naturalmente também com luvas, a quitandeira ao seu
substituto.
E, quando algum dos inquilinos
fala mais alto no seu quarto, ou quando os estudantes e as costureiras dão para
rir e cantar, acode o locador e ordena que se calem, gritando que não admite
barulhos em “sua casa”.
Sua casa! Ora, eis aí, ao meu
ver, uma coisa singularíssima. O aluguel daquele prédio é pago pelos hóspedes,
como é a mesa, o gás, a água e o serviço dos criados. Tudo que ali está dentro
foi comprado pelos locatários e não pelo locador; ali só há um homem que não
trabalha e que não paga o lugar que ocupa, nem a comida que consome, nem o
serviço dos que o servem; e é, no entanto, esse homem justamente quem só tem
ali o direito de dizer que está em sua casa e o único que grita e manda como
verdadeiro dono.
Será legal, mas é injusto e é
duro. Se ao menos o especulador tomasse a responsabilidade do que se passa
dentro da “sua casa”, vá, mas nem isso acontece, porque, quando os inquilinos
são vitimados pelos gatunos, ninguém lhes responde pelo objeto subtraído.
Entrássemos lá agora, neste
instante, e espiássemos para dentro de cada quarto. Neste veríamos um pobre
homem a fazer charutos; naquele uma mulher a coser camisas; mais adiante um
artista a desenhar; outro a decorar um papel de comédia; outro a escrever;
outro a consertar relógios; e aqui um estudante às voltas com uma caveira e um
compêndio de medicina; e ali um fotógrafo a preparar clichês. E, se indagássemos
o que fazem os hóspedes ausentes cujos quartos estão fechados e não garantidos
por ninguém, saberíamos que todos eles andam a ganhar a vida, ao balcão, na
rua, nas oficinas, nas secretarias, nas redações das folhas e nos escritórios
de todos os gêneros. Pois bem! Enquanto toda essa gente moureja, o que faz o
locador?
O locador, defronte do seu
papagaio, estala os dedos com a mão no ar e, risonho, babar-se feliz, diz-lhe
pela milésima vez: “Papagaio real, para Portugal! Quem passa meu louro? É o rei
que vai à caça!”
Todavia, certo é que dentre
toda aquela gente, é ele o único que tem imputabilidade social no nosso meio.
Será justo? Não sei, mas
parece-me que o direito de ter casa de alugar cômodos ou casa de pensão devia
ser conferido pelo governo, como um privilégio de recompensa, somente aos
inválidos da pátria, que já não possam trabalhar, ou às viúvas dos militares,
dos artistas e dos filósofos, que se tenham sacrificado em nossa honra e
morrido na pobreza.
Que diabo! não vale a pena
fazer propaganda de imigração para termos belos malandros que ensinem papagaios
a falar!
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