Carlotinha da mangueira
Onde vai a menina a estas horas tão só e pensativa, sem que se lhe dê
do ardor da calma, nem do vento cálido a lhe queimar o rosto? Que pensamento a
dirige para a sombra da mangueira coberta de amarelos e de vermelhos frutos?
Não há no enleio, nem na sisudez de sua figura a expressão indizível da
amante; não se lhe pinta no olhar a imagem da paixão; não mostra nos gestos o
incentivo do recreio; vai num enlevo d'alma incompreensível buscar a sombra da
mangueira coberta de amarelos e de vermelhos frutos.
É débil a menina como o junco da beira d'água, e como ele direitinha e
flexível; parece que um sopro a torce e que a instantânea duração de um beijo a
pode sufocar; nos lábios nunca se lhe viu o riso e dos olhos jamais lhe correu
o aljôfar de uma lágrima. E tão só e pensativa vai em procura da sombra da
mangueira coberta de amarelos e de vermelhos frutos.
Nas noites de luar dorme sempre a menina ao relento em uma esteirinha
leve ao sopé de um jasmineiro. Nas noites escuras vela até alta madrugada à luz
de um antigo candeeiro, brincando com uma borboleta negra, que uma vez lhe
pousou no ombro e que, depois de morta, foi guardada num branco envoltório de
cânfora.
Logo que se ergue da esteirinha leve e antes que seja nado o sol, a
menina procura as roseiras do seu rosal e bebe o orvalho das flores; quebra o
grelo mais viçoso e o esconde no seio da terra; tira da haste mais elevada uma
folhinha verde e guarda-a na boca.
De tarde a menina beija a brisa, que passa, e na voz imita o gorjeio de
uma ave; solta os cabelos defronte do sol, que lhos doura de mil reflexos;
derrama um copo d'água sobre as raízes de um limoeiro, e senta-se por fim na
areia, imóvel e calada, volvendo entre os dedos uma conchinha rosada, que seu
irmão lhe deu.
Um dia viu ela um pirilampo a esvoaçar sobre o seu vestidinho branco, e
assustou-se; de outra vez ouviu o canto de acauã e entristeceu; lavou, por fim,
uma criancinha morta, e tremeu convulsivamente.
Mas, onde vai a tais horas a menina, pensativa e só, procurando a
sombra da mangueira altiva, que enche os ares com a copa de sua folhagem
viçosa, coberta de amarelos e de vermelhos frutos?
Gira em torno do tronco a menina até que de fatigada cai no chão;
depois que se lhe extingue a vertigem da roda, recomeça ela o giro para de novo
cair; três vezes se ergue e outras tantas volteia; cessa, por fim, de mover-se
e procura abrir com os dedinhos fracos o tronco da árvore em lugar nodoso e
velho. Corre-lhe o sangue dos dedos e a menina solta um grito agudo de tristeza
e de dor.
Por que faz ela isto e o repete sem cessar? A menina foi rica no seu
berço e viu depois a miséria à sua mesa. O pai, empobrecido, suicidou-se; a
mulher do suicida morreu louca no hospital. Um irmão da menina faleceu
naufragado, vindo em um navio cheio de ricas mercadorias. Tão só e
desprotegida, a menina recebeu abrigo em casa de sua madrinha e com ela vive.
Depois que se passou o ano de luto, a menina começou a ter sonhos e ver
neles a imagem fantástica do pesadelo afortunado, sempre a lhe pousar sobre os
seios, a rir-se, a brincar e a fazer-lhe promessas enganosas.
A menina o vê nas proporções minguadas de um boneco, mas lindo, vivo,
vestido de azul e com um barretezinho dourado na cabeça; a menina o ouve e
deixa-se seduzir pela linguagem harmoniosa do gênio da riqueza.
E o pesadelo lhe canta uma cantiga, que assim diz:
"Eu dou a riqueza aos pobres para que eles possam viver felizes.
Dou palácios encantados à margem de uma lagoa azul, à sombra de uma
floresta verde, no meio de jardins viçosos.
Na mesa dos meus palácios reina constante o banquete; as mais
esquisitas iguarias, as mais doces e sazonadas frutas e os mais delicados
vinhos nela contentam o paladar dos que têm fome e sede.
Sempre o festim alegra os meus convivas; fulgem mil luzes nos cristais
das salas; grata harmonia desprende-se dos caprichos musicais; o tapete macio
esconde os pés dos que dançam.
Nas alcovas do sono tranquilo embala a cama suavemente ao que nela se
deita; arde o perfume nas caçoulas douradas e o rouxinol acordado canta no
rosmaninho da janela para adormecer ao que deseja dormir.
Amor impera nos meus palácios encantados e vive à luz da beleza dos
dois sexos; Vênus Astarte percorre constantemente os meus domínios, espalhando
rosas e beijos por onde quer que passe; a saúde derrama a alegria em todos os
semblantes.
A mocidade eterna é o dom querido partilhado aos meus eleitos; quando
um raio de luar triste lhes quer pratear os cabelos, um outro do sol formoso os
doura e ameiga e os torna luzentes e crespos.
A tristeza e o cuidado jamais entraram às portas dos meus palácios
encantados; o tédio e o desgosto sempre fugiram espavoridos dos meus prazeres;
a morte não ousa aproximar-se das arcadas dos meus vestíbulos.
Feliz o que pode, dormindo, erguer os braços e apoderar-se do meu
barretezinho dourado; terá com a posse dele a chave da minha fortuna e tudo o
que me pertence lhe pertencerá também.
E ai daquele, que por mim escolhido para lhe cantar sobre o peito, não
conseguir erguer os braços e apossar-se do objeto mágico, que serve de enfeite
à minha cabeça.
Esse, de tão infeliz que é, poderá com muito custo abrir com os dedos o
tronco da mangueira em lugar nodoso e velho para encontrar no âmago o anel
brilhante, que, metido em um dos meus dedos, me prenderá para sempre."
***
Assim cantava o gênio da riqueza, e a menina de ouvi-lo à noite folgava
no desabrochar risonho da esperança, mas sem que de vez alguma pudesse erguer
os braços e colher nas mãos o objeto mágico, lindo enfeite de cabeça do gênio.
E, de tão infeliz que era, ia todos os dias nas horas da calma à
procura da sombra da mangueira, e depois das três voltas em redor do tronco,
procurava abrir com os dedinhos fracos a casca nodosa e velha da árvore, sem
conseguir penetrar o âmago, onde se esconde o anel brilhante da prisão, dando,
por fim, um grito agudo de tristeza e de dor, e vendo os dedinhos feridos e o
sangue a correr para o chão.
Carlotinha, Carlotinha; por que não te alegras com as meninas da
vizinhança, que vão à missa aos domingos e voltam contentes; que trabalham de
dia, cantando, e à noite conversam entre si, rindo e gracejando uma das outras;
que escolhem noivos entre os rapazes da terra, e vivem satisfeitas da
existência, que têm?
Se fosses à missa, eras um anjinho de mais para a igreja e uma nuvem de
incenso branco e perfumoso para o turíbulo; serias, se trabalhasses, a imagem
da alegria, estampando-se na costura ou no bordado; se escolhesses um noivo,
todas as suas companheiras te invejariam a sorte.
Carlotinha, Carlotinha; por que não choras como aqueles, que sofrem, e
no pranto encontram alívio às mágoas do espírito e do coração? A lágrima é
consolo, e bem-aventurado é aquele, que chora, porque a divina bondade o
socorreu na aflição e derramou-lhe o bálsamo santo do conforto nas feridas de
suas dores.
Mas, a menina não chora e nem ri; tão só e pensativa procura sempre a
sombra da mangueira nas horas calmosas e fere os dedos, cavando-lhe o tronco em
lugar nodoso e velho.
***
Caiu a tarde no vale e na pitombeira do mato o acauã cantou o seu canto
agoureiro; voz tristonha e monótona acordou os ecos da campina, e quem ouviu o
canto pensou na desgraça, que em breve sucederia.
Só Carlotinha não ouviu o canto da ave pressaga, tão pensativa estava a
olhar para o sol e a sacudir os cabelos, a molhar as raízes do limoeiro e a
revolver nas mãos a conchinha rosada, que seu irmão lhe deu.
À noite velou a menina junto do candeeiro antigo e brincou com a
borboleta escura, que um dia lhe pousou no ombro e que ela guardou com cuidado
no branco envoltório de cânfora.
Ao cair lento dos orvalhos da madrugada saiu a menina ao terreiro do
sítio e procurou as roseiras do seu rosal. Mas, não pôde beber o rocio, que
umedecia as flores, porque as flores estavam secas; não quebrou o grelo viçoso
para o esconder na terra, porque os galhos estavam duros; não apanhou a folha
verde, porque todas estavam murchas.
Ao nascer do sol estava Carlotinha encostada ao tronco da mangueira,
imóvel, inteiriçada e fria, tão fraca e branca, tão triste e linda, que fazia
dó o ver-se-á, e o coração se apertava. O primeiro raio do sol, beijando a boca
da menina, vibrou nela um som fraquinho e harmonioso; de todo o seu corpo
desprendeu-se a música suave do vento a bater nas folhas da anêmona, e, quando
a procuraram nas horas calmosas do dia, viram-na morta e encostada ao tronco da
mangueira.
No dia seguinte falava-se e dizia-se que Carlotinha, a doida, tinha
cessado de sofrer.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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