Uma opinião de M. Jerôme
Coignard
Toda gente que escolhe
leituras já leu esse compêndio de alta sabedoria que são Les opinions de M. Jerôme Coignard, de Anatole France. O padre
Coignard possuía uma visão das coisas e dos homens muito livre para lhe
permitir o acesso às grandezas humanas, e passou a vida a pé, pobre como
Diógenes, mas contente. Era rico apenas em filosofia, a qual transmitiu ao seu
bom discípulo Jacques Tournebroche, o qual por sua vez no-la transmitiu a nós,
compendiada por Anatole France num livro de diálogos encantadores de finura.
O que nem todos sabem é
que por morte de Anatole foi encontrado no baú da sua cozinheira um capítulo
inédito desses diálogos. Por que motivo deixou de incorporar-se à sua obra
impressa esse capítulo? As opiniões divergem, prevalecendo, entretanto, a que
atribui isso a razões de estado. Esse capítulo versa sobre o jogo e
singularmente se adapta a um país amigo da França; é possível que o Quai d’Orsay
tinha influído no abafamento do escrito para evitar complicações diplomáticas.
Um jornal brasileiro,
entretanto, não possui as mesmas razões de reserva do Quai d’Orsay, e pode dar
a público o precioso inédito.
Aqui vai ele
religiosamente traduzido em vernáculo, sem título como o encontramos.
***
Naquela tarde fomos, meu
mestre e eu, até à Ponte Nova, onde abundam os alfarrabistas de rua que meu
mestre frequenta. Em caminho chamou-nos a atenção um tumulto à porta de um
vendedor de loterias e outros jogos. Eu quis chegar até lá, mas meu mestre
deteve-me pelo braço.
— Não. O povo só é
interessante visto de longe, como massa que se move. Além disso não é
necessário chegar até lá para atinar com o que se trata. A velha mitologia tem
símbolos eternos; Saturno devorando seus filhos é um deles.
Não compreendi de pronto
a alusão do meu bom mestre, e ia pedir esclarecimentos quando passou por mim um
vendedor de jornais. Adquiri uma folha da chamada “certa imprensa”, visto como
não nego pertencer eu à classe da “certa gente”.
Havia na primeira página
um formoso artigo trescalante de indignação contra o jogo, “cancro social”. Mas
havia também na quinta página uma seção de palpites de jogo aconselhados pela
direção da folha.
— Mestre, disse eu, como
se explica a contradição deste jornal, fulminando o jogo na sua coluna de honra
e estimulando-o páginas adiante?
O padre Coignard
mansamente correu os olhos pela folha e disse:
— Tournebroche, meu
filho, já várias vezes te fiz notar que a contradição é própria do homem e dos
jornais. Direi hoje que é própria da vida. Esse jornal é sincero nas duas
opiniões contrárias que emite simultaneamente sobre o jogo. Condena-o porque o
acha imoral, estimula-o porque o acha humano e necessário à boa ordem das
coisas da terra.
— Não compreendo,
mestre. Se é imoral, é contrário à boa ordem das coisas da terra, visto que a
moral não passa de um conjunto de regras tendentes a manter essa boa ordem.
— Uma discussão sobre
moral nos levaria longe e eu tenho de estar dentro em pouco à porta de
Catarina, a rendeira, que é uma criatura notoriamente imoral e no entanto necessária
à boa ordem da vida. Vida é sinfonia, meu caro discípulo, e as sinfonias
necessitam de todas as notas musicais.
A tua folha tem duas
opiniões a respeito do jogo e nisso se conforma com um dualismo universal. As
opiniões nascem xifópagas, com caras contrárias mas ligadas entre si.
— Mas uma delas há de
ser a verdadeira, disse Tournebroche, e eu queria que meu mestre me desse a sua
sincera opinião sobre o jogo.
— Prefiro, meu caro
Tournebroche, dizer-te que o jogo faz parte da única trindade santíssima que o
homem jamais negou: amar, jogar e beber. Nasceu no Éden com os nossos primeiros
pais e há de morrer com o último homem. Adão bebeu as palavras da serpente,
jogou a sua inocência e amou Eva. Desde aí essas três ilusões passaram a
constituir o supremo enlevo do homem — e os três elementos de que ele dispõe
para amenizar este nosso vale de lágrimas.
— Logo, o meu caro
mestre defende o jogo, ou pelo menos o justifica.
— Apenas o explico, meu
filho. O homem que trabalha dia a dia para a conquista do pão, e não vê
acumular-se nenhuma reserva em suas arcas, encontra no jogo a única esperança
de felicidade. Comprar um bilhete de loteria, comprar uma poule, comprar um bicho é comprar essa coisa maravilhosa que se
chama esperança, e o homem que espera é feliz. Enquanto a sorte não decide se
ganhou ou perdeu, o homem que joga sonha e é feliz. Se ganha, realiza o sonho;
se não ganha, joga de novo, e vai prolongando assim, indefinidamente, o seu
estado de felicidade com base na esperança.
— Mas o jogador acaba
sempre perdendo e assim se prejudica.
— Não vejo em que, nem
vejo que, bem consideradas as coisas, o jogador saia perdendo. Desde que
adquire esperança e a esperança é o supremo bem da vida, o jogador nunca perde.
Apenas dá o seu dinheiro em troca de uma mercadoria que não pode ser pesada na
balança de pesar batatas.
Quem bebe compra, não o
álcool em si, mas a doce e rósea ebriez que ele dá. Quem ama à Catarina e lhe
dá dinheiro, não adquire materialmente um pedaço dessa interessante criatura,
mas sim a ilusão de amor que ela dá.
O que vale nesta
trindade santíssima é o que há nela de imaterial, imponderável e ilusório.
— Mas o Estado, disse
Tournebroche, que é paternal e sábio, condena e persegue o jogo.
— Tournebroche, meu
filho, o Estado faz como a tua folha: condena e persegue com fúria o jogo
durante suas passageiras crises de histeria moral. Mas permanentemente o
estimula, como faz a tua folha pela seção dos palpites. O Estado, como já
disse, guia-se por meio de razões de Estado, razões que o povo não alcança, mas
não passam de razões das pessoas que representam o Estado.
Por isso te disse eu que
Saturno devorava seus filhos. Pois, responde-me sem vacilar, quem é que mantém
o jogo pai, o jogo substantivo, do qual os jogos adjetivos não passam de prole
adjunta?
— O Estado, está claro,
respondeu Tournebroche, já que é ele quem institui as loterias, e as
regulamenta, e as fiscaliza, e lhes participa dos lucros.
— Perfeitamente. O
Estado é o pai do jogo, e se persegue os jogos filhos do grande jogo, é porque
Saturno devora seus filhos. O Estado condena e persegue os jogos menores por
uma razão muito simples, embora dê como razão disso a moral. Persegue-os porque
esses jogos fazem concorrência ao grande jogo que ele banca por intermédio dos
concessionários de loterias. Estes homens se sentem lesados pela concorrência,
o Estado lhes reconhece razão e transforma essa razão de concessionários em
altas razões de Estado.
— Nesse caso o que eu
não compreendo é o povo. Se o tudo é jogar por que o povo não se limita a jogar
no jogo que o Estado institui, garante e fiscaliza?
— As razões são claras,
meu filho. O povo, erradamente, está visto, considera o Estado como uma
associação maléfica que explora o imposto, e desconfia dele. Tudo que emana do
Estado é suspeito ao povo, que não compreenderá nunca a delícia que é sermos
governados por ele. E sistematicamente, em igualdade de condições, o povo
prefere o jogo instituído pelos particulares ao jogo instituído pelo Estado.
— Mas nisso o povo erra,
visto como o jogo do Estado tem as garantias da lei e o outro não.
— Erra e não erra, meu
filho. Erra porque é um erro duvidar da benemerência infinita desse grande
aparelho de nome Estado, que faz as guerras e retira das sarjetas os gatos
mortos. Não erra porque o jogo particular, justamente por não ter as garantias
da lei, é infinitamente mais honesto, expedito e inteligente que o jogo do
Estado. Estou velho e jamais vi reclamações contra os bicheiros. Catarina, a
rendeira, comprou o mês passado duas libras tornezas de Coelho, e horas depois
recebeu cinquenta, visto como ganhou. Ela sonhara com Mr. Bouchard,
recentemente eleito para o Instituto de França.
— E o mestre acha alguma
relação entre esse sonho com Mr. Bouchard e o Coelho?
— Nenhuma. Tenho que Mr.
Bouchard, a ser um bicho, seria o Veado, por motivos que um bom mestre não deve
expender diante de um discípulo como tu. Mas o considerá-lo tão acertadamente
Coelho é um desses mistérios acima da compreensão humana, e só possíveis de
decifragem a intuições puras como a de Catarina, que, tu sabes, não possui a
faculdade do raciocínio.
— É bem pensado isso. Eu
de uma feita sonhei com o meu caro mestre e joguei na Águia.
— E deu?
— A Borboleta.
— Há qualquer coisa de
borboleta em mim, reconheço. Quer Buffon que as borboletas borboleteiem, e a
mim me parece que, afinal, não faço na vida outra coisa.
Neste momento passou
pela calçada fronteira um vendedor de bicho, escoltado por dois guardas
policiais. Ia preso e fora sua prisão a causa do tumulto mencionado no começo
deste capítulo.
— Vê, meu filho, que
belo quadro da iniquidade humana. Este homem vai preso porque jamais lesou um
seu semelhante. Não há cozinheira neste bairro que não jure sobre a sua
pontualidade de banqueiro de bicho. Foi ele quem pagou a Catarina as cinquenta
libras tornezas de Mr. Bouchard.
— Realmente, o Estado
tem razões que a razão desconhece.
— E tem ciúmes, meu
filho. Não há neste país nada tão bem organizado como o jogo do bicho. O jogador
apresenta-se num guichet e faz a
lápis, num papelzinho, a sua aposta. O banqueiro recebe o dinheiro e dá-lhe em
troca uma papeleta numerada. Essa papeleta, conforme o número final da loteria
que o Estado faz diariamente correr, implica às vezes em pagamentos enormes, os
quais se realizam mediante a simples apresentação da papeleta. Para um negócio
de vulto correspondente, ou com particulares ou com o Estado, teríamos mil
maçadas, teríamos que passar escrituras, aceitar letras, apresentar
testemunhas, etc., e ao cabo de tudo isso o mais certo seria termos delongas,
despesas de lubrificação ou demandas judiciárias, que se eternizam e nos arruínam.
Digo que da parte do Estado há ciúmes porque jamais conseguirá ele organizar
nada tão perfeito, tão simples e sobretudo tão honesto. Se o Estado não
estivesse convencido da sua onisciência, o que deveria fazer, em vez de
perseguir os bicheiros, era estudar-lhes a organização e convidá-los a pôr nos
serviços públicos essa maravilhosa ordem e rapidez que caracterizam o seu
negócio.
— Isso o Estado não
fará. O que vai fazer é acabar com eles.
— Não te enganes, meu
filho. As crises histéricas passam e o jogo fica. Fica porque é humano, eterno
e necessário. Além disso, sabe defender-se. Conhece os calmantes que aplacam o
histerismo do Estado, deliciosos calmantes muito gratos às pessoas de carne e
osso como nós que constituem as vísceras do Estado. Quem vem lá? Parece-me
Catarina...
Era, de fato, Catarina,
a rendeira, que vinha furiosa com a prisão do seu bicheiro. Parou em face de
Coignard e disse-lhe...”
O
manuscrito de Anatole France, encontrado no baú da sua cozinheira, parava aqui.
E foi pena, porque nos privou da opinião da linda rendeira, opinião a que
Coignard dava grande apreço por ser intuitiva e não reflexo de longas meditações como as suas.
--
In: Na Antevéspera
Atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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