Augusto dos Anjos 100 anos do "Eu"
Eram
bem fundadas as esperanças do poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914), ao
se dispor a jogar todas as fichas no sucesso do seu livro de poesias EU.
Era tamanha a fé com que carregava o seu projeto, que teve e topete de
sacrificar a sua vida profissional na Paraíba e partir para o Rio, na mais
completa pindaíba. Mas com laivos de irresponsabilidade, posto que arrastasse
consigo a sua família na temerária aventura.
O
sacrifício compulsório que teve de assumir foi impulsionado pela circunstância
de ver o pedido de licença para viajar ser negado pelo Governador do Estado,
que seria seu “amigo”. Assim, o que poderia ser um porto seguro em caso de
fracasso, transformou-se num adeus: de modo perempto, ele abandona o cargo de
professor e resolve viajar para o Rio de Janeiro, levando na bagagem a mulher
grávida e os originais de seu livro de poesias EU.
Corria o ano de 1910...
“Fora
fulminante o choque. Retornando a casa depois da entrevista que lhe marcaria o
destino, o poeta transfigurado comunicara à esposa a dramática resolução: –
Vamos para o Rio. Nunca mais porei o pé na Paraíba! – Dias depois, o primeiro
navio do Lóide que passou pelo Recife levaria para o Rio de Janeiro o casal
Augusto dos Anjos”.
A
viagem foi dramática, não só pelo arrebatamento impulsivo do poeta, mas também
porque a sua esposa estava grávida de três meses. Desconhecido no Rio de
Janeiro, ele contava apenas com o apoio do irmão Odilon dos Anjos, e foi
justamente com este que o poeta conseguiu recursos para publicar o seu livro,
após frustradas tentativas junto a editores cariocas.
Debaixo
de tanta responsabilidade, Augusto dos Anjos, morando numa pensão da Praça
Mauá, no começo da Avenida Rio Branco, teve de encarar a nada fácil vida da
Capital da República. O colega alagoano José Oiticica, também recém imigrado,
dividia com Augusto dos Anjos sua parcela de infortúnios.
Muito
embora Augusto dos Anjos tivesse conseguido emprego de professor na Escola
Normal, nem por isso se viu livre da situação de penúria que passava com a
família. Aceitou a colocação, mas a considerava um posto temporário, não só
porque remunerava mal, mas também porque o seu sonho era fazer parte do corpo
docente do Colégio Pedro II, por onde passavam todas as sumidades da época.
Toda
essa situação se agrava devido a seu gênio introspectivo, onde até mesmo a
ajuda espontânea e valiosa do irmão parecia a ele um favor e por isso mesmo
inaceitável. Como se não bastasse, em consequência do acúmulo de desastres
materiais, adveio uma profunda depressão, agravada pela recepção
silenciosa, pela reação pífia dos críticos e pelo silêncio da
intelectualidade sobre o seu livro. Se lembrarmos do primeiro passo dado em
João Pessoa, a profunda decepção tinha sua razão de ser: Augusto dos Anjos
sacrificou a vida e depositou todas as suas esperanças no sucesso do EU.
A
Capital Federal vivia a época em que predominava a literatura voltada para a
sociedade feliz, até certo ponto parisiense. Parnasianos e Simbolistas dividiam
a atenção dos amantes da literatura e da poesia. O aparecimento de um livro
como EU em
1912, nesse ambiente artificial, na segunda década dos anos de 1900, constituía
uma coisa insólita e desafiadora. O cronista de O País, Oscar Lopes,
representante legítimo dessa mentalidade, se mostrou escandalizado ao ler o
livro de Augusto dos Anjos, "tocando no volume com a ponta dos dedos,
para não sujar as mãos de sangue no vermelho do título que ocupava quase toda a
capa".
Lá
mais adiante, esse fato inusitado – em que a própria capa, elaborada de modo
excêntrico, por si própria provoca um rebuliço – Manuel Bandeira bem que notou: “Nesse
ambiente de requintado modernismo estourou como um grito bárbaro a voz de um
estranho poeta, cujo livro se intitula EU e
já nesse prenome impresso em grandes letras que tomavam toda a capa, clamava o
seu irredutível egotismo”.
Porém,
alguns poucos simbolistas – vertente literária futurista
e rebelde da
época – ao lado de outros não vinculados às correntes literárias, apoiaram o
recém-chegado. Mário Pederneiras, Osório Duque Estrada, José Oiticica e Eduardo
Guimarães (de pensamento independente), saudaram a poesia nova e
diferente de Augusto dos Anjos.
Assim,
como seu livro de estreia EU –
que viria ser o único – Augusto dos Anjos morreu, desconhecido e silencioso, em
1914, na cidade de Leopoldina (MG). A não ser pela agitação promovida pelos
ardorosos admiradores Orris Soares, Heitor Lima e Antonio Torres, nada se
comentou na imprensa. Antes mesmo de completar quatro anos de vida na Capital
Federal, antes de realizar o sonho de ver seu livro ser aceito pelos leitores e
pela crítica, Augusto dos Anjos desapareceu.
Dos
literatos de seu tempo se contam duas anedotas. A primeira foi atribuída a
Olavo Bilac, o Príncipe
dos Poetas Brasileiros, e ocorreu logo após o falecimento de Augusto dos
Anjos:
Poucos
dias depois de sua morte, os amigos Orris Soares e Heitor Lima caminhavam pela
Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, quando encontraram a Olavo Bilac,
recém-eleito Príncipe
dos Poetas Brasileiros. Ao cumprimentá-lo, ele indagou o porquê da visível
tristeza dos dois amigos. Logo Olavo Bilac foi informado da morte do ‘grande’
poeta Augusto dos Anjos, mas sua reação foi frustrante: mostrou completo
desconhecimento do nome do ‘grande’ poeta, não conhecia nenhuma poesia dele e
ignorava as circunstâncias do fato.
E
quis saber: “Quem é esse Augusto dos Anjos?”. Os dois amigos, espantados
diante da falta de informação do poeta, ficaram mudos. Ante o silêncio de seus
interlocutores, Olavo Bilac insistiu: “Quem foi esse poeta? Não conheço,
nunca ouvi falar, sabem alguma poesia dele?” Heitor Lima tomou a iniciativa
e recitou o soneto “Versos a um coveiro”, que foi ouvido séria e pacientemente.
Mas talvez tenha sido a escolha de repertório infeliz, que fez Olavo Bilac
sentenciar: “É esse o poeta? Então fez bem morrer, porque não se perdeu
grande coisa”.
A
segunda anedota, quando muitos críticos já tinham publicado outras opiniões,
era bem diferente:
Gilberto
Freyre, então licenciado da Columbia University (USA), em visita à Paraíba a
convite de José Lins do Rego, foi levado a conhecer uma estátua, recém
inaugurada, em homenagem ao escritor Álvaro Machado. Diante da imponente
vassalagem ele perguntou a José Lins: “E para Augusto dos Anjos, o que vocês
fizeram?”
Foi
desse modo, tardio e anedótico, que Augusto dos Anjos passou a pertencer ao Clube
Exclusivo de Artistas Incompreendidos em Vida. Em literatura não são poucos
os membros desse clube, desde o exemplo maior Miguel de Cervantes, com Dom
Quixote e seu fiel escudeiro Sancho Pança, que não teve reconhecimento dos
contemporâneos de sua terra: “Post tenebras, spero lucen” é a divisa que
acompanha o seu Ex
Libris...
No
nosso país, Augusto dos Anjos tem como principal parceiro o poeta e também
nordestino Joaquim de Sousândrade (1832-1902), que teve o seu longo poema O
Guesa (13
Cantos, total de 3342 estrofes, escritos entre 1858 e 1888), impresso na
Inglaterra e ignorado pela crítica. Joaquim de Sousândrade constatou, com
tristeza, que o seu livro só seria compreendido no espaço de cinquenta anos
após sua morte. Voltando a Augusto dos Anjos, o mea
culpa veio
primeiro de José Américo de Almeida, que se viu na obrigação de escrever sobre
o poeta logo quando após sua morte completar um mês. Daí em diante o
reconhecimento ao valor do EU e
da qualidade do poeta, não só cresceu, mas ganhou novas e contundentes
avaliações.
Toda
essa polêmica, que para alguns demora até os dias atuais, transformou o EU num
livro enigmático e desafiador, fazendo parelha com outras obras que
sobreviveram graças ao extraordinário poder, à qualidade de conteúdo, ao
mistério que as suas criações guardaram. Aleatório e de memória, relembro
alguns títulos que participam do mesmo destino: Folhas
da relva (Walt
Whitman), Primeiros
cantos (Gonçalves
Dias), Flores
do mal (Charles
Baudelaire), Navio
negreiro (Castro
Alves) e o já citado O Guesa, de Sousândrade.
Para referir somente à poesia, se pode afirmar que Augusto dos Anjos está em
ótima companhia.
Já
faz mais de cem anos que Augusto dos Anjos aportou no Rio de Janeiro trazendo
debaixo do sovaco os originais do EU, livro
que tanto amava e no qual depositou todas as suas esperanças. Em 2012 faz cem
anos também que saiu a primeira edição, guardada por um silêncio de vários
anos, pois só em 1920 foi publicada a segunda edição, por iniciativa de amigos.
Além de deixar como herança os volumes encalhados, ao autor coube guardar a
dívida com seu irmão que nunca foi paga.
E,
no entanto, os poemas do EU –
acrescidos de outros escritos publicados esparsamente – continuarão sua
indevassável e sempre renovada jornada através da mente do leitor. Alguns
poemas parecem fácil tradução emotiva de uma vivência pessoal; a grande
maioria, porém, traduz a comoção que acompanha o homem e seu destino
cabalístico, científico, teológico – que está sujeito sempre à derivação que a
mente estipula para cada intérprete e seu tempo.
Rio de Janeiro,
Cachambi, 1 de janeiro de 2012.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...