Asas
Já se me gravava frisantemente a
recordação daquele extraordinário personagem, quando uma noite, no café, Inácio
de Gouveia mo apresentou em indiferença.
Não pudera, com efeito, esquecer
mais a inexplicável criatura esguia, de longos cabelos mordoirados, rosto litúrgico,
olhos de inquietação – que, alta madrugada, eu vira a primeira vez, perto de Notre-Dame, solitária e extática. Mas
não, como seria admissível, contemplando a Catedral na bruma violeta da ante
manhã de outono – estramboticamente, ao contrário, de costas para ela, a olhar
o céu, abismada, num enlevo profundo…
Parei alguns minutos examinando o
desgraçado. Contraía-se-lhe o rosto, os olhos palpitavam-lhe em bizarras divergências,
enclavinhavam-lhe o corpo bruscos estremeções – como se na verdade presenciasse,
no espaço, qualquer cena emocionante!
Encontrei-o de novo, poucos dias
volvidos, na praça Vendome.
Mais discretamente, porque era na
agitação das cinco horas, o meu desconhecido indagava sempre a atmosfera: hoje,
numa atitude mais serena, enternecida a cor de rosa – descendo, em frágil
suavidade, o olhar, instante a instante, sobre as mulheres de luxo que saíam
dos automóveis…
E vira-o ainda, uma última vez,
no jardim do Luxemburgo – então apenas absorto nas correrias das crianças.
Foi pois com íntima curiosidade
que o saudei, na frase infalível do "muito prazer em conhecê-lo", –
sincera, por exceção.
Sabia agora que era um vago
artista russo, conhecido distante de Gouveia: "Petrus Ivanowitch
Zagoriansky" – "salvo erro", avisara-me em português o
romancista.
Este, por sinal, breve se
despediu – e os dois ficamos sós.
Maravilhosamente se entabulou a
nossa conversa, – parecíamos já antigos companheiros. E toda a noite eu ouvi,
suspenso, as palavras do russo.
Que zebrante intensidade, que síntese
de ouro!
Em face dele, a convulsionar a
beleza das suas frases novas, vinha-me a sensação destrambelhada de que o
artista não falava só com a sua boca, mas com todo o seu corpo…
Amiudaram-se, a partir daí, os
nossos encontros. Uma intimidade quotidiana, mesmo. E hoje, recordando essa
época da minha vida, afinal tão próxima, ela evoca-se-me em laivos de sonho, de
beleza e pasmo – de inquietação, misteriosamente.
Não estou escrevendo uma novela –
apenas fixando um episódio bem real, por secreto e perturbador. Assim, nem me
esforçarei por dar um seguimento dramático à minha narrativa. Ela resvalará
mais do que livre, desarticulada – apoiando-se quase estritamente na reprodução
das nossas conversas.
Logo de início eu confessara ao
estrangeiro já o conhecer de vista – e ter-me impressionado muito o seu aspecto
aureolado e a sua estranha atitude, olhando o espaço, em Notre-Dame e na praça Vendome.
Lembro-me que Zagoriansky, dessa
vez, apenas sorriu num dos seus inolvidáveis sorrisos triangulares,
acrescentando qualquer coisa que não percebi – como que uma onomatopeia hirta:
decerto uma palavra russa iludindo a resposta.
Mas, poucos dias depois, quando
lhe falei demoradamente da minha Arte e lhe narrei os planos d'algumas novelas
– o meu companheiro, mudando de atitude, baixando enfim os olhos, principiou
sem ser rogado:
– Solenemente, é admirável.
Desistira de encontrar alguém que o pensasse. O meu amigo, em suma, é um
artista – um Artista! Tudo quanto me acaba de sugerir – protesto-lhe – é uma
Apoteose à minha vibratilidade. Que triunfo! Pela primeira vez acho alguém com
quem saiba falar da minha Arte, decisivamente. Não digo que me compreenda.
Longe disso. Mas vai sentir-me um pouco. É já muito. Verá…
E pôs-se, ainda em confiança velada,
a dizer-me os seus fins, as suas teorias últimas:
– Nervos! Nervos!... Oh, o horror
do Mesmo! Para que sempre fazer idêntico, se tantas coisas Outras nos envolvem?...
Ao excessivo e ao diverso – em Marchetado e Ruivo!...
Lembrava-se de mim – contou-me –
de me ter visto olhando o céu, como louco, embevecido… É que enredava então um
dos meus poemas Novos onde sugestionaria toda a beleza insuspeita do Ar. Do Ar,
sem dúvida, meu amigo – o Grande Insidioso que tudo contorna e prolonga,
esparze vibratilmente…
Notre-Dame – incrustação medieval! Abobadas do templo, rosáceas dos
vitrais, cornijas e telhados – tudo, tudo, pelo espaço… Mas são degraus de
trono, degraus de trono – outras tantas catedrais projetadas na atmosfera:
sucessivas; ao Infinito! A atmosfera: um espelho de Fantasmas! E cada figura,
cada ogiva, cada rendilhado – se traduz lá, vagueando-se, se projeta lá em
insinuações envolventes de contorno. Pois o ar tudo rodopia, amolda e alastra,
anela, diverge insondavelmente… Para além da nossa existência real, outra se
influi, existe – suave: a das formas aéreas, contínuas, que emolduramos. Quem
sabe até se elas não irão ser, ultrapassando o Vácuo – as almas sutis,
voláteis, dos corpos doutros mundos?...
E eis qualquer coisa que a minha Ânsia
estrebuchou fixar!... Translucidez-Espectro… Visões de Nós-próprios… e dos
templos… dos palácios… das torres… das arcarias… Ah! eu não vibro só os
monumentos nas suas linhas imutáveis, nativas, rudes – a pedra. De há muito
absorvi senti-los a bem mais Imperial nos seus moldes incorpóreos de ar –
transmitidos, flexíveis, impregnantes…
As grandes catedrais! Notre-Dame… Que altos relevos de Espaço…
que maravilhosas intersecções de planos… Planos múltiplos e livres,
desdobrados, que se enclavinham, se transmudam, soçobram, turbilhonam!...
Eu quero uma Arte que
interseccione ideias como estes planos!
Ouça bem! ouça bem! Quero uma
Arte interceptada, divergente, inflectida… uma Arte com força centrífuga… uma
Arte que se não possa demonstrar por aritmética… um Arte-geometria no espaço…
Sim! sim! uma Arte a três dimensões… no espaço… no espaço… Áreas e
Volumes!"
Em vertigem, dificilmente me
guiara por este rodopio. E abismava-me. Enfim! – era toda uma Imaginativa nova…
De resto, havia nas suas frases
uma desconexão aflitiva, um destrambelho fugaz – e, nos seus olhos, um
esplendor fumarento, a boca amarfanhando-se-lhe em um ríctus de sombra.
Prosseguiu:
– Urge também, meu amigo, que um
Artista de gênio saiba individuar, animar, a Atmosfera… quando a rompem grandes
expressos, e os afilamentos dos dirigíveis, as hélices, os volantes, as rodas
das oficinas, os braços dos guindastes – tanta beleza dura! – … quando a
entalham basílicas, memórias, ruínas no Egito… debilmente, se a afagam mão
esquivas de mulher, e as correrias loiras das crianças, nos jardins…
Mais tarde, havia de me tornar:
– Acredite-me, cada vez melhor me convenço de
que a atmosfera é uma fonte inesgotável de beleza inúmera. Convém que nós, os
artistas, aprendamos, hora a hora, a devassá-la… Saber a Distância! compreender
o Ar… o espaço, que nunca é imóvel – e vibra sempre, coleia sempre… A mínima
oscilação, só por si, vale um motivo de Arte – é uma beleza nova: zebrante,
rangente, desconjuntada e emersa… Fantasie um corpo nu, magnífico, estendido
sobre colchas da Índia, em um atelier de luxo… Mas de volta, meu amigo, de
volta, tudo será esse corpo – só a beleza purificada desse corpo!... Soçobrará
o resto, desarticular-se-á em redor, focado o ambiente nessa apoteose –
alabastros de convergência!... Depois é o próprio corpo que, de tanto haver
concentrado, se desmorona em catadupas de oscilações afiladas, loiras,
viciosas… Abrem os seios gomos de ar crispados, as pernas derrotam colunatas –
agitam os braços múltiplas grinaldas; os lábios palpitam incrustações de
beijos… Tudo se abate de Beleza! E o corpo é já um montão de ruínas, de
destroços de ar, que ondeiam livres, em vórtice – e se emaranham, se
entrecruzam, se desdobram, se convulsionam… Todo o ar vive esse corpo nu!
E nas grandes oficinas… o giro
ácido das rodas… os volantes… os êmbolos… as correias de transmissão… o oscilar
de complicados maquinismos… Outros tantos movimentos de ar – fogos de artifício,
é verdade, fogos de artifício de Ar!... Hélices, espirais, ramos de parábola,
estrelas, hipérboles mortas – turbilhonando, zigzagueando, entregolfando-se… Magia
contemporânea! Europa! Europa!...
Nos teatros, então, se uma
dançarina multicolor volteia – repare – a atmosfera toda se colore em cerca,
abismando-se em despojos policromos que veem tingir as nossas próprias mãos, os
rostos dos espectadores – como o farfalhar dos vidrilhos…
Pois é tudo isto, tudo isto, em
suma (e as inflexões das espadas) que devemos – Hoje! – adivinhar e sugerir em
Alma.
Por mim, gritei-lhe, como da
outra vez, o meu espanto e o meu culto em face das teorias sublimes Ele
estranhava que eu as soubesse compreender tão longe – embora os meus nervos e o
meu gênio. Mas breve se convenceu da minha sinceridade – dia a dia em maior
confiança.
***
Há dez anos que Petrus Ivanowitch
levara a sua família – sua mãe e sua irmã – a abandonar Moscou, depois da morte
de seu pai, e a estabelecer residência em Paris.
Desde o princípio das nossas
relações me quisera, à viva força, mostrar em sua casa – onde, por sinal,
conheci mais tarde Sérgio Warginsky e me deixei apresentar de novo a sua mulher
– ainda muito formosa – que noutros tempos, em Lisboa, conhecera em circunstâncias
tão diversas.
Uma sensação de enlevo devia
trazer da minha primeira visita, pois logo de entrada se me frisou um ambiente
de ternura e desvelo a cercar o Artista. As servidoras fiéis do seu gênio,
aquela mãe e aquela irmã – adivinhava-se num relance: Sofia Dmitriévna, uma
senhora de porte aristocrático e magníficos cabelos brancos; Marpha Ivanovna,
uma linda rapariga cheia de vida – alta, robusta, musculada. O tipo completo da
beleza forte.
Meses depois, ambas elas, notando
como Petrus preferia o meu convívio, começaram a pedir a minha opinião:
mostrando-se muito receosas pela sua débil saúde – e, ainda mais, pela
intensidade excessiva do seu gênio, as complicações do seu espírito, toda a
estranheza do seu porte. E, um dia, contaram-me que o meu amigo sofrera outrora
uns ataques misteriosos, terríveis, que os médicos não souberam nunca
diagnosticar: como que uma bizarra e sinistra epilepsia nova. Há seis anos,
essas crises não se repetiam. Mas fora justamente desde então que se manifestara
um maior desequilíbrio em todos os atos do Artista – em todas as suas palavras,
e nas suas opiniões.
Busquei sempre sossegá-las. Só
hoje vejo bem como se fundamentava esse temor.
Não era, com efeito, apenas nas
suas conversas de arte que Zagoriansky se exprimia inquietadoramente: em
maravilhas, sem dúvida – e destrambelhos reais, não obstante. Se me dizia,
porventura, qualquer particularidade da sua alma, a estranheza e o vago
persistiam. De resto, as nossas conversas nunca se alastraram neste plano. Uma
natureza muito concentrada. Mas sempre que o russo se abriu comigo – foram tão
singulares como as suas teorias artísticas as suas anotações psicológicas, os
traços mais frisantes do seu caráter.
Por exemplo, jurou-me uma noite:
– Se eu quisesse, meu amigo,
contar a minha vida, em voz alta, a mim próprio – eu mesmo não acreditaria. Ah!
desenvolveu-se sempre em erro a minha existência… Se lhe entrasse em
pormenores, "literatura" suporia. E, no entanto, a verdade irrisória…
Menos crível, porém, é que todos os personagens da minha vida – os mesquinhos
até, na aparência – tenham procedido, afinal, sempre de acordo com a minha
vida. Encontrei sempre quem devia encontrar. Ninguém nunca procedeu comigo como
procederia com outrem – mesmo os que não me conheciam… Tanto que chego a
lembrar-me, em verdade, se não serei só eu, mas muitos – isto é: todos os
personagens da minha vida…
Estampara-se uma dor tão grande
no seu rosto – embora uma ironia estridente a repassasse – tamanha tristeza lhe
velara a voz e o brilho dos seus olhos – que estremeci, por ele, uma piedade
sincera incluída em um vago receio, talvez…
Breve fui notando os bruscos silêncios
que havia nas suas frases, os súbitos olhares perdidos, soltos, que
frequentemente, conversando, lançava em redor, sem se calar – numa desatenção
repentina, inexplicável e assustadora.
De quando em quando, fazia-me
agora estrambóticas constatações:
– Já reparou no cheiro do petróleo?
É muito curioso… Lembra-se?... Dir-se-ia um aroma com crosta… Sim, um aroma
duplo: um tom aromal, primeiro, grosso – revestindo um tom mais agudo, esfericamente…
– Não amei nunca. Mas tenho a
certeza que, se um dia amasse, o meu amor seria um grande sono. Então, à mulher
que ardentemente quisesse, eu diria: Meu amor, meu amor, tenho sono de ti!
– Recordam-me a cada instante
sabores que nunca experimentei… Gostos maquinados, com rodízios, em complexos
movimentos… Gostos-transformações de energia, quero crer…
– Houve uma época da minha vida
em que só inventava obsessões. Inventava-as, não as tinha. O mais perigoso era
que, tempo volvido, já não conseguia destrinçar se essas obsessões eram apenas
artificiais, criadas pela minha imaginativa de Artista – ou verdadeiras
loucuras que, alguma hora, teriam dilacerado o meu espírito, e hoje, vacilantemente,
ressumavam… Lembro-me bem das minhas incertezas quanto a esta obsessão dupla
que, em lucidez, sabia não ser mais do que o assunto rebuscado duma novela que
tencionara compor: um homem que, por uma parte, se convencera de que o seu
pensamento era translúcido, e assim, todos saberiam o que ele pensava – os próprios
animais – as suas ânsias, as suas desilusões … e, por outra parte, num crescendo
aflitivo, fosse descobrindo pouco a pouco, em todos os rostos, a mesma
expressão; os mesmos tiques, os mesmos trejeitos… Embalde fugiria, de olhos
cerrados, em uma náusea de medo… E essa expressão irremediável, obcecante,
enfadonha, sempre a mesma – iria por fim encontrá-la nos próprios objetos, nas
coisas inanimadas – nos aromas até.
Mas bem mais inquietadora, por
dolorosa e íntima a confissão estiolante de certa manhã febril.
Visitara, com ele, um pintorzeco
indiferente que vivia num pequenino quarto, trepado ao último andar dum hotel
do Odeon. E, à saída, na rua:
– Como o invejo… – divagou o
Artista.
Nunca viverei num quarto como
esse… Só isto, sintetiza bem, quem sabe, a minha dor… Foi outro o meu destino…
Houve sempre tapetes na minha sorte… Não poderei nunca viver… A dor de ter
sabido sempre onde ia dormir!... Duvido que pense também assim… Mas como eu
quisera ser aquele quarto… Reparou?... Aquele quarto é uma garota de Paris… Não
logrei nunca misturar a mim a gentileza… Jamais recebi uma carta que não
esperasse… Sequidão! Sequidão!... Se ao menos, como certo amigo distante,
principiasse a amar uma morta… Embalde… E, solitário, passeio com os meus
galgos de fantasia… Às vezes, julgo até que se deu comigo esse episódio – que
me narraram, sem duvida… Ausência!
Ausência!... Ela estaria
descalça, uma noite de luar, junto do lago, a pedir-me que lhe lançasse água nas
mãos e sobre os braços nus… Depois, teríamos misturado os dedos na mesma água…
E hoje – que suavidade! – parecer-me-ia, decerto, que essa água fora o único
beijo que trocáramos… Meu lindo espírito de seda, todo bordado a cor de rosa…
Mas este mesmo outono é ilusão!...
Ouvi-o em sobressaltos. Não me
surgira nunca tão vincado o destrambelho das suas frases – bem real, por
desgraça: de forma alguma um artifício de "poseur" – tão dolorida e
flagelada a expressão.
Breve porém mudou de assunto, e
as suas ideias de novo se focaram lucidamente.
Por minha parte, acostumado ao
seu espírito, tirara já para mim esta conclusão egoísta: um grande
desequilibrado, talvez – mas, pelo excesso do seu desequilíbrio, um gênio
robusto. E, sem remorsos tranquilizava a sua família.
Com efeito, olvidando os meus
vagos temores, nem me lembrei nunca do seu fim, no meu habitual ceticismo – a
não ser, remotamente quando uma manhã me entrou pela casa a gritar:
– Meu amigo! Meu amigo! Creio que
descobri hoje, enfim, o segredo da minha existência: Sou todas as mãos esguias
de mulher com as unhas pintadas!...
Não era dum "blagueur"
– portanto esta frase seria dum louco, mais tarde ou mais cedo.
Mas fora tão bela, tão loira e
perturbante – que logo esqueci o perigo, e, em verdade, admirei só o Artista…
CAPÍTULO 2
Foi só nos últimos tempos que
Petrus Ivanowitch falou comigo, em desassombro total, das suas ânsias de
Artista – da sua obra, realmente. Até aí, em verdade, apenas se referira a
pontos de vista gerais, às suas opiniões teóricas – mas nunca aos seus versos,
a não ser de muito longe.
Por mim, nem por sombras duvidava
do seu gênio – cria nele a ferro e fogo. Entanto, a minha certeza apenas
repousava na sugestão inolvidável do seu espírito – nas suas frases de chama, e
nos seus gestos, no brilho dos seus olhos – em todo o seu perfil, é claro. De
resto, inabalavelmente, melhor do que a Obra mais perfeita, isto incidia um
Artista imortal. A ponto que eu, de fato, antes de refletir a sangue-frio,
tinha bem funda a impressão de que ouvira já muitos dos seus versos.
Das suas obras, falou-me a
primeira vez quando, expressamente para ele os apreciar, verti em francês
alguns excertos dos meus livros e dos admiráveis trabalhos de Fernando Passos.
Zagoriansky maravilhou-se. Pasmava-o como, num país tão diverso, surgira
qualquer coisa de vagamente semelhante, – garantia – ao espírito velado das
suas obras. Certas frases de Fernando Passos, sobretudo, inquietavam-no.
Manifestou-me grandes desejos de conhecer um dia o Artista. Mas eu só lhe pude
mostrar o seu retrato.
Falou-me pois do seu poema – um
livro em que trabalhava há muitos anos.
Não tinha título:
– O seu título – confiou-me –
será, quando muito, um compasso de musica e alguns traços a cor.
Dividir-se-ia – ajuntou – em
varias partes, em varias composições. Mas todas elas, soltas, haviam de se
reunir astralmente, hipnoticamente (foi os termos que empregou) em um só
conjunto.
E não me disse mais nada essa
noite.
Porém, algumas semanas volvidas,
anunciou-me que lhe parecia estar próximo a tocar o limite do seu livro. Com
efeito, não o publicaria antes de obter a Perfeição – "esse fluido".
– Até hoje, não existe uma Obra
de Arte perfeita. As maiores, são excertos. E eu quero o meu Poema integro! Tão
incorrigível que lhe não possam tirar uma letra sem se desmoronar.
Insinuei-lhe:
– Entanto, meu amigo, convém não
excedermos a tortura. A Perfeição é qualquer coisa de muito relativo – fator
demais, estreito, do critério pessoal.
– Não há critérios pessoais. Há Ouro!
– insurgiu-se o russo.
– Muito bem! – teimei ainda –
Dado que assim seja, unicamente como é que o meu amigo vai medir que atingiu a
Perfeição?
A resposta foi imediata:
– Não lho posso garantir, por enquanto.
Mas – tenho grande fé – no minuto em que a dobrar, sabê-lo-ei talvez
fisicamente. A água, quando ferve, levanta-se em espuma. Desta forma concluímos
que está em ebulição. Pois bem: qualquer coisa de paralelo acredito muito que
se dará com o grau abstrato que pretendo atingir. Sim, afigura-se-me, em
positivo se me afigura, que no instante de alcançar a perfeição, algum fenômeno
físico (talvez como que um súbito ajustamento) se dará defronte dos meus olhos…
na atmosfera… ou quem sabe até se nas páginas onde estão escritos os meus
poemas…
– Um ótimo assunto de novela! –
encolhi os ombros, sorrindo, a pedir outro café.
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– Uma arte fluida, meu amigo, uma
arte gasosa… Melhor, meu amigo, melhor – gritava-me Zagoriansky no seu gabinete
de trabalho, aonde pela primeira vez me recebia – uma arte sobre a qual a
gravidade não tenha ação!... Os meus poemas… os meus poemas… Mas ignora ainda!
Coisa alguma prenderá os meus poemas… Quero que oscilem no ar, livres,
entre-golfados – transparentes a toda a luz, a todos os corpos – sutis, imponderáveis!...
E hei de vencer!... Não atingi a Perfeição, por enquanto… Bem sei, restam escorias
nos meus versos… Por isso a gravidade ainda atua sobre eles… Mas em breve… em
breve… ah!...
De súbito, acalmando-se,
sentou-se numa grande poltrona magenta.
– Não lhe disse nunca, afinal, as
características principais da minha Obra. Hoje, porém, julgo dever abrir-me lisonjeiramente
consigo, desvendar-lhe os meus segredos… Creio estar prestes a chegar, enfim –
e o meu amigo encontra-se preparado, pelo seu espírito e pela minha influência,
a saber… Ouça: não escrevo só com ideias; escrevo com sons. As minhas obras são
executadas a sons e ideias – a sugestões de ideias – (e a intervalos, também).
Se lhe ler os meus versos, o meu amigo, não entendendo uma palavra, senti-los-á
em parte. E será idêntico ao seu, o caso do surdo que os saiba ler – mas não os
possa ouvir. A sensação total dos meus poemas só se obtém por uma leitura feita
em voz alta – ouvida e compreendida de olhos abertos. Os meus poemas são para
se interpretarem com todos os sentidos… Têm cor, têm som e aroma – terão gosto,
quem sabe… Cada uma das minhas frases possui um timbre cromático ou aromal,
relativo, isócrono, ao movimento de cada "circunstância". Chamo assim
as estrofes irregulares em que se dividem os meus poemas: suspensas, automáticas,
com a sua velocidade própria – mas todas ligadas entre si por ligações fluidas,
por elementos gasosos; nunca a sólido, por ideias sucessivas… Serei pouco lúcido.
Entanto, como exprimir-me doutra maneira?... Espere… Talvez… A minha Obra não é
uma simples realização ideográfica, em palavras – uma simples realização
escrita. É mais alguma coisa: ao mesmo tempo uma realização musical, cromática
– pictural, se prefere – e até, a mais volátil, uma realização em aromas. Sim,
sim, a minha obra poder-se-á transpor a perfumes!... Poder-se-á transpor, será
tudo isto, bem entendido, quando estiver completa… Finalmente, voltando ao seu
caso: ouvir as minhas composições sem entender a língua em que estão escritas,
valerá quase pelo mesmo do que conhecer uma obra de teatro só pela leitura –
ignorando a sua realização estética…
Divagava por força o meu amigo…
Eu escutara-o preso das palavras mágicas, turbilhonantes – em arrepios a Ouro.
Mas não logrei por certo diluir uma crispação de dúvida, um vago ar incrédulo,
pois o Artista, de súbito revolvendo-se, correu a uma gaveta da enorme secretária
de pau-santo – ao fundo do gabinete – puxou-a, e dela tirou um caderno azul que
brandiu aos meus olhos:
– Terá a prova! – exclamou –.
Vou-lhe ler alguns dos meus poemas, em russo! O meu amigo depois me contará a
impressão sincera da leitura.
E pôs-se a folhear o livro,
nervosamente. Admirei-me por sinal – recordo-me – que um Artista tão refinado,
tão esquisito, escrevesse os seus trabalhos num vulgarismo caderno de
estudante, de capa lustrosa, daqueles que se vendem por noventa cêntimos nas
galerias do Odeon.
– Ler-lhe-ei primeiro uma das
minhas composições mais simples: uma demonstração de ritmos, apenas.
Escutei…
Um assombro! Dissonâncias de
capricho entrechocavam-se suavemente, e eram outros tantos arfejos rendilhados,
dimanando-se em mil tons – sobre um fundo violeta inalterável, numa evocação de
perfumes lisos, cetinosos…
Inútil, com efeito, saber as
palavras para reagir o sortilégio dessa pequena obra-prima!
Disse todo o meu espanto, toda a
minha convicção…
Num entusiasmo crescente, Petrus
Ivanowitch foi-me declamando inúmeras poesias. A todas eu experimentava beleza
– em umas melhor do que noutras, claro. E o russo acrescentou depois que tinham
sido justamente as mais complexas que eu melhor adivinhara.
Lembro-me, acima de tudo, do
pasmo que me causou certa peça onde havia rodas múltiplas trabalhando em
vertigens de cor, num embaralhado e convulsivo movimento, e onde eu, atônito,
ia descobrindo as mais elegantes curvas – hélices, espirais, ramos de hipérbole
– soltas, expandidas livremente, num fogo de artifícios de sons, a girândolas.
Era, em verdade, todo um maquinismo de precisão, movido por mágica –
secretamente, em súbitas arrogâncias hialinas… estrépitos de cristais…
Por último, Zagoriansky hesitou.
Ia a fechar já o caderno. Mas decidiu-se, anunciando em frenesi:
Poema brilhante.
Ah! eu não sabia ainda coisa
alguma! Caiu por terra a minha admiração em face dos outros poemas…
Descreverei, aliás, facilmente, toda a maravilha assegurando, em perfeita
lucidez, isto só:
– Tive que cerrar os olhos desde
os primeiros sons.
Não pude sustentar – foi certo! –
o brilho coruscante, as cintilações magnéticas induzidas nas palavras
misteriosas que os meus ouvidos escutavam. Não divago. Alcanço bem o que
afirmo. Mera sugestão, talvez. Mas foi assim: os meus olhos não resistiram
abertos. E desafiaria aquele que lograsse ouvir o Milagre sem os fechar.
Era toda uma nova Arte –
diademada e última, excessiva e secreta, opiante, inconvertível, cujo divino
criador estava ali, na minha frente!
Ergui-me semi-louco, finda a
leitura. Beijei o Artista… E Petrus, em verdade iluminado por uma aureola,
gritou-me, excedido:
– Vê… vê… Não lhe dissera?... Uma
Arte gasosa… poemas sem suporte… flexíveis… que se podem deslocar em todos os
sentidos… Uma Arte sem articulações!... Uma Arte correspondente às formas
aéreas que as realidades incrustam!... Sons interseccionados, planos cortados, múltiplos
planos – ideias inflectidas, súbitas divergências… Tudo se traspassará, se
esgueirará, perpetuamente variável, ondulante – mas, em somatório, sempre o
mesmo conjunto!... Sim, sim, quero realizar em vários dos meus poemas – e,
sobretudo, na junção total – como que uma soma de fatores arbitrários. Mas uma
soma exata de fatores diversos!
E, para exemplificar, traduziu-me
então o pequeno excerto que adiante público – aonde, conforme explicou, só
pretendera suscitar uma impressão indecisa a Vago, entre tenuíssimos apoios na
realidade. Qualquer coisa impossível de abranger, escapando-se como azougue:
lençol de água movediço, ânfora douro quebrada – por isso mesmo, flébeis
ressaibos de Além. E a certeza, embora, sempre defronte – em marco…
A simples tradução literal que
deste excerto me fez, sugestionou-me em tais quebrantos que não me despedi sem
lhe arrancar a promessa de mo deixar traduzir – ou, melhor, interpretar em
português.
Efetivamente, com enormes
dificuldades, segundo os seus conselhos, terminava dias depois a versão que público
mais longe – onde quase não existe uma palavra do original, mas que, assim
mesmo, reproduz tanto quanto possível, numa língua estrangeira, a sugestão do
texto russo: pelos mesmos sons e movimentos, os mesmos timbres cromáticos, as
mesmas consonâncias…
Mais tarde, insistindo em
interpretar outras das suas obras, porquanto o artista se mostrara muito
satisfeito com a minha tentativa – Petrus Ivanowitch escusou-se sempre. Só me
permitiu que trasladasse uma composição dos dezoito anos
– "Bailado" – que não
pertencia ao seu volume, e escrevera, ainda estudante de Direito, quando vivia
só em Paris, num Hotel da rue des Écoles.
Daí, por sinal, o estranho e admirável fecho do poema.
A partir dessa noite, muitas
vezes lhe perguntei pelo seu livro – insurgindo-me contra os excessos da sua
tortura. Urgia, com efeito, publicar essa maravilha, destinada por força a
fazer uma revolução em todas as Artes.
Ele quase sempre, em desânimos ou
entusiasmos, me volvia:
– Ainda é cedo… ainda é cedo…
Ainda não triunfei… A gravidade ainda atua sobre a minha obra… De resto, creio
faltar pouco… Estarão mesmo já "perfeitos" muitos dos meus poemas –
todos até, pode ser, considerados isoladamente. Mas a soma não está certa… Há ainda
escorias no conjunto…
Uma tarde porém, não o vendo há
três dias, notei-lhe uma expressão nova no rosto – um ar febril em todo o seu
aspecto. Dir-se-ia que emagrecera visivelmente nessas poucas horas.
Interroguei-o. Confessou-me:
– Ah! meu amigo… meu amigo… É que
avancei muito desde que nos separamos… Hoje, sim, creio nos meus
pressentimentos! Estou certo de atingir, breve, a Perfeição – o impossível de
Esquiveza! Mas é estranho. Na minha glória, crispa-se afiladamente um vago
remorso…
– Nervosismo, sem dúvida.
– Esperaremos…
Seguiu-se uma semana de calma
relativa, em que evitou referir-se à sua Obra. Apenas, durante ela, uma noite,
aludindo à sua ânsia de Artista, me falou do receio que tivera sempre de ver
estiolar o seu gênio à força de intensidade. E contou-me que desviava os olhos
muitas vezes, para o não por em vibração – acarinhava-o, beijando-se nos
espelhos, – falava a sós com ele – dizia-lhe "meu amor" – tratava-o,
enfim, com os desvelos das mães que se levantam, noite alta, no inverno, para
aconchegar a roupa dos seus filhos…
Descreveu-me também a agonia
perdida de fixar toda a riqueza que lhe atravessava o espírito – no ciúme
escoante, simultâneo, de se não poder concentrar em uma só ideia:
– Veja… veja como é terrível, meu
caro!... O ciúme dum homem que não lograsse nunca possuir só a mulher que
tivesse entre os braços – por que, no minuto da posse, a recordação duma outra,
de muitas outras, se lhe interceptaria estridentemente… Um horror… um horror…
E foi a primeira vez que mandou
vir absinto – ele, que bebia só xaropes…
… Até que principiou a faltar
todas as noites no Café aonde, por hábito, há muito nos encontrávamos…
Eu corria a sua casa, a ver se
adoecera… Recebiam-me, em lágrimas, sua mãe e sua
irmã: "Doente não, com
efeito. Mas fechava-se horas esquecidas no seu gabinete, recusando comer – num
desassossego contínuo, a passear, como as feras…"
As próprias suplicas de Marpha,
que ele atendera sempre, eram hoje inúteis. Gritava-lhe por detrás da porta:
– Trabalho! Trabalho!... É o último
esforço!...
Só duma vez consegui romper o seu
isolamento.
Acolheu-me em júbilo – quando me
preparava para sustentar a sua rudeza… quem sabe até se um dos seus funestos
ataques de cólera, que já tivera ensejo de presenciar…
– Sim! Sim! É bem verdade! Chego
a passos largos… Não me enganara… Não me enganara…
Sabê-lo-ei positivamente,
materialmente, visivelmente… Alvejo já, não sei em quê, uma modificação muito
vaga - molecular, presumo… Poucos dias mais, e – enfim!... A Perfeição!
Depois, falou comigo alguns
momentos – natural. Roguei-lhe que não descuidasse a sua saúde – mas deixei-o
defronte duma grande chávena de café fortíssimo, onde despejara meio frasco dum
estranho liquido roxo aromatizado…
Preveni sua irmã. Esta teve um
suspiro, e pareceu não dar grande importância ao fato. Mas, ao mesmo tempo,
notei pelo seu rosto uma palidez momentânea… um singular constrangimento em
toda a sua atitude…
Despedi-me – confesso – muito
preocupado. Breve porém, no meu eterno egoísmo, desapareciam essas
inquietações. E, em verdade, durante os oito dias que saí de Paris não me
lembrei, sequer um instante, da minha última visita ao russo – da sua perigosa
situação.
Na manhã seguinte ao meu
regresso, dormia ainda quando alguém bateu brutalmente à porta do meu quarto.
Fui abrir, disposto a esbofetear
o intruso… e, atônito, deparei com Zagoriansky! – um Zagoriansky terrível: de
cabelo em desalinho, olhos injetados, gravata desfeita; brandindo na mão o
caderno de capa azul que continha o seu Poema.
Em lágrimas e gritos raspados – mal
lhe abri – começou, arquejando:
– Loucura… loucura… A Perfeição!...
O Maximo de esquiveza… Mas era assim… era assim… Alcancei-A! A gravidade não atua
mais sobre os meus versos… Para que me queixar?...
Doido… doido… Em todo o caso, o
minuto infinito!... Não lhe dissera?... Havia de o saber perpetuamente… tinha
que o ver!... Pois foi tal e qual – meu pobre amigo – tal e qual!... Quando
viera de ajustar a última palavra, houve um estalido seco, um baque surdo – um
ruído de arfejos, a escoar-se… sutil… Olhei as folhas…
Todos os meus versos, libertos
enfim, tinham resvalado do meu caderno – por voos mágicos!...
E desfolhava-me o livro…
Hirto, oscilou-me então um
arrepio de gelo… As folhas, brancas… Apenas, intacto, o frontispício onde se
liam o nome do Poeta e uma data. Em cada página, só o número da folha e alguns
borrões vermelhos que, inexplicavelmente – conforme já reparara – sujavam, de
quando em quando, o texto escrito numa anilina violeta muito pálida.
– Meu amigo… meu amigo… No
espaço!...
Os meus poemas… no espaço… ah!
ah!... entre os planetas!...
E o resto foi um rodopio de
gargalhadas espumosas, contundentes, alucinantes…
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Cinco dias mais tarde, doido de fúrias,
Petrus Ivanowitch, apesar da imensa dor de sua família, era internado numa casa
de saúde, próximo de Meudon, onde puseram ainda assim muito dificuldade em o
receber, devido à misteriosa violência dos seus ataques – crises estranhas,
convulsas, espasmódicas, desconhecidas por todos os alienistas: como que um
feitiço medieval… um "envoûtement" de missa negra…
Procurou-se por toda a casa, por
todo o jardim, o caderno em que o Artista escrevera a sua Obra. Debalde…
Restava só esse outro, idêntico – mas com as páginas limpas…
Horas perdidas, eu e Marpha nos
debruçamos sobre ele, a estudá-lo, a querermo-nos convencer que era outro –
outro que o louco decerto comprara, depois de ter destruído o que continha a
sua Obra… Convencermo-nos… como se não fosse a evidência…
E, no entanto, as manchas de umidade
que existiam na capa do primeiro caderno, lá se encontravam também na daquele –
assim como os borrões vermelhos… entre eles o que, mais alastrado, existia na
página 22 onde estava escrito o excerto que traduzi com o título de "Além"…
E era tudo quanto escapara duma obra genial!...
… As noites inquietantes,
confusas – repito – que eu e Marpha sofremos, olhando, defronte de nós, esse
caderno vazio, aberto inutilmente… tendo que acreditar, e não podendo acreditar…
Um sonho quase… uma obsessão…
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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