As ruínas da
Glória
A pouca distância da cidade de São Paulo, a um lado da
estrada que vai para Santos, havia um pequeno botequim, ou para melhor dizer,
um desses estabelecimentos que os franceses chamam — "cabaret" —
destinados propriamente para beber e palestrar.
Era seu dono um alemão que, há mais de vinte anos, se
achava no Brasil, homem de cinquenta a sessenta anos, rubro, corpulento, porém
fleumático como o são quase todos os filhos dessa bela terra de Schiller. Por
uma noite do mês de outubro achava-me eu e dois amigos nesse botequim. A chuva
caía a cântaros sobre a terra, o trovão rugia no espaço, e a ventania sacudia
com violência as vidraças da salinha onde estávamos.
Nossa conversação era alegre e expansiva, os cachimbos
fumegavam cheios de excelente "werwick" — e o ponche crepitava diante
de nós fazendo voltear fantasticamente a sua chamo de um belo azul-pálido.
Tínhamos por costume, eu e meus dois amigos, passar o
dia todo em casa, e sair à noite — à busca de aventuras, como dizíamos.
Líamos nesse tempo fervorosamente todas as obras
sombrias e exaltadas que aviventam a imaginação e povoam a alma de quimera e
sonhos irrealizáveis.
Semelhantes ao herói da Mancha, nosso cérebro tinha-se
embebido dessas ilusões sinistras e o contínuo excitamento da imaginação nos
acostumava a viver em um mundo de visões e fantasias.
Eu era um ardente apologista do autor de Manfredo,
amava a noite e as trevas e em falta de Yung-Fram invocava os meus espíritos do
topo de uma colina.
Alberto procurava divisar nas trevas da noite as
sombras dos guerreiros. Recitava a maior parte dos poemas de Ossian, e gostava
das neblinas, do vento e da tempestade.
Finalmente, José era apaixonadíssimo do desvairado
fantasista alemão Krespel, Deunner, Trabacchio e o medonho Copelius de
contínuas estavam a seus olhos entre círculos de chamas avermelhadas como ele
dizia.
A trindade era perfeita, pelo que se vê.
Conversamos alegremente, disse eu, tínhamos bebido
nossa boa quantidade de ponche e, depois de muito palestrar, dispúnhamo-nos a
sair.
— Vamos, dizia Alberto de pé no meio da sala.
— Vamos, repetimos nós.
— Porém, vejam, senhores, disse-nos o alemão do seu
canto, a chuva continua cada vez pior e é uma temeridade...
— Qual temeridade, por algumas gotas de água no lombo
não nos devemos amedrontar; vamo-nos embora.
— Acendamos os cachimbos, disse José, e partamos sem
demora. Dito.
Nesse momento a porta abriu-se, uma rajada de vento
entrou pela sala e um vulto apareceu no limiar.
— Quem está aí? gritou o alemão.
— Eu! respondeu uma voz rouca.
E o homem entrou para a sala.
Sua figura era alta e magra, seu rosto macilento como
o de um cadáver, seus movimentos pausados e lentos.
Sobre o nariz curvo como o bico de um abutre estavam
acompanhados uns óculos azuis, através de cujos vidros se viam brilhar os
olhos, dois carbúnculos. A boca era fina e cerrada, a barba lisa e pontiaguda.
Não sei o que havia de frio e tumular naquele homem
que nos impressionou; dir-se-ia o fúnebre hóspede da balada alemã, o visitante
sinistro que coberto da poeira da campa deixava o cemitério para ir bater à
porta de um castelo em noite de festa.
— Que quer o senhor? perguntou-lhe o alemão.
— Velas e uma garrafa de vinho, respondeu o
desconhecido depositando o dinheiro sobre a mesa. Depois voltou-se e principiou
a contemplar-nos atentamente.
Palavra que o seu olhar me derramava uma sensação inexplicável
pelo corpo; era como a lâmina de um florete que me ia tocar no coração.
A voz do alemão veio tirá-lo de sua contemplação.
— Eis aqui o que pediu, disse ele. O desconhecido
tomou as velas e a garrafa, pô-las embaixo do capote e saiu.
— Quem é este homem? perguntei ao dono da casa.
— A falar-vos a verdade, não sei; há perto de um ano
que ele anda por estes arredores, aparece várias vezes por aqui, e tenho ouvido
dizer que se hospeda nas ruínas da Glória.
— Nas ruínas da Glória! exclamou José.
— Sim, é talvez um mendigo, ou vagabundo.
— A propósito, disse Alberto, vamos às ruínas da
Glória... Este sujeito me interessa, é uma dessas personagens
"hoffmânnicas", que prometem um belo romance! Há naquele tipo todos os
requisitos para um livro de lenda, talvez um Castil belga, de Victor Hugo;
vamos à Glória!
— Está dito, vamos descobrir o ninho desta ave
noturna; vamos.
E nós nos levantamos a um tempo.
Alguns instantes depois estávamos na estrada e
caminhávamos em direção às ruínas da Glória.
A Glória foi antigamente um desses templos vastos e
sombrios, que nos países cristãos muitas vezes sói encontrar-se longe do
bulício das cidades no seio das montanhas, nas planícies ou nas margens dos
rios.
Não era propriamente um convento, um mosteiro, porque
nenhuma ordem de monges habitara aí, porém ao lado da igreja, os grandes
salões, os corredores prolongados, os quartos, as celas não tinham sido feitos
por luxo ou superfluidade. Dizem que havia ali noutras eras um seminário onde
os moços que desejavam seguir a carreira eclesiástica se recolhiam e estudavam
dirigidos por um bispo santo e ilustrado que aí morava.
Poucas ou nenhumas são as informações que tenho a
respeito da Glória; mais tarde com a morte do bispo o seminário desfez-se e a
habitação ficou deserta.
Longe da cidade em lugar ermo e agreste, bem difícil era
cuidar-se do antigo seminário; o edifício foi-se arruinando com o correr dos
tempos de maneira que hoje não é mais do que um resto de demolidas paredes, uma
torre erguida entre plantas bravias e um montão de pedras.
No tempo em que se passava esta história havia ainda
uma parte do edifício poupada pelo tempo, eram dois salões ainda bem
conservados, apesar do limo e da umidade das paredes, algumas câmaras ao
rés-do-chão, e uma grande varanda no fim de um corredor cujas paredes ameaçavam
cair a cada momento.
Dito isto continuemos a narração.
A chuva tinha cessado o seu ímpeto, porém o céu era
sombrio como uma lousa de mármore preto sobre um túmulo servindo-me da
expressão de Lamennais, e o vento corria gelado e desabrido intrometendo-se
pelas dobras de nossos capotes.
Estávamos já perto do portão coberto de lianas e
trepadeiras selvagens que precede as ruínas.
Bebemos cada um alguns goles de Kirschenwaser por
causa do frio, empurramos depois a porta e entramos no campo vasto e despido
que está diante da arruinada igreja.
Como tudo era triste! parecia-me que entrávamos para
uma região nua e gelada onde a vegetação tentava erguer-se debalde, onde o
vento corria sem empecilhos. Lá no fundo, por entre as brumas da noite, a torre
erguia-se muda e silenciosa como um imenso fantasma; os vultos confusos das
árvores desenhavam-se por detrás dela agitando-se ao vento da tempestade.
De quando em quando surgia uma chama esverdeada,
parecia lamber as ruínas e depois desaparecia; atrás vinha outra, depois outra
torcia-se, girava e também se esvaecia, para dar lugar a novas que se erguiam.
Lembrei-me das legendas dos — Lutins e Farfadets — e
confesso que me senti um pouco impressionado; minha emoção aumentou quando
contemplei a torre, cuja cúpula de porcelana molhada pela chuva se iluminava de
pálido brilho aos fogos errantes da noite.
— Vê, Alberto, como é triste assim aquela torre!
Dir-se-ia o rei das florestas com seu diadema de fosforescências.
— É verdade, respondeu-me Alberto, lembra-me...
E o meu amigo começou a recitar aquela balada de
Goethe intitulada — "Der Koenig".
A poesia era triste e funérea; quando Alberto acabou
de recitar, todos estávamos trêmulos e impressionados; olhávamos uns para os
outros receosos e depois transportávamos os olhares para a sombria torre que se
erguia ao longe e na sua tenebrosa mudez pareceu ter-se vestido com toda a
majestade sinistra do — Rei dos Aulnes.
— Para diante! gritou José. E nós nos encaminhamos
para as ruínas. Ao chegar junto delas uma coruja ergueu-se arrebatada e foi
pousar, piando lugubremente, sobre as denegridas muralhas.
— Mau, mau, murmurou José. Paramos. Estávamos junto ao
vestíbulo.
— Então? ninguém entra? perguntou Alberto. Eu e José
ficamos quietos e mudos.
— Ah! têm medo! Pois eu vou. Dizendo isto, afastou com
uma bengala as plantas bravias que interceptavam a passagem e desapareceu pelo
vestíbulo arruinado.
Nós ficamos algum tempo a olhar um para o outro,
depois José me disse:
— Ele volta já: eu o conheço; vendo que o não
acompanhamos não terá ânimo de continuar.
Depois de esperarmos algum tempo, como Alberto não
aparecia, eu disse a José:
— Vamos, que diabo de medo tens tu?
— Espera, retorquiu-me ele.
— Deixo-te só se não vens, e adiantei-me para o
vestíbulo. José seguiu-me.
Passando o vestíbulo subimos um pequeno degrau, de
pedra; — um corredor frio e tenebroso apresentava-se diante de nós; José parou:
— Ah! tu não entras? disse eu, espera; — e enfiei-me
pelo corredor; meu companheiro deu um salto e uniu-se a mim.
Seguimos pelo corredor adentro; o ar era bramido e de
um cheiro estranho, o chão escorregadio, as trevas cercavam-nos profundamente e
nós caminhávamos tateando.
Três minutos tínhamos talvez andado quando pelo ar
mais frio e desembaraçado, por esse zunido agudo e contínuo que julgamos ouvir
no silêncio, percebemos que estávamos em um salão: então eu parei, José
segurou-se a meu braço.
— Fiquemos aqui, disse eu, gritemos por Alberto, há já
bastante tempo que nos deixou.
Três vezes repetimos gritando o nome de nosso amigo e
nossa voz retumbou lugubremente pelos desertos recintos, os morcegos
agitaram-se no ar batendo as longas asas, porém, ninguém respondeu.
— E esta? chamemos novamente por ele.
— Alberto! Alberto!
Mesmo silêncio; a noite era fria e tempestuosa, as
aves noturnas piavam dolorosamente, porém nosso amigo não respondia.
Uma ideia sinistra passou-me pela cabeça.
Vamos para diante, José; vamos para diante, repeti
aceleradamente.
Então principiamos a errar pelas trevas, o recinto
parece que amplificava cada vez mais suas paredes, porque nós andávamos e não
encontrávamos um termo!
O chão era úmido e escorregadio, o ar estava prenhe de
um aroma estranho, um cheiro de ruínas, um odor de sombria antiguidade.
— Oh! gritemos de novo, disse eu, trêmulo e assustado.
— Alberto! Alberto! clamamos com todas as forças dos
pulmões.
Porém nada! Apenas um gemido abafado e doloroso chegou
a nossos ouvidos.
— Deus! clamamos horrorizados. Afastei um passo. José
tremia convulsivamente agarrado em mim.
De repente uma luz surgiu ao longe e o vulto de um
homem atravessou lentamente o fundo do aposento. Reconheci imediatamente o
desconhecido do botequim, porém, longe de nos tranquilizar, a sua presença veio
aumentar o nosso terror.
Com efeito, era-lhe medonha a figura naquele momento.
O esverdeado cadavérico do rosto crescia ao clarão
mortiço da vela, seus óculos azuis davam aos olhos um aspecto de duas negras
concavidades, a cabeça calva e reluzente semelhava uma fronte de morto! A
funérea solenidade do seu andar, a imobilidade do rosto fazia-me recordar todas
as lendas que ouvira na minha infância.
Depois de haver atravessado lentamente o fundo do
salão, chegando perto de um corredor, voltou o rosto para trás, exalou um
gemido e desapareceu.
Parecia-me que as trevas se condensavam em torno de
nós. A figura do desconhecido entretanto, não me saía dos olhos e eu julgava
ainda ouvir aquele doloroso gemido que lhe escapava do seio.
Oh! é talvez um desgraçado! disse eu comigo, para que
hei de temê-lo? Vítima do mundo e dos homens, vem talvez, deslembrar seus
martírios na triste quietação destas ruínas!... porém, onde está Alberto, meu
Deus?...
— Voltemos, voltemos, dizia José, talvez ele já
saísse.
— Custe o que custar! clamei eu desesperado, devesse
eu morrer, é preciso buscá-lo! Vamos.
— Mas, para onde? para onde? dizia José, não vês que
tudo é escuro, que não conhecemos estes lugares?...
— Pois então gritemos, repliquei.
— Para quê? não nos temos cansado de gritar? Olha,
Alberto já saiu.
— Ah! ocorre-me uma ideia, exclamei, puxando José pelo
braço.
— Qual?...
— Chamemos o desconhecido, disse eu com mais força; o
caso é sério e devemos banir estes terrores infantis.
E sem esperar mais tempo pus-me a gritar.
— Oh! senhor! Oh, senhor destas ruínas! Oh! lá!...
— Oh lá...
Poucos minutos depois a luz apareceu e o sombrio
habitador das ruínas apresentou-se no limiar de uma porta, mudo, impassível
como uma estátua; através porém de seus óculos os olhos vivos e penetrantes
como pontas de floretes estavam fixos sobre nós.
Senti-me esmorecer-me um momento, porém, lembrando-me
de Alberto, a resolução voltou.
— Senhor, disse eu, um nosso companheiro... um amigo
que veio conosco desapareceu aqui, nós o buscamos, porém é impossível achá-lo
sem vosso auxílio, socorrei-nos, pois.
O desconhecido abanou lentamente a cabeça, e disse com
voz rouca e pausada:
— Moços, fizestes mal, muito mal em vir aqui a estas
horas; há trinta anos que um drama de lágrimas e de sangue reproduz-se aqui
todas as noites entre o pio das aves e o sibilo do vento! fizestes mal, muito
mal em vir aqui!...
Senti-me possuído de um terror inexprimível a estas
palavras e José agarrou-se lívido a meu ombro. Entretanto, era preciso ver o
fim de tudo isto, saber de Alberto; venci a minha repugnância e continuei:
— Mas atendei, senhor, é impossível agora partirmos
sem o nosso companheiro, ajudai-nos a procurá-lo, nós vos seremos reconhecidos.
Nesse momento um turbilhão de vento úmido e gelado
entrou pelo* vasto recinto e o trovão fez-se ouvir surdo e medonho no céu.
— Vedes? murmurou o velho, a tempestade principia a
sua orquestra, em breve tempo os acordarão para cantar a monodia dos túmulos!...
Muitos são os que repousam aqui! muitos!... entre eles há vinte anos que minha
filha dorme no seu leito de pedra, vestida ainda com as suas roupagens de noiva
e a sua coroa de ciprestes! Tenho chorado lágrimas de sangue, tenho me
arrebentado em soluços há dez anos sobre os ladrilhos de sua sepultura, para
que ela me diga uma dessas palavras ternas e doces que repetia outrora nos
braços de seu noivo, para que ela me perdoe! porém, tudo é baldado!
E o desconhecido calou-se; eu estava impressionado,
não mais de terror, porém de uma tristeza sombria, de uma compaixão sem termos.
No entretanto a tempestade crescia e o vento uivava
dolorosamente nos arvoredos lá de fora.
— Bem, disse o desconhecido, lentamente do vão da
porta, vamos procurar o vosso companheiro, quero ficar só, quero que saiais o
mais depressa possível, vamos.
Começamos então a errar pelos aposentos sombrios do
arruinado edifício; adiante ia o desconhecido com a vela na mão, lento e
pausado, eu o seguia; José era arrastado por mim, lívido e convulso.
Depois de termos atravessado em vão alguns aposentos e
corredores, depois de havermos gasto talvez um quarto de hora nessa sombria
procissão, um gemido doloroso e pungente como partido de um leito de morte
chegou a nossos ouvidos.
Meus cabelos se eriçaram; José deu um grito e puxou-me
para trás.
— Oh! murmurou o. velho, é do leito dela que saiu
aquele gemido! Sim, porque é aí que ela dorme! Oh! deve-lhe doer muito a ferida
que tem no seio, que verte continuamente ondas de sangue!... muito!
Assim falando caminhou para o lugar donde partira o
gemido! era no fundo de um pequeno aposento, de uma porta que dava para um
jazigo.
Chegando aí ergue a vela à altura da cabeça para
melhor ver; por detrás dele mergulhei ávidos olhos no jazigo; um homem estava
de bruços no chão e sua respiração soava estrepitosa.
Recuei um passo.
— Aproximai-vos, aproximai-vos, vinde velo, é o vosso
amigo! através dos frios ladrilhos que segredos não terá ele murmurado à minha
filha!
Cheguei-me de novo e contemplei atentamente o vulto;
era Alberto, não havia duvidar-se.
Tomei-o nos braços, ergui-o, estava lívido e banhado
em suores frios, seus dedos crispados pareciam cerrar fortemente alguma coisa.
— Alberto! exclamei, procurando pô-lo de pé; ele abriu
os olhos, correu-os em torno, desvairado, como se procurasse alguém e depois
tornou-os a cerrar exalando um suspiro.
— Ajudai-me a levá-lo, disse eu a José, e saímos.
Poucas horas depois tínhamos conseguido chegar a casa;
Alberto ressonava febril em seu leito; José tinha ido ver o médico e eu velava
o doente.
***
Três dias tinham decorrido depois dessa noite
sinistra; à cabeceira de Alberto, de quando em quando, aparecia a figura calma
e pálida do Dr. V., que examinava atentamente o doente e depois retirava-se
para conversar comigo e José.
O delírio e a febre não tinham abandonado o pobre
mancebo, de contínuo, no seu desvairar, ele repetia palavras suplicantes,
parecia invocar uma personagem desconhecida, depois supunha apertar no seio
alguma imagem querida e encontrando o vácuo caía desmaiado sobre o travesseiro.
Dessa noite fatal uma impressão profunda tinha-me
ficado n'alma; aquele velho estranho, suas palavras fantásticas, tudo estava
vivamente gravado em minha imaginação.
José estava ocupado, Alberto livre um momento de seu
delírio parecia dormir; aproveitei a ocasião para conversar com o Dr. V. e ver o
seu modo de pensar a respeito de todos esses fatos extraordinários.
Era o Dr. V. um homem de cinquenta anos, sua mocidade
tinha-se passado debaixo do céu brumoso da Alemanha para onde o mandara seu pai
estudar.
Apesar de ter no cérebro um mundo de inteligência e de
conhecimentos, o Dr. V. tinha um modo de pensar estranho e admitia as crenças
as mais absurdas.
A Alemanha é o país das alucinações da inteligência,
disse-o Gerard de Nerval, dos abismos da ciência germânica partem vapores que
atordoam o espírito. O doutor tinha-se embebido de todos esses sonhos nebulosos
de todos esses sistemas extraordinários de excentricidade que povoam a terra de
Schiller e de Goethe.
— Muitas vezes ouvi eu o som da rebeca gemedora de
Krespel, dizia-me ele, e o eco dos sinos de cristal debaixo do sabugueiro;
Klein Zach é uma realidade na Alemanha, e os Copelius encontrei-os aos centos.
— Bem, doutor, disse-lhe eu, depois de haver ainda uma
vez contado a história da noite das ruínas; dizei-me francamente o vosso modo
de pensar a respeito disto, não julgais que em todo este drama há alguma coisa
de além-túmulo?
— Quem sabe? murmurou o doutor limpando amorosamente
os vidros dos óculos com o lenço de assoar, quem sabe?...
— Porém, dizei-me, a aparição dos espíritos não
repugna a razão, não é contrária à ideia de bondade e justiça que depositamos
em Deus?
— A crença no mundo tenebroso, respondeu-me o doutor, tem
existido em todos os povos, em todas as gerações. Santo Agostinho, na
"Cidade de Deus", e Legendre, no seu "Tratado da Opinião",
dizem que negar o prestígio dos demônios e dos espíritos é não crer na
Escritura Santa; a Bíblia nos fala da aparição de Samuel e muitos outros fatos
sobrenaturais; Suetônio conta que, depois de assassinado, Calígula errava em
seu palácio à noite, sob a forma de uma larva gemedora. Além disto a razão nos atesta
claramente que depois desta vida haverá um lugar de recompensa e outro de
punição; ora, quem nos diz que a felicidade dos bons não será uma vida nova em
um planeta de delícias, e o castigo dos maus errarem continuamente por esse
mundo em que viveram até que na consumação dos séculos, quando estiverem
purificados dos seus delitos, mergulhem-se no seio da divindade de que são
aparências?
Confesso que gostei desta tirada panteísta do doutor.
Tive sempre uma inclinação irresistível pelas doutrinas de Spinosa.
Restava-me, entretanto, uma dúvida.
— Admito a vossa hipótese, porém, dizei-me que culpa
têm os vivos em tudo isto para serem perseguidos pelas sombras e aparições?...
— Os espíritos, replicou o doutor, sorvendo uma pitada
de rapé, os espíritos também são muitas vezes emissários da divindade; ora, é
para punir um malfeitor que eles aparecem, ora, para um aviso celeste, ora,
enfim, para aliviar muito sofrimentos. Assim, aparecem aos assassinos, as
sombras de suas vítimas, aos virtuosos o espectro do finado que lhes vem pedir
orações, aos mancebos a imagem de suas noivas ou amantes, mortas na flor dos
anos...
Nesse momento, um gemido triste e prolongado partiu do
seio de Alberto, eu e o doutor voltamo-nos vivamente para o leito do doente.
Alberto tinha-se solevantado no travesseiro e com a
boca espumante, os braços estendidos, os olhos inflamados e sanguinolentos
olhava fixamente para o fundo do aposento e murmurava: — Vem! Vem!...
— Meu Deus! Doutor, o que será isto, vede como está!
exclamei eu.
— Oh! dá-me um pano de tua branca vestimenta, anjo de
asas douradas e diadema de luz!... leva-me contigo para o país dos sonhos
eternos. Vem porque minha alma chora de amores por ti!
Dizendo estas palavras o moço escondeu o rosto
abraseado nas mãos e caiu esmorecido sobre o leito.
— Vedes? disse o doutor com voz sinistra, vedes?
— Sabe Deus só o que vai por aquela cabeça.
Uma dor amarga e sem limites passou-me pela alma,
encostei a fronte sobre a mão e comecei a pensar.
Seriam onze horas da noite, tudo estava quieto e
silencioso; uma bugia ardia junto do leito do doente, o resto perdia-se na
sombra.
De repente um calafrio correu-me pelo corpo, ergui-me
pálido.
— Que tendes? perguntou-me o doutor.
— Não ouviste um ruído de passos ali no fundo? disse
eu apontando.
— Não; respondeu-me o médico.
Nesse momento o ruído fez-se ouvir de novo, porém mais
pronunciado, mais distinto.
O doutor, até ali impassível, franzia o sobrolho e
levantou-se.
— Por Deus que agora ouvi eu! exclamou, tomando a vela
e dirigindo-se para o fundo do aposento. Eu o segui.
Tudo estava sossegado; nada demais havia ali.
— Vede! no entanto eu ouvi bem distintamente um
arrastar de passos.
— E eu.
O doutor voltou lentamente e colocou a vela sobre a
mesa e pôs-se a meditar, pensativo sentei-me também; Alberto ressonava suarento
e febril, e a vela ardia muda e silenciosa no seu castiçal de bronze.
Alguns dias passaram-se depois disto; o delírio tinha
abandonado Alberto, porém o moço estava lívido e descarnado e sua razão parecia
ter-se abalado profundamente.
Uma noite, tinha o Dr. V. ido à sua casa fazer algumas
determinações, José o acompanhou e eu apenas achava-me ao lado do doente.
Depois de me haver tristemente contemplado com seus olhos amortecidos, meu
pobre amigo tomou-me a mão e disse:
— Eu sei que não me levantarei mais daqui, por isso é
preciso que te conte tudo, tudo antes de morrer...
— Morrer! Alberto, não digas isso! exclamei
aproximando-me mais do leito.
— Não me procures iludir, prosseguiu ele, a voz que me
murmurou esta sentença ainda a tenho eu no ouvido; escuta-me.
Ele acomodou-se um momento no seu leito e continuou:
— Naquela noite em que fomos às ruínas afastei-me de
ti e de José, bem te lembras: enfiei-me pelos corredores e aposentos e depois
de errar alguns momentos, senti uma curiosidade irresistível, uma atração
insuperável chamar-me para um ponto das ruínas, caminhei; de repente uma
espécie de harmonia misteriosa, doce, baixinha, chegou-me ao ouvido e um clarão
tépido e brando veio de longe ferir-me os olhos, adiantei-me mais, então
divisei um vulto de mulher que me estendia os braços. Oh! ela era bela como um
anjo de Deus; seus longos cabelos de reflexos dourados escapavam em ondas de
uma grinalda de ciprestes que tinha na cabeça, seus olhos eram puros e meigos,
sua tez branca como a neve, de um lado do seio suas alvas roupagens estavam
caídas, e uma onda negra de espumoso sangue corria em borbotões de uma larga
ferida, e ensopava-lhe a vestimenta.
"Fiquei estático no meu lugar, imóvel como se
fosse ferido do raio. Então a sombra moveu imperceptivelmente os lábios e sua
voz harmoniosa me chegou aos ouvidos: — Vem! dizia ela. Eu ouvi, meu amigo! eu
ouvi, disse Alberto incendendo os olhos, não foi ilusão; tão certo como estou
neste leito de morte e como daqui só sairei para o cemitério, eu a ouvi!
Segunda vez mais lânguida, mais triste ela me disse: —
Vem!... Então um calafrio de felicidade correu-me pelo corpo, minhas artérias
bateram com violência e eu estendi o braço dando um passo. Tudo desapareceu e
eu apenas encontrei o vácuo, caí... quando despertei tu me erguias."
Alberto respirou um momento e com voz cansada
continuou:
— Agora todas as noites eu a vejo bela, ensanguentada
sempre! eu a vejo e amo-a porque ela é um anjo, porque ela me chama! Eu não
posso mais viver, há uma voz que me murmura n'alma que quando o gelo da morte
me cair sobre os olhos eu serei eternamente feliz; oh! eu não quero mais viver!
Dizendo isto Alberto caiu desanimado sobre o
travesseiro. Um momento depois dormia um profundo sono. À noite chegou o
doutor.
— Como vai o moço? disse.
— Melhor, falou sossegadamente comigo e depois
adormeceu; notei-lhe apenas um desânimo e uma tristeza sem termos.
— Bem, vamos vê-lo.
E o Dr. V. encaminhou-se para o leito de Alberto,
ouviu-lhe a respiração, passou-lhe a mão pela testa, tomou o pulso e
voltando-se para mim disse:
— Sabes uma coisa? Vosso amigo está salvo.
Imensa foi a alegria que senti dentro d'alma a estas
palavras; parecia-me que tiravam um grande peso de sobre meu peito, que
despertava de um pesadelo.
Uma hora depois o doutor retirou-se dizendo que como
não havia mais perigo era desnecessária a sua presença ali essa noite, que no
dia seguinte voltaria.
Como Alberto dormia sossegadamente, deixei um criado
junto a seu leito e fui para um quarto descansar um pouco.
Depois de haver dormido longo tempo, fui despertado
pelo criado que me sacudia ansiosamente de um lado para outro repetindo o meu
nome.
— Que diabo é isto? gritei eu sentando-me na cama.
— Oh! senhor! levante-se, levante-se depressa que o
Sr. Alberto morre.
Pular da cama, enfiar meu sobretudo, atravessar a casa
e ir ao quarto de Alberto foi um momento.
Quando cheguei o meu amigo estava mais lívido que a
morte, o suor corria-lhe em abundância na fronte, seus olhos ardiam de uma
chama terrível.
— Alberto! Alberto! o que tens? disse eu arrojando-me
ao leito e tomando-lhe a mão.
— Vou morrer, meu amigo! murmurou ele com voz fraca e
arquejante.
— Oh! não! tu não morrerás! exclamei eu. Guilherme,
vai à casa do Dr. V., dize-lhe que venha a toda a pressa, a correr.
— É inútil, murmurou Alberto, é inútil... Sinto já o
hálito da morte passar-me pelo rosto, sacudir-me os cabelos!...
— Pelo contrário, meu amigo, o doutor disse que em
poucos dias ficarias bom.
— Não me dês esperanças, disse ele, passando a mão
pelo rosto onde a morte principiava horrivelmente a sua obra de demolição, não
há medicina que me cure! Hoje eu a vi pela última vez, seu rosto estava mais
belo do que nunca, porém o sangue que lhe corria do seio era mais abundante!
Ela me chamou com ânsia... preciso ir... Há alguma coisa que me diz dentro d'alma...
que em poucos minutos estarei com ela!
Aqui a voz do meu amigo foi se tornando cada vez mais
fraca e rouquenha. Ele pendeu a cabeça ao meu ombro, e eu sentia seu peito
ofegar convulsivamente.
Um instante depois ele ergueu de novo a cabeça; seu
semblante estava horrivelmente descomposto! então, com essa voz triste e
sumida, voz de moribundo, falou assim:
— No entretanto... quantas saudades... não levo eu
deste mundo! quanta amargura... não tenho agora na alma!
E as lágrimas precursoras da morte, gota a gota caíram
de seus olhos.
— Oh! não ter-vos junto de mim... nesta hora
suprema... Oh! meu pai!... Oh! minha mãe!... não poder vos abraçar e...
Alberto calou-se de novo, sua cabeça caiu sobre meu
ombro, de novo a voz dele, surda, murmurou estas palavras:
— Adeus... adeus...
Depois cerrou-me a mão fracamente e pareceu descansar
um pouco-.
Alguns minutos passaram-se e a mão de Alberto que eu
guardava entre as minhas, tornou-se gelada: afastei-lhe rapidamente a cabeça do
seio, ele rolou inerte sobre o leito. Estava morto!
Nesse momento a lamparina que ardia em um canto exalou
seu último clarão e apagou-se. Ouvi então um ruído semelhante ao de um vestido
de mulher; depois uma sombra branca, lenta, atravessou diante de mim até o
leito de Alberto, e ouvi o estalar de um beijo sobre a face pálida e fria de
meu desgraçado amigo; depois resvalando no ar desapareceu a sombra.
Saí doido do aposento. O dia entrava pelas janelas.
— Como vai Alberto? perguntou-me José quando saía do
seu quarto esfregando os olhos.
— Já não existe! disse eu soluçando.
— Morto! exclamou José, e lançou-se desesperado em
meus braços.
Dois anos tinham-se passado; de meus antigos
companheiros um dormia à sombra dos ciprestes do cemitério, outro tinha partido
para onde não o sabia eu.
Por uma tarde de estio eu tinha ido passear ao
hospício de alienados de São Paulo. Entre os desgraçados que aí viviam deparei
com um cujo aspecto causou-me uma impressão extraordinária.
Seu olhar era sinistro e medonho, seus dentes cerrados
continuamente, rangiam como os de um animal feroz.
— Quem é este homem? perguntei a um guarda que me
seguia.
— É um ente estranho, respondeu-me o guarda, dizem que
em um acesso de furor dera uma facada em uma filha jovem em véspera de
casar-se. Principiou a sua loucura por fugir dos homens e da sociedade, morou
há três anos em as ruínas da Glória...
— Ah! esperai, clamei eu contemplando fixamente o
louco.
Era o desconhecido; sim, era o hóspede das ruínas,
porém horrivelmente mudado. Ao conhecê-lo, todo o drama sombrio do passado
passou-me pela cabeça, as lágrimas rebentaram-me aos olhos e eu escapei-me
correndo como um doido do hospício dos doidos.
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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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