As
duas órfãs
"o horrible! horrible! most horrible!
Shakespeare
CAPÍTULO 14: À GUERRA!...
Toda, toda eres perfecta
Toda eres donaire y gracia;
El amor vive en tus ojos;
Y la gloria está en tu cara.
La libertad me hás robado;
Y lo doy por bien rabada;
Más recibe el don benigna
Que mi humildad te consagra.
Melendez
Alta ia a tarde; — o sol desaparecia por
entre as nuvens de rosas do poente, e as ondas do Una, refletindo a cor
avermelhada do horizonte, se antolhavam como vagas de sangue ao conde de
Nassau, que, à frente de um exército de 10.000 homens, aproximava-se de Porto
Calvo. O seu tenente Henrique Vagamol o seguia, costeando, com algumas tropas,
a bordo de pequenas embarcações, e a divisão de Cristóvão Archichofle,
desembarcando na Barra Grande, acabava de se lhe reunir.
As Províncias Unidas, atemorizadas com
as incursões de Henrique Dias, de Rabelo, Camarão e Souto, e da energia que
havia desenvolvido o grande Matias de Albuquerque; e, querendo conservar sob o
seu jugo as capitanias brasileiras que a tanto conquistaram, resolveram mandar
um general em chefe com reforços e poderes ilimitados que, conservando as já
conquistadas, passasse a subjugar o resto do Brasil! João Maurício de Nassau,
jovem ardente de glória e ávido de assinalar-se em grandes empresas, foi
encarregado de tão honrosa quão árdua missão.
Partiu, pois, Nassau de Amsterdam com
uma frota de doze navios de guerra guarnecida de 720 soldados, e chegou três
meses depois ao Recife, trazendo por conselheiros a três dos principais
ministros da companhia das índias Ocidentais.
Desenvolver toda a atividade, toda a
energia possível a pôr termo às devastações dos brasileiros e submeter o Brasil
ao domínio da Holanda, foi todo o seu empenho. Bem que tivessem os holandeses
sido felizes no último sucesso, contudo começavam a sentir o revés da sorte;
Archichofle tinha sido obrigado a arrasar o forte de Peripoeira, e a retirar-se
ao Recife; graças às correrias destruidoras de Camarão, Souto e Rabelo, seus
armazéns achavam-se exaustos; a fome, esse cancro que rói e consome, e a
miséria lavravam pelo exército holandês, que, composto de mercenários de quase
todas as nações, diminuía a olhos vistos, ao mesmo tempo que o nosso exército
se engrossava com as suas deserções, e os destacamentos batiam às portas de
seus estabelecimentos.
Distribuiu Nassau dois mil e seiscentos
homens pelas guarnições, e com outros três mil formou um exército pronto à
primeira voz; organizou um corpo de cerca de seiscentos indianos e negros,
tirados das aldeias ou pedidos aos senhores, destinado à guerra de devastação e
pilhagem, e convidou por uma proclamação aos colonos das capitanias submetidas
a virem vender as suas mercadorias ao campo holandês.
Fortificado Bagnuolo em Porto Calvo com
a artilharia, decidiu, pois, de acordo com os conselheiros, que as operações
começariam pelo ataque da nascente vila; e ordenando preces gerais, como que
implorando o arrimo dos céus, pôs-se em marcha para Porto Calvo.
Informado Bagnuolo da marcha do exército
invasor, tímido e acobardado como quase sempre o foi, dispôs os meios para a
sua fuga, mandando para Madalena sua bagagem, escoltada por uma manga de
italianos, quando ao mesmo tempo — contraste singular! — ameaçava com pena de
morte e confiscação de bens aos colonos que se retirassem ou fizessem
transportar as suas famílias e objetos para o interior! Desprezando os
pareceres que lhe deram em conselho os generais Francisco Dias de Andrada e
Duarte de Albuquerque, para que fizesse ocupar todas as passagens, a fim de
fatigar o inimigo em sua marcha, tanto mais que ele havia a vingar cinco léguas
de caminho em algures montanhoso e alhures alagadiço, com passos aqui estreitos
e ali perigosos, resolveu-se a esperar Nassau em Porto Calvo; e, reconcentrando
todas as suas forças, chamou as tropas capita-neadas por Martim Soares, que
guardavam o Una, por onde Nassau havia de passar, para guarnecer dois redutos
que erigira no outeiro de Amador Arrais, para cobrir a vilazinha, e que — ainda
em mal! — mais úteis foram aos contrários. De um dos redutos até o Mangoaba fez
elevar encoberta vereda que mais facilitasse-lhe a fuga!
Ao aspecto ameaçador de exército tão numeroso,
como o qual ainda não tinha aparecido no Brasil, o pavor e o espanto
tornaram-se gerais. Bagnuolo, que regozijara-se com a nomeação de general das
tropas luso-hispano-brasílicas, lastimando-se então de sua posição, possuído de
terror, ordenou ao governador de Porto Calvo, o general Miguel Giberton, que se
fortificasse no forte da igreja com trezentos soldados, minadores, artilheiros,
oficiais e munições para três meses; encarregou o comando da mor parte de suas
tropas ao tenente-general D. Alonso Ximenes de Almiron e foi encerrar-se no
reduto, cuja vereda o protegesse na premeditada fuga, acompanhado dos generais
Andrada e Albuquerque e de muitos oficiais brasileiros, portugueses, espanhóis
e italianos.
A indignação apoderou-se de todos os
corações que palpitam pelo amor da pátria, da glória e da honra. À vista da
inação do general, as mulheres com lágrimas nos olhos, apertando seus inocentes
filhinhos contra o peito, enchiam os ares de gritos de desesperação, julgavam-se
já vítimas da brutalidade dos soldados holandeses. Os habitantes, o exército,
pediam a altos brados que os deixassem ir ao encontro dos invasores; e
Bagnuolo, receoso, acobardado, ordenou-lhe, já tarde, que marchassem.
Acendeu-se então o entusiasmo em todos
os peitos, como uma explosão que desabrocha por cem partes; e vivas a milhares
à fé, à pátria e ao rei, ecoaram de boca em boca por espaço longo. E viu-se um
guerreiro, esporeando o ginete que montava, correndo a bradar com voz pausada e
sonora:
— À guerra! À guerra, senhoras
brasileiras!
Quem seria?
As feições eram belas, o perfil e
contornos indianos; vivos, negros e expressivos os olhos; e os cabelos pretos e
corredios, espargidos pelos ombros.
Quem seria?
Era uma brasileira, ilustre pelo seu
nome e coragem; era a esposa de um bravo índio, do Cipião brasiliense; era a
intrépida D. Clara Filipe Camarão!
As senhoras e donzelas de Pckto Calvo,
incitadas com o seu exemplo, trajando como se guerreiros fossem, correram às
armas; voaram aos braços de seus consortes e pais, ávidas de partilharem dos
perigos da guerra, da defensão da pátria e liberdade.
Existia entre elas uma que mais que
todas sentia o amor da glória, o amor da pátria chamejar-lhe dentro do coração;
seus cabelos, mais negros do que asas do pátrio jacu, debruçavam-se-lhe pelos
ombros brincando em ondas; suas faces eram mais coradas que as rosas dos
bosques brasilienses numa dessas belas tardes de verão, e os olhos pretos
brilhavam como as estrelas nos céus anilados dos trópicos, cheios de vivacidade
e amor. A elegante postura, o gracioso andar, o compassivo, terno e amoroso
olhar, bastavam para reduzir, para cativar o mais duro coração!
Formosa como Mariana, Isabel, sua prima,
achava-se a seu lado.
Não mimoseando pela fortuna, curvado ao
peso de anos, vivia em Porto Calvo certo homem, cuja magnanimidade e
filantropia eram cabalmente conhecidas de seus compatriotas. Tinha ele um filho
a quem prestava todos os cuidados; e, não obstante seus acanhados recursos,
havia se encarregado da educação de duas órfãs, Mariana e Isabel. Avezado desde
a infância a entreter-se com as lindas meninas, afeiçoara-se o filho do velho
Afonso Gonçalves a Mariana, e sua paixão aumentou-se com os anos. E
Que peito há tão isento de brandura
Que não conheça o dom de uma beleza!
Quem pode resistir a um doce e brando
Quebrar de olhos que as almas vai ganhando!
Que forte foi no mundo conhecido
Que foro à formosura não pagasse,
Tendo que por cobarde fosse tido
Se contra ela valente se mostrasse?
Entretanto, Isabel também amada pelo jovem Diniz Gonçalves; assentada junto dele, nos rochedos que banha o Pedras Brancas, ensombrada pelas frondosas mangabeiras, vendo as límpidas águas do rio resvalar-se mansamente com doce murmúrio por entre alvas pedras; ouvindo os ternos gorjeios dos gaturamos que adejam em torno às bananeiras; as melodias dos sabiás, pousados nos raminhos das laranjeiras; os trilos dos pardos coleirinhos que pulam pelos galhos da aroeira; as saudosas canções das patativas; e aqui e ali os beija-flores atravessando os ares, brilhando como raios de luz, prolongando a vista por esses floridos jardins da primavera, dourados pelos últimos clarões do sol, em que, roçando a brisa suave da tarde, vinha-lhe trazer os gratos eflúvios que se elevam das flores — ah! muitas vezes escutou estas palavras, que muitas vezes deslizaram de seus lábios:
— Se Mariana não existisse, dizia ele,
se ela não tivesse ganho o meu coração, quanto não te amaria eu! Fizera mais
ainda, minha cara Isabel, adorar-te-ia como se fosses um anjo do céu sobre a
terra!
Sincera e pura confissão de cândida
alma, motora de tão sinistro projeto e desgraça!
Não desconhecia Afonso que o fogo da
mais ardente paixão abrasava o peito de Diniz, conhecia, — ainda em bem! — o
amor em que Mariana ardia por seu filho; via que era necessário que quanto
antes se ligassem pelo consórcio; mas, em extremo pobres, era antes de seu
desejo uni-las a ricos filhos de lavradores de Porto Calvo, e esperava
consegui-lo logo que os inimigos fossem expulsos das férteis terras americanas.
Vã esperança!.. Separar dois corações
Ardentes, onde amor ergueu seu trono,
Por seu próprio adotando o par mimoso,
Por seu próprio adotando o par mimoso,
ligados por afeições da infância, é
derramar neles o fel da morte.
Diniz ambicionando esposar Mariana não
ocultava o seu desígnio à presumida Isabel: tanta candidez borbulhava em seu
peito!
Ignorante!
Não previa que essa franca confissão
ateava o facho do ciúme no coração da vaidosa donzela; facho que de há muito o
abrasava e consumia. E Mariana beijava e afagava sua rival!
Inexperiente!
Ignorava que as florestas engrinaldadas
com os cheirosos festões da primavera ocultam em seu seio os ninhos das
terríveis sucuriúvas, e que a água que pura e cristalina se nos antolha, muitas
vezes se acha corrompida pelo hálito da peste l
Amava muito Isabel a Diniz para cedê-lo
a Mariana; e a ideia de que cedo ou tarde — malgrado seu — seria esposo de sua
rival, perturbava-lhe as esperanças; e o ciúme, chama infernal que abrasava-lhe
o coração, que incendiava-lhe a mente, inspirou-lhe horroroso projeto...
Em breve medirão os dois exércitos as
suas forças; e nesse ensejo, nesse duelo horrendo, em que as leis da humanidade
serão calcadas aos pés dos batalhadores, em que o titintim das armas, os
trovões dos canhões e o sibilo das armas, cadenciando a orquestra infernal da
guerra, nessa dança de sangue e de morticínio, imporão silêncio a seus ais,
Mariana... o ferro de Isabel estava destinado, não para encravar-se no peito
dos invasores, mas no de uma das defensoras da pátria, no de sua amiga de
infância!
Quem o saberá?
A confusão, o horror da guerra serão
propícios ao seu desígnio.
O tenente-general Ximenes de Almiron,
com o sargento-mor Martim Ferreira da Câmara; os bravos capitães Francisco
Rabelo, João Lopes Barbalho, Assenso da Silva e Manuel de Sousa e Abreu, e
oitocentos soldados; D. Antônio Filipe Camarão com os seus trezentos
brasileiros; Henrique Dias com os seus oitenta negros, e D. Clara Filipe
Camarão capitaneando as valorosas guerreiras, puseram-se em marcha; e chegando
já sol posto à vista do inimigo, fizeram alto.
Assenhoreando-se o invasor de uma
iminência, aquartelou-se nas casas do proprietário Domingos Vaz Barcelos.
Medonha e carregada, como o aspecto da
guerra, diferia a noite o combate para o dia seguinte; os holandeses, porém,
com quatro peças de campanha, não cessaram de fazer fogo contra os nossos.
CAPÍTULO 2: A BATALHA
Arma! Arma! Tudo soa, tudo guerra!
Guerra o mar soa, soa guerra a terra!
Dos vales repulsando nos outeiros
Respondem guerra os ecos derradeiros!
Mosinho de
Quevedo
O quente sangue espuma!
Qual belga foge, qual brasílio fere!
Quem evita o Mavorte
Na espada feminil encontra a morte!
J. da N.
Saldanha
O dia começava a despontar quando
anunciou-se a marcha do exército inimigo, que desceu em três linhas até a falda
do monte.
A primeira linha era comandada por
Archichofle.
A segunda por Sigismundo Escup.
A terceira por Nassau; sua guarda
compunha-se de cinquenta arcabuzeiros.
Menos de dois mil brasileiros,
portugueses e espanhóis acharam-se para logo frente a frente da linha dirigida
por Sigismundo Escup, e imediatamente seguiu-se o horrendo combate.
O choque foi terrível.
Tudo tornou-se confusão e horror.
D. Clara, no seu animoso palafrém corria
de fileira em fileira, exortando os seus guerreiros e bradando-lhes
continuamente:
— Vitória ou morte!
O Scévola africano, o intrépido Henrique
Dias, precedido de seus valentes soldados, pelejava denodadamente.
Camarão com os seus índios não era menos
fatal aos holandeses.
Lanças, espadas, chuços, setas, o fogo
contra o fogo, o ferro contra o ferro, se cruzavam e retiniam horrivelmente,
como uma orquestra de raios! e contínuas descargas de mosquetaria, brados, gemidos
e soluços mortais se mesclavam mais e mais, realçando o horror da guerra! Por
toda a parte balas, flechas, sangue, fumo, pó, ruína, e em toda a parte a
morte! a morte! a morte!
Lá se destacava do grupo negro dos
pelejadores o terrível Henrique Dias; uma bala varou-lhe o punho, a amputação é
o mais pronto remédio, e ei-lo que de novo se abalança ao conflito.
— Basta-me uma mão para servir a Deus,
exclama ele, ao rei e à pátria! À fé de soldado em como cada dedo desta que me
fica fornecer-me-á meio para a vingança! Não afrouxar, que Deus peleja por nós
contra esses hereges. Ânimo, que a vitória é nossa!
E seus soldados se reanimavam por modo
tal, que Sigismundo Escup começou a recuar; porém veio. o general Archichofle
com a primeira linha a reforçá-lo, e a batalha pareceu começar de novo.
Arrojou-se Ximenes de Almiron com a
reserva a refazer o exército real; mas em crescido número eram as tropas de
Nassau; e desacoroçoados os nossos deram de rosto aos contrários e à vitória, e
seguiram em boa ordem, sempre perseguidos pelos invasores, para o Comandatuba.
Aí um punhado de bravos portugueses guardava a passagem: decididos a resistir
novamente, ei-los encarniçados tigres de sobre os holandeses, que grandes
estragos sofreram. Era de ver dois mil homens pleiteando contra um exército
numeroso e guerreiro, sempre valentes, sempre grandes, ainda mesmo prestes a
serem vencidos!
O invicto general português Andrada,
desprezando as ordens do inerte Bagnuolo, abalou-se do reduto com poucos
soldados da guarnição ao meio dos holandeses; alentados os nossos com este
exemplo de bravura e intrepidez, conseguiram rechaçar os vencedores.
— Vitória! Vitória! bradavam os soldados
entusiasmados.
— Avante, que ela é nossa! gritava
Ximenes de Almiron.
— Meus amigos, três de vossos capitães
já não existem, morreram como eu desejo morrer, combatendo como intrépidos que
eram! Vosso sargento-mor lá jaz caído entre o tropel de mortos e feridos, sem
que desmentisse de seu valor; vingai-os pois! Nada de desacoroçoamento! Não
afrouxar, que Deus peleja por nós contra esses hereges! Ânimo que a vitória é
nossa! dizia o atrevido e bizarro Henrique Dios aos seus valentíssimos negros.
— Vitória ou morte! repetia D. Clara,
esporeando seu fogoso palafrém, que respirando enxofre e morte e tascando o
freio envolto em espuma, em fogo e em sangue, se inflamava com o espetáculo da
batalha, relinchava pulsando a terra com as patas.
D. Antônio Filipe Camarão acoroçoava os
robustos, esforçados índios, que governava com o exemplo de impavidez e denodo.
Era mais amigo de obras que de palavras, e quando recuava não era como Ajax
ameaçando, mas sempre pelejando. Um crucifixo lhe pendia de sobre o peito, bem
como o hábito de Cristo com que o acabava de galardoar o tirano Filipe IV,
honra que então a raros se concedia; mas hoje... Ufano, ele oferecia o peito à
torrente de sibilantes pelouros, e parecia dizer a cada passo:
— Não temo a morte quando combato pela
pátria e pela fé!
E avançavam os nossos pelejando com
entusiasmo.
Morria pela bala Pedro da Cruz, que
bravamente havia guerreado durante o conflito; e aí a seu lado ensanguentado,
esteriçado o animoso Cosme Viana sustentava ainda a sua espada.
— Ah! meu amigo, tu também foste mártir
da pátria! Somos companheiros na glória de morrer com ela hão de vencer!... Ih!
então, como cheio de prazer
— Eu antes quisera, voltou-lhe o jovem
Cosme Viana, ser companheiro desses que pleiteiam por ela e que com ela há de
vencer!... Oh! então, com o coração cheio de prazer não voaria aos braços de
minha mãe, levando-lhe a notícia da restauração da pátria!... Infeliz! De cinco
filhos que mandara à guerra só lhe restava eu... só eu!... E agora? Ah!
Torceu o moço o rosto, calou-se, e seu
silêncio foi de morte! Pedro da Cruz abraçou-o e segui-o.
D. Antônio Coutinho e o alferes Gaspar
Cabral, João de Uchoa e outros tiveram a mesma sorte, foram abraçar-se à
eternidade.
Não cessavam os soldados de
energicamente carregar sobre os contrários; ações brilhantes, feitos de heroicidade
se sucediam uns aos outros; cenas pungentes arrancariam lágrimas de quantos
neste espetáculo terrível se achavam, se a guerra as não tivesse estancado. Uma
brasileira, fatigada de combater, caiu sem alento; imediatamente um holandês
varou-lhe o seio com a espada; sua filha, desesperada investe-o com o ferro em
punho, rasga-lhe o peito, penetra os esquadrões inimigos, prostrando a quantos
se lhe ousam de antepor, causando estragos, derramando sangue; soltos os
cabelos, cintilantes os olhos de raiva, parecia o gênio da vingança, anelante
de sangue e de carnagem, regozijando-se com os estragos que deixava após si; e
quando ferida e prostrada exalou o seu último suspiro, suas palavras exprimiram
a alegria e o contentamento de sua alma.
— Morro, mas depois de vingar-te, ó
minha mãe, depois de dar a morte àqueles que te privaram da vida; morro, mas
satisfeita!
Sorriu-se então, e pouco depois, cúmulo
de mortos e feridos esconderam aos olhos do inimigo.
Isabel, que ansiosa buscava a sua rival,
descobriu-a pouco distante, batalhando como uma amazonas, ao lado do jovem
Gonçalves, de quem jamais se apartara, e seu coração palpitou, e frio
estremecimento percorreu-lhe fibra por fibra todo o corpo. Trêmula como a
taboca com o rumorejar da viração, armou o mosquete, e na desditosa amiga, na
infeliz rival, que odiava mais que aos contumazes holandeses, disparou a arma.
Ei-la no mesmo instante a braços com um
holandês; a bala do mosquete apenas beijara levemente a face de Mariana, que
num volver de olhos viu-a ameaçada de ser vítima do furor do fero soldado;
correu pois a seu socorro, e quando este lhe ia a desfechar um golpe mortal, o
prostrou por terra. Todavia Isabel estava ferida; Mariana só pôde impedir que o
golpe lhe fosse menos funesto. Vendo-a pois quase a perder a vida, a arrastou
para fora do lugar da ação, procurando minorar os sofrimentos daquela que pouco
antes lhe dispunha a morte!
Observando Nassau o desânimo que
principiava a apoderar-se de seu exército, envergonhado ao ver seis mil homens
disputando tão obstinadamente a vitória a um exército cinco vezes mais
numeroso, esqueceu-se de que era general para obrar como simples soldado; arrojou-se
pois ao seio da batalha, arrostou perigos, incitou os seus a imitá-lo.
Estava a batalha quase a decidir-se,
pendente a vitória aos destemidos defensores do Brasil; tornara-se o
Comandatuba em ondas de sangue, quando Nassau, admirado de tanta intrepidez tão
heroica, de tanta valentia e tão homérica da parte de seus inimigos, ordenou
que se tocasse a retirar.
E o grito — Vitória! — retumbou pelas
campinas de Porto Calvo como um só brado.
A noite veio subitamente estender a
mortalha da morte sobre o campo coalhado de sangue, juncado de mortos, e os
exércitos acharam-se divididos pelo Comandatuba.
Aproveitando-se das trevas da noite,
tratou Nassau de enterrar os mortos e de curar os feridos.
Lastimoso lhe era em extremo esses ais
de dor que contínuos se desenlaçavam de seus corações, e esses corpos aqui e
ali arquejando nas vascas da morte, sequiosos de vida.
Na oposta margem jaziam os nossos.
Um burburinho reinava por todo o
exército.
Bagnuolo era o objeto de sérias
reflexões.
Poucos soldados falavam das proezas que
haviam obrado durante o conflito, e a mor parte ardia no desejo de ver de novo
o dia para de novo dar provas de valor e expurgar as terras do Brasil dessa
peste invasora, e Ximenes de Almiron conversava tristemente o seu amigo Martim
Ferreira da Câmara, quando lhe vieram trazer uma ordem de Bagnuolo; e pouco
depois esse nome ecoava pelo campo coberto de maldições.
— Vamos depressa, bradou Ximenes de
Almiron.
— Para onde? interrogaram todos a um
tempo.
— Para a Madalena, nas Alagoas,
respondeu o general.
— Para a Madalena? perguntou Francisco
Rabelo.
— Sim, foi a ordem que recebi do general
Bagnuolo.
— E ele?
— Acaba de partir para lá com uma
companhia de soldados, acompanhado de Duarte de Albuquerque Coelho.
— Covardia! disseram uns.
— Infâmia! replicaram outros.
— Viva a fé, viva a liberdade, viva a
pátria, que havemos de defender enquanto tivermos vida! gritou Rabelo; e parte
do exército respondeu a seus vivas.
— Vamos! O general Bagnuolo é...
— Traidor!
— O general Bagnuolo é quem o ordena.
Ninguém pois se oponha à sua ordem!
— Para Madalena!
O exército, escoltando os habitantes de
Porto Calvo, seguiu o caminho das Alagoas.
Avisado Nassau da fuga, e não podendo
compreende como soldados vitoriosos dessem de rosto aos vencidos, mandou que o
seu sargento-mor com seiscentas praças, os perseguisse; mas este recolheu-se
logo sem que diligenciasse encontrar-se com eles, o que por certo não era muito
de seu gosto.
O outro dia, ao romper da alva, admirado
o general Miguel Gilberton do silêncio que reinava na vila, mandou um oficial
ao reduto de Bagnuolo pedir-lhe ordens; mas nem ordens nem avisos tinha
Bagnuolo deixado: com tanta precipitação abandonou ele a vila que devera
defender! Restava um expediente, e Miguel Gilberton não hesitou. As casas e os
armazéns foram entregues ao fogo, e as peças das trincheiras encravadas.
O exército holandês atravessou o rio sem
a menor oposição, e veio pôr cerco ao forte.
Os sitiados, não obstante a pequenez de
seu número, corresponderam denodadamente ao fogo do inimigo, acometeram-no com
coragem e inquietaram-no diversas vezes em animadas e bem dirigidas surtidas.
Quinze dias haviam-se passado, e ainda durava o cerco! Um punhado de heróis,
capitaneados por um valente que soube cumprir as ordens que lhe prescrevera tão
pérfido general, mostrou aos estrangeiros como defendia-se a pátria com dignidade
e honra. Tanta intrepidez, tanta coragem não deixaram de incitar a admiração e
o respeito do honrado Nassau, que mandou-lhes oferecer capitulação, recusada ao
princípio, mas que por fim foi aceita, quando já toda a resistência era-lhe
inútil; que os parapeitos estavam demolidos e entulhados os fossos. Saiu pois
em frente da guarnição com armas e bagagens, mecha acesa, bala em boca e
bandeiras despregadas.
Fortificado Poto Calvo e entregue ao
capitão Peter Vanderverre, pôs-se Nassau em marcha com todas as suas forças de
terra e mar em seguimento do exército fugidio.
Tão cuidosa se esforçara por
restabelecer a sua amiga e prima a boa Mariana, como alegre a viu salva do
perigo que ameaçara levá-la à sepultura; e com ela e Diniz acompanhou o
exército que, mal parando em Madalena, marchou precipitadamente para São Francisco,
deixando em seu trânsito desfalecidas mães nos braços da miséria, e
criancinhas, velhos e donzelas que caíam fatigadas de longas marchas e
devorados pela fome, que cobriam de maldições os nomes de Nassau e Bagnuolo,
motores de todas as suas desgraças.
Chegados a São Francisco, foram
guerreados e vencidos pelos holandeses.
Bagnuolo, esse desvalente general
italiano que a Espanha nomeara para comandar corajosos brasileiros e esforçados
portugueses, tinha fugido para Sergipe!
CAPÍTULO 3: O BILHETE
Salut, dit-elle en soupirant, beau soleil
du Brésil! Salut pour la dernière fois!
Jakare-Oussou
Dans un billet...
Je lis son crime et je lis mon malheur!...
Um coup de foudre eut été moins terrible!
Parny
Vencedor, permitiu Nassau, tomando posse
da vila de São Francisco do Penedo, que seus contrários se estabelecessem na
margem setentrional do rio do mesmo nome. Aí encontrou Mariana o seu velho
benfeitor; e Isabel, despindo-se de seu orgulho, confessou o horrendo projeto
de assassinato, não mais a tendo por sua rival, não mais sendo Diniz o ídolo de
seu coração, e enlevo de seus olhos, e o único pensamento que n'alma lhe
morava. Porém, as douradas esperanças que a lisonjeavam emurcheceram como as
flores da primavera ao enregelado sopro do inverno. Isabel enamorando-se de um
jovem amigo de Diniz, muito mais gentil do que ele, mas não dotado de tão
brilhantes qualidades, deslembrou-se de seu primeiro amante, e deixou-se
embalar no berço da esperança por sonhos encantadores que mentiam felicidades,
mas a morte veio asinha despertá-la!...
Jerônimo, o desditoso amador de Isabel,
sucumbiu à rápida enfermidade que o acometera, e a vida da vaidosa donzela
esteve por mais de um momento a extinguir-se, semelhante à moribunda luz de uma
candeia ao sopro rijo dos ventos. Os cuidados que Diniz lhe prodigalizara
fizeram-na acreditar que era amada por ele, que seu coração se voltara para
ela; — breve consolação a que deu vida; — consolação que o tempo destruiu, como
a aragem dissipa as nuvens de aroma que se elevam de em torno dos mangueirais.
Conhecia o velho Gonçalves o como
progredia a paixão de seu filho; sabia que necessário evitar alguma desastrosa
consequência, e decidiu-se a dar-lhe Mariana por esposa, certo de que, ainda
mesmo pobres como eram, seriam felizes amando-se mutuamente.
Ciente Isabel das intenções de seu
benfeitor, sentiu-se de novo abrasada pelo ciúme, por essa chama ateada pelo
amor e pela inveja; e, para impedir a felicidade de sua rival, lançou mão de
pérfido enredo.
Ditosa seria ela a não lhe serem inúteis
os cuidados de Afonso e a educação que tão sábia e cuidadosamente lhe havia
dado.
Fingiu, pois, a letra de Diniz, traçou
algumas linhas, como a ela dirigidas, em que o amante de Mariana confessava
amar-lhe e ajuntou outras expressões bem fáceis de despedaçarem o coração; não
sabendo, porém, como pudesse fazer com que esse bilhete ditado pela mais vil
intriga caísse nas mãos de sua rival, passaram-se dias até que oportuna ocasião
veio coroar-lhe o intento.
A tarde ia alta; transmontava o sol
desaparecendo por entre os belos damascos de púrpura que desdobravam-se pelo
horizonte; seus raios derramavam-se sobre as árvores e sumidades dos montes,
emprestando-lhes por momentos véus de ouro; as soberbas vagas de São Francisco
deslizavam-se majestosamente com arruído; os passarinhos descantavam tão
saudosos que parecia que celebravam as exéquias do dia, que pouco e pouco lá se
esvaecia no ocidente, e branda e suave viração, embalsamada do odor dos
floridos bosques, percorria as campinas coroadas de coqueiros, agitando seus
verdes leques. Mariana passeava gozando das pitorescas cenas que em quadros tão
animados ofereciam aqueles sítios, e ante ela, não distante, caminhava Isabel,
que tirando do seio um papelinho, deixou-o cair e continuou como se o não tivesse
pressentido, na esperança de que Mariana o apanharia. Não enganou-se; o fogo e
o ciúme que devora, aniquila e consome, inflamou pela primeira vez esse coração
tão terno!
Buscou Isabel perder-se pelos labirintos
de verdura das planícies de São Francisco, e Mariana dirigiu-se para a margem
do rio: aí, sentada sobre um rochedo, olhos demissos e afogados em lágrimas, o
peito oprimido de dor, pôs-se a cantar tristemente ao sussurro das ondas e dos
coqueiros, que plácida e fagueiramente abanava a viração, estes versos que
outrora do saudoso Bernardim Ribeiro, do poeta enamorado da bela lusitana,
escuta-ram as montanhas aprazíveis de Cintra, e que ela muitas vezes repetia ao
seu amador, nesse mesmo lugar, reclinado nesse mesmo rochedo:
Ao longe de uma ribeira
Que vai pelo pé da serra,
Onde me a mim fez a guerra
Muito tempo o grande amor,
Me levou a minha dor.
Já era tarde do dia,
E a água dela corria
Por entre um alto arvoredo,
Onde às vezes ia quedo
O rio e outras vezes não.
Entrada era do verão,
Quando começam as aves
Com seus cantares suaves
Fazer tudo gracioso;
Ao rugido saudoso
Das águas cantavam elas.
Todas! as minhas querelas
Se me puseram diante;
Ali morrer quisera ante
Que ver por onde passei;
Mas eu que digo? Passei...
Antes ainda hei de passar
Enquanto aí houver pesar,
Que sempre o aí há de haver.
As águas, que de correr
Não cessavam um momento,
Me trouxeram ao pensamento
Que assim eram minhas mágoas,
Donde sempre correm águas
Por estes olhos mesquinhos
Que tem abertos caminhos
Pelo meio de meu rosto;
E já não tenho outro gosto
Na grande desdita minha;
O que eu cuidava que tinha
Foi-se assim não sei como;
Donde eu certa crença tomo
Que para me deixar veio...
As lágrimas que se lhe desataram dos
olhos, os soluços que se lhe desenlaçaram do coração, lhe tolheram a voz; os
versos do trovador de Cintra pareciam, tecidos para ela! Crendo ter perdido
para sempre o objeto de seu amor que ela pensava idolatrar-lhe, recordava-se
saudosamente dos dias risonhos de seus passados anos; lembrava-se do sítio onde
vira pela vez primeira a luz do astro que agora se escondia no ocidente; e para
ele volvendo os olhos, suspirando, o saudou pela derradeira vez. O sol brilhou
ainda por alguns momentos e desapareceu... Ergueu-se então e foi caminho da
choupana do velho Afonso; e, torcendo o rosto, lançou um olhar de saudades
sobre as rochas que deixava, e magoado suspiro escapou-se-lhe dos lábios.
Era o último adeus que ela enviava aos
lugares testemunhas de seus amores!...
Cedo desceu a noite, e o céu dos
trópicos patenteou-se em toda a sua pompa, como um oceano de luminosas
estrelas. Assentados à porta da choupana, desfrutavam Afonso, Diniz Gonçalves e
Isabel a fresca aragem da noite, e Mariana, reclinada à janela, meditava tristemente;
tinha ela na mente um pensamento terrível! Terrível, como uma inspiração do
inferno! Terrível — o suicídio!...
CAPÍTULO 4: DESESPERAÇÃO INFERNAL
CLEONICE
... Cediamo al destino. Da me lontano,
Vive felice, il tuo dolor consola.
Poco avrai da dolerti
Ch'io ti viva infidele, anima mia.
Giá de questo momento
Io comincio a morir. Qu'esto ch'io verso
Fors'é l'ultimo pianto. Adio! Non dirme
Mai piú che infida e che sperjura in sono.
ALCESTE
Perdono, anima bella! Oh dio, perdono!
Metastasio
O astro dos mortos ia placidamente pelo
céu, derramando frouxos e amarelos raios, desaparecendo de momento em momento
para tornar a aparecer dentre brancas nuvens que ensanefavam a abóbada celeste.
O rumorejar da viração, enfiada pela basta folhagem dos bosques, os bramidos
das ferozes onças e sucuriúvas, o ruído que faziam os tamanduás correndo pelas
campinas em busca de formigueiros, e as capivaras atravessando o rio, os
sibilos dos mochos pousados nas cumeeiras das cabanas.
... o grito agudo e triste
Nos velhos sapezais dos verdes grilos,
Nos velhos sapezais dos verdes grilos,
o som repetido que espargiam de si
rompendo os ares
Do agoureiro morcego as tênues asas
e de quando em quando, lá tão longe,
remoto,
A voz do cão, que rosna e vela em torno,
Do humilde teto, que a inocência habita,
Do humilde teto, que a inocência habita,
a misturar-se com o cantar dos
vigilantes galos, harmonizavam o hino da noite.
Era meia-noite! Afonso, ouvindo bradar
por seu nome, ergueu-se; Mariana o chamava; Mariana, que languia nas ânsias da
morte...
O velho embuçado em pardo capote, chegou
vagarosamente ao leito; beijou-lhe ela as rugosas mãos, e soluçando regou-as
com copiosa torrente de lágrimas de fogo.
— Chamai, meu querido pai, que pai mo
haveis sido, chamai Diniz e Isabel; quero deles me despedir; quero vê-los pela
vez extrema, e morrer amada por eles...
— Morrer!... Morrer!... exclamou o velho
cheio de admiração.
— Sim, morrer!... Meu Deus, todo poderoso,
perdoai-me tamanho crime... a voluntária morte que bebi na taça da desesperação
e do crime!...
Afonso, trêmulo, repassado de susto e de
pavor, como se estivera ante alguma visão, ante algum fantasma, interrogou-a
por vezes; instado, porém, fortemente, foi chamar Diniz e Isabel. Então
ajoelhando-se ela ante o crucifixo que pendia da parede esbroada da cabeceira
do seu leito, e alagada de lágrimas, pôs-se a murmurar o símbolo dos apóstolos.
Sentindo passos, persignou-se e deitou-se. Chegara Afonso seguido de Diniz e
Isabel, e ao vê-los, novas lágrimas desprenderam-se desses olhos outrora tão
belos, tão cheios de vida, tão repassados de amor e de ledice, e nos quais
agora
Um não sei que de magoado e triste
Os corações mais duros enternece,
Os corações mais duros enternece,
e serpejaram em fio pelas faces
Que descoradas estavam como rosas
Que hão sido fora da estação cortadas,
Que hão sido fora da estação cortadas,
pois que iam perdendo
A rubra e branda cor com a doce vida.
Tomou as mãos de ambos, cobriu-as de
beijos, ligou-as; e depois suspirou tristemente.
— É teu, Isabel!... Eu to cedo! exclamou
ela. Sê feliz com ele por toda a vida, que eu generosamente morro para seres
ditosa, para que o possas lograr sem que o ciúme te mortifique, te exacerbe, te
enfureça, e sem que também arme teu braço contra teu peito!
E tu, meu caro Diniz, única consolação
que eras de minha alma! Ah, tu devias fazer a minha felicidade, no entanto
foste infiel, perjuraste! Pois bem, sê feliz com Isabel, a quem amas, que este
bilhete... Oh, este bilhete em que li teu crime, em que li teu perjúrio, em que
li minha desgraça, destruiu todas essas esperanças que me embalavam nos braços
da ventura; envenenou esses dias que tão docemente esvoavam-se; turbou esses
sonhos encantadores de amor que sonhava adormecida junto de ti, reclinada sobre
teu peito, acarinhada por teus beijos, afagada por tuas cantigas!
Ei-lo aqui esse terrível escrito!
— Perdão, perdão! disse Isabel, caindo
de joelhos, com os olhos arrasados de pranto.
Momento solene! Afonso, como estátua,
contemplava esta cena sem poder compreendê-la; sua admiração aumentava-se de
instante a instante. Reinava o silêncio dos túmulos por toda a choupana, apenas
quebrado de quando em quando por um ou outro soluço de morte, por um ai de
arrependimento; a candeia que presa a esbroado pilar ardia funebremente, soltando
baços clarões, parecia extinguir-se de momento em momento. Diniz arrebatou o
bilhete das mãos de Mariana, aproximou-se da candeia, leu-o, conheceu o enredo
traçado pela pérfida Isabel, e fê-lo em pedaços. Mariana, forcejando,
sentou-se, e arrimando a cabeça ao ombro do velho Gonçalves, olhos embaciados
pelo hálito da morte, gritou por Diniz, com voz trêmula e moribunda: correu o
moço para ela, cerrou-a nos seus braços, banhou-a com lágrimas ardentes; e ela
lhe entregando o último suspiro, tornou-se pálida e fria.
A candeia soltou seu último clarão e
apagou-se...
Afonso abriu a janela, e a lua enfiando
por ela seus débeis raios, foi palidejar sobre o cadáver de Mariana...
Diniz, com os cabelos alvoroçados, olhar
cintilante de raiva, lançou mão de um punhal que lhe ficava a pouca distância,
e arremeçou-se desapiedado a Isabel.
— Morre, pérfida! bradou ele pela voz do
trovão.
— Perdão!... implorou ela,
ajoelhando-se.
— Diniz! Meu filho!...
— Em nome de Deus, perdão!... repetiu
Isabel.
— Morre! Morre!...
— Ah! não me mates!...
E um gemido, e para sempre a morte!
— Que horror, meu Deus, que horror!
exclamou o velho precipitando-se sobre o desesperado amante, a quem dominavam
as fúrias da vingança. Diniz acabava de sacar o ferro do seio de sua vítima, e
ainda tinto de sangue, ainda tépido, ia a embebê-lo no coração, quando
arrebatou-lho e furioso bradou-lhe que se contivesse. Porém nada, nada
absolutamente pôde opor barreiras à ira de seu peito.
Abriu precipitadamente a porta e seu pai
seguiu segurando-o pelo braço. De repente escapou-lhe, e como um relâmpago que
se abre nas trevas, desapareceu a seus olhos para todo o sempre.
— Meu filho! Meu desgraçado filho!...
exclamou Afonso Gonçalves levantando as mãos para o céu e caindo de joelhos.
Ouviu-se ao longe:
— Mariana, eu já te sigo! Serei teu
outra vez! E um gemido partiu do fundo das ondas.
CONCLUSÃO
Nunca mais os colonos de São Francisco
ousaram de passar pelas margens do grande e caudaloso rio durante a meia-noite;
e fama foi ainda por muito tempo depois que um vulto correndo despenhava-se nas
ondas a bradar:
— Mariana, eu já te sigo; serei teu
outra vez.
E ao longe as ondas bramiam
funebremente.
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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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