As águias do Norte
(Conto polaco)
Harpa
sacrossanta, orvalhada pelas lágrimas dos videntes, que repousam sobre ti caras
encanecidas, banhadas no choro do cativeiro, quando à tarde abandonada na
solidão do exílio, à beira da torrente, a aragem vespertina vinha gemer nas
tuas cordas, o cântico remoto era como o anseio de um coração opresso, ai, que
se perde confundido com o rojar das cadeias.
Inclina-te
agora nos meus braços, e vibra-me um canto de desespero, insofrido, eterno,
para acordar a turba, que dorme sob o peso das gargalheiras.
O
vento livre saberá levar a toada longínqua, para achar eco no peito dos
desgraçados. Pátria! pátria! és a túnica inconsútil sobre que rodam os dados do
infortúnio.
Polônia!
tu és o peito exangue, ferido pela lança do incrédulo. Pudesse o teu sangue dar
a vista ao que te fere com mão obstinada. Ao menos, que o teu último arranco
afaste para bem longe o bando dos abutres selvagens que pairam sobre ti,
Prometeu, algemado em terra, mas, que ainda nas convulsões da agonia mostra a
animação do fogo divino da liberdade.
Oh!
mas o que vale ao poeta desterrado contemplar a ruína da pátria! Para que há de
ele pedir à sua harpa um canto de angústia e saudade, se aqueles que o escutam
e se sentem fortes para lutar com um esforço sobre-humano, são depois mártires
do sublime entusiasmo?
Que
tristeza profunda o lembrar-me que o meu poema a Tentação, exaltando os estudantes da Lituânia para sacudirem os
tiranos, fez com que os opressores arrojassem para os estepes e minas da
Sibéria a flor da mocidade da Polônia! Pobre Karl; ainda tenho aqui a carta em
que ele me conta os trabalhos da jornada para o desterro:
De um
estudante de Lituânia ao Poeta
anônimo da Polônia
“Em
todos os tempos a poesia tem sido a expressão dos sentimentos profundos da
humanidade; chora com as suas dores, e é ela que vai ao sepulcro das nações
proferir o Surge et ambula à raça
suplantada pela pressão dos déspotas. Desde os profetas de Israel, e Tirteu e
Callino até Rouget de Lisle, Kerner e Poetefi, a poesia tem dirigido as
revoluções; é como a coluna de fogo que leva à terra prometida através dos
errores do deserto.
Nós
éramos crianças, animados dos sentimentos mais puros, que a idade não deixa
contaminar; chorávamos de mágoa e despeito, com vergonha de vermos envilecida,
sob o jugo obscurante dos czares, esta pobre pátria esmagada por um colosso de
inercia e barbárie. Um dia apareceu-nos um poema estranho, novo, um grito
ansioso em que se exalava uma alma. Pareceu-nos a voz da Polônia que nos
chamava no seu desalento; sentimo-nos fortes no primeiro impulso.
Estudávamos
em Lituânia; uma noite reunimo-nos para ler o poema. Brilhava em cada rosto um
lampejo de cólera e esperança. Cada estrofe era um sobressalto, a ansiedade do
sacrifício. Éramos como aqueles crentes dos primeiros séculos do cristianismo,
tínhamos a sede do martírio. A noite da conjuração era tempestuosa como os
pensamentos que nos agitavam. Juramos ali, com as mãos sobre as estâncias
misteriosas que nos vieram despertar do letargo da opressão, abnegar do amor,
da família, da vida, por esta desgraçada Polônia. A alampada solitária que
iluminava o aposento deixava uma penumbra fantástica e terrível, como num
tribunal whêmico; os olhos coruscavam com brilho de alegrias sanguinárias. O
entusiasmo precipitava-nos. Sentíamos forças de Atlante, uma audácia e
tenacidade para a luta; mas, via-se ao mesmo tempo em cada rosto a sombra, não
sei de que pensamento funesto, de uma aspiração irrealizável. Seria uma
desgraça iminente?
Quando
nos abraçamos como irmãos na mesma crença, para os transes mais dolorosos,
correram as lágrimas, ferventes, como nos momentos rápidos de uma despedida para
sempre. Havia um silêncio augusto. Parecia que o céu e a terra escutavam o
nosso juramento; que a pátria agrilhoada interrompera os lamentos para escutar
a voz consoladora dos seus filhos, que esperavam o dia da redenção.
Foi
então que ela apareceu, Hedwige, a mulher que eu amava, o cabelo destrançado
pelo vento da noite, cansada, ofegando, sem cores, enfiada de susto. Julguei-a
uma aparição angélica, que baixava para trazer-nos a palma do martírio, a
anunciar os transes deste horto em que estávamos recordando as agonias da Polônia.
Como ela estava bela, radiante; era uma profetisa, altiva como Débora quando
proclamava às gentes a lei, a sombra das palmeiras entre Rama e Betel, sobre as
fronteiras de Benjamim e Efraim. Ficamos suspensos, esperando o hino que havia
romper dos lábios selados por um mistério profundo. Como deixou ela a casa dos
seus pais, nas sombras da noite medonha? Como soube onde estávamos; quem a
trouxe aqui? Fora o amor, esta iluminação da segunda vista. Hedwige proferiu,
depois de alguns instantes de repouso, com a voz entrecortada e trêmula:
—
Ainda é tempo! Os soldados russos vêm em busca de nós; sabem da conjuração, e
perseguem-nos; poupemo-nos para a hora suprema do resgate.
Depois
ela veio para mim e abraçou-me. Ia começar a falar, quando se sentiu na rua o
estrepito de armas, e vozearia de uma soldadesca brutal e desenfreada. Não me
custava a vida; mas tê-la ao meu lado, ali! vê-la sujeita à irrisão e malvadez
dos que vinham para prender-nos! Pobre Hedwige; ela abraçou-me e sorriu-se:
—
Tens medo? vejo-te tão pálido! Receias que eu não tenha coragem para
corresponder à tua bravura? Eu sou mulher, é verdade. Era ao suspiro de uma mulher
que a liberdade romana acordava sempre. Lucrécia e Virgínia ensinaram-me também
a ser forte um dia. Karl! eu sinto que neste instante nos une um amor mais alto
e desinteressado, que nada tem das paixões terrenas. Dá-me o abraço que há de
fundir numa só as nossas almas para sempre. Agora já te posso dizer como Arria,
se te visse esmorecer no perigo, o que ele disse levando o punhal ao peito: Poe, us, non dolet!
O
tumulto, o som confuso das armas, o tropear dos soldados, não me deixaram
ouvi-la mais. Entraram na sala sombria, como uma onda turbulenta que irrompe
derrubando os diques e se precipita como um vértice fremente. As armaduras
reluziam, e nos causavam a vertigem do terror. Um frio letal escoou-se por mim;
lembrou-me lutar para defendê-la.
Reinava
um silêncio de morte. Já sabíamos a sorte que nos esperava. Depois vieram
lançar-nos as cadeias pesadas, as gargalheiras infamantes da escravidão,
ultrajando com risos aquele sentimento puro que nos dava constância para o
martírio. Era impossível resistir; todo o esforço seria inútil. Deixei
passivamente algemarem-me. Um olhar firme de Hedwige inspirou-me uma resignação
indizível. Não sei que aparência divina, que irradiação sublime, etérea,
envolvera o rosto da minha amada, que os soldados não se atreviam a
aproximar-se. Seria esse terror, que fazia cair em terra, fulminados, os que
tocavam na Arca sacrossanta? Na serenidade altiva que ela mostrava neste
instante, conheci-lhe uma resolução extrema; Hedwige queria também ser prisioneira,
para sofrer comigo as dores do desterro. Ela lançou mão do poema que estava
sobre a mesa, e começou a recitar algumas das estrofes mais arrebatadas, com
uma voz profética, no tom misterioso de uma sibila. A magia daquela voz sentida
prendia; ficaram imóveis, quietos, escutando-a:
Fragmentos de
uma Elegia polaca
—
“E lentamente, muito lentamente, por detrás do Homem-Deus, avança deslumbrante
de beleza e sem vestígios de morte a minha dileta Polônia. — Ela para sobre os umbrais da Sião prometida a
todos os povos, e — destas alturas sagradas sua voz retumba, dirigindo-se às nações
reunidas muito longe, lá em baixo, nos términos do espaço.
A
mim, a mim, oh vós, raças fraternas! A última luta do derradeiro combate
terminou; — os embustes das traições e das mentiras terrestres estão
destruídos. — Subi comigo para o reino da paz.” — E o coro das nações lhe
responde: “Bênção e glória a ti, oh Polônia! porque ainda que tenhamos todas
sofrido, — tu suportaste mais tormentos que nenhuma de nós, — Pela enormidade
das injustiças acumuladas sobre ti, conservavas constantemente o inimigo
debaixo do raio de Deus! — No transe do martírio, tiravas do teu coração uma
vida mais enérgica que a dos teus opressores, — e pelo teu sacrifício nos
salvaste. — Bênção e glória a ti, oh Polônia!”
Oh!
quantas vezes por uma noite sombria do outono, a voz da minha mãe ou de algum
antepassado sai do túmulo, e chega até mim para me falar do futuro. — Eis que a
este ruído misterioso, visões estranhas me aparecem. — O canto de triunfo
soltando-se do peito de milhões de homens, ressoa em redor. — Os vencedores
passam em falanges inumeráveis, — eu vejo as brancas, resplandecentes figuras
das irmãs e dos irmãos libertados da escravidão; — a centelha da imortalidade
faísca de todas as caras. — Mesmo sem asas, eles vogam no ar, como se fossem
alados; sem coroas brilham como se fossem coroados. — E eu mesmo prossigo no
meio de todos, e me sinto numa espécie de céu desconhecido, antecipado.
E,
quem sabe? talvez que a profecia dos meus sonhos se realizasse já sobre o
túmulo da Polônia! E não havia senão eu, eu cadáver, que faltava entre os
ressuscitados! Oh, através destas grades e destes muros que me fecham como as
taboas de um féretro, o meu espírito se ilumina e se expande ao longe,
transpondo o tempo e o espaço! — Sim, eu vejo: além, por toda a parte miríades
de estrelas e flores; — o mundo regenerado celebra suas núpcias com a jovem
liberdade! — Na aresta dos Alpes, no cimo dos Cárpatos, o céu resplandece com
os raios da mesma aurora, — e todos os povos unidos, confundidos, parecem
formar um só oceano, por sobre o qual é levado o espírito de Deus.
À
medida que ia prosseguindo no canto, Hedwige, como a Sulamita dos Cantares, comparada à torre que olha
para o ocidente, parecia suspensa; o rosto com a graça diáfana de um serafim.
Naquela elevação surpreendente, a comoção embaraçou-lhe a voz; não pôde falar;
ficou hirta, lívida, como na concentração violenta do êxtase. Era o gênio da
Polônia incarnado numa mulher que sofria. Hedwige ficou silenciosa; nem um
queixume, uma lágrima sequer, quando lhe roxearam os pulsos. Quando voltou a
si, e conheceu que ia compartilhar comigo a mesma sorte, sorriu-se, com a
expressão divina da alegria dolorosa e da resignação.
Dias
depois leram-nos a sentença. Doze anos de desterro e trabalhos na Sibéria.
Hedwige escutou impassível. Custava-me tanto vê-la sofrer em silêncio; ela
fazia um esforço inaudito para não vergar com as dores excessivas; não queria
redobrar o meu sofrimento. Oh meu Poeta! foi então que me convenci de que o
homem é o lobo do homem; pior ainda que o lobo cerval, porque espia os segredos
da nossa alma, e antes que nos inflijam as sevícias do corpo, torturam-nos o espírito,
insultando os sentimentos mais recatados e santos que nos dão coragem nos
desalentos da vida.
Partimos
todos na carroça dos desterrados, um kibitka
pior que o tormento inventado para matar o integérrimo Atílio. As rajadas do
inverno eram cortantes, e tiravam-nos todo o vigor para avançar; depois, vieram
amontoando-se os gelos, e nos obrigaram a prosseguir a pé; a desolação dos estepes,
por onde passávamos, despertava-nos não sei que simpatia, talvez porque eram
uma semelhança visível do abandono e ruínas em que estavam nossas almas.
Hedwige,
delicada e frágil não podia caminhar mais, via-a desmaiar pouco a pouco; a
lividez do sepulcro no rosto desbotado! Parecia-me a flor mimosa, emurchecida
com as geadas da noite. As pancadas do knut,
um látego formado de tiras de couro cru e rosetas de ferro, com que a
verberavam para adiantar caminho, esgotaram-lhe as forças. Eu não sei que haja
palavras humanas para exprimir a dor e a raiva que senti nesse instante, porque
o coração do homem nunca sofreu tanto, para descobrir uma expressão para este
infinito da angústia. Hedwige nem se atrevia a olhar para mim; depois vi-a cair
transida de frio e cansaço; esgotara o último esforço. Quiseram deixá-la
sepultada entre o gelo. A noite vinha a fechar-se aspérrima, atroz; eu não
podia sequer lembrar-me que o corpo da minha amada ia ser em breve pasto dos
abutres. Via-me também já sem forças. Pedi para levá-la aos meus ombros.
Era
a loucura e egoísmo do amor, que fazia com que a conduzisse, para sentir ainda
agonias mais violentas que a morte.
—
“Oh! antes me deixasses sepultada na solidão dos estepes, exposta às aves
noturnas, do que vermo-nos agora separados para sempre!” — Disse-me ela a
abraçar-me frenética, louca, quando nos separaram, mal que chegamos às minas da
Sibéria.
Os
meus companheiros do infortúnio não os voltei mais a ver; Hedwige foi condenada
ao trabalho das minas de mercúrio, muito longe. Não soube mais dela. A mim,
enfiaram-me um capote de feltro e desceram-me por uma corda pelas gargantas da
terra, por um boqueirão escuro; à medida que ia baixando, ia sentindo vozes
confusas, ruído de enxadas. Então, vi na obscuridade profunda a luz baça e
mortiça das lâmpadas de segurança, e uma multidão de homens escaveirados,
magros; era uma cidade de múmias. Era aquela a minha habitação para doze anos
de existência. Admirava-me de ver ali crianças; filhos dos desgraçados obreiros,
raquíticos, enfezados, não conheciam a luz do mundo, a vida resumia-se no
trabalho insano. As dores que suportava tinham-me embotado o sentimento, tinha
a impassibilidade do idiotismo, a mudez do assombro. Às vezes uma lembrança
longínqua de Hedwige e da minha mãe, a quem não pude dizer ao menos o extremo
adeus, me davam a consciência de que ainda vivia; mas não podia aliviar-me com
as lágrimas.
Os
que me viam nunca se atreveram a perguntar qual o meu crime. Não sei que
esperança me prendia à vida, para que me não despedaçasse contra as rochas que
ia arrancando. Estava já acostumado à obscuridade. Um dia começou a lembrança
de Hedwige a ocupar-me a imaginação. Seria uma saudade viva? algum
pressentimento? Lembrar-se-ia ela também de mim nesse instante? Julgava-a já
morta, criança e débil como era. Sem Hedwige, para que queria eu a vida? Oh! se
a visse ainda uma vez morreria contente, resignado, perdoando tudo quanto os
que se dizem meus semelhantes me fizeram sofrer.
Era
uma loucura esta ideia. E continuávamos silenciosos a romper a mina lobrega e
funda. Começamos a sentir um eco surdo; eram os trabalhadores de outras minas,
que se encontravam. Continuei a trabalhar com mais vontade, na direção donde
vinham os sons abafados.
Encontramo-nos
dias depois. Que alegrias, que abraços íntimos entre aqueles sócios da
desgraça. Se estivesse ali Hedwige! Que fatalidade! o meu desejo era o
pressentimento. “Já te esqueceste de mim?” Senti um abraço sem vigor; fitei nas
sombras o vulto, que me falava e me estreitava a si. Era ela, lívida,
desconhecida, com a magreza da consumpção; o mercúrio penetrara-lhe a parte
esponjosa dos ossos. Tive horror do ente que amava, era só a compaixão que me
prendia a ela.
—
“Lembras-te das palavras de Simeão quando na apresentação do templo viu o
Messias nos seus braços? Hoje digo-te o mesmo, Karl; já posso morrer.”
E
eu continuei a viver para ver prolongados a miséria e os flagícios incríveis,
que me cercavam. Já não tinha o amor, que alimentava as horas da minha solidão.
Hedwige tinha-me expirado nos braços; soltara a alma cândida, acrisolada nas
tribulações, no último beijo, que recebeu de mim. Daí por diante a vida
pareceu-me mais impossível de suportar; eu não vivia, vegetava como o lixo no
fundo de uma caverna escura. A imbecilidade proveniente da atonia e dos pesares
indescritíveis prolongara-me a existência vegetativa.
Lembrava-me
a minha mãe. Se a tornaria a ver ainda! Estaria ela já no sepulcro, ralada com
a saudade da ausência, cansada de esperar a volta do cativeiro? Sem sucessos,
nem distrações, que me preocupassem a vida, cada momento parecia-me um século
de desesperação. Estes doze anos foram uma outra existência. Quando voltei à
pátria julguei um renascimento; mas tornava a aparecer à luz do mundo para mais
provações e dores, porque a minha mãe estava morta; a pátria, o que ainda me
fazia palpitar o coração com vida, vejo-a esquecida, inerte sob o jugo
prepotente da Rússia. Hoje escrevo-lhe, meu Poeta, porque é a única pessoa, que
me resta no mundo, e só me prende à vida o juramento, que fiz de imolá-la no
altar da pátria. — Karl.
O
Poeta anônimo da Polônia produziu com os seus poemas o mesmo que Mickiewich, o
autor do Banquete de Walenrood. Só
depois de morto é que se soube o seu nome; era o conde Sigismundo de Krasinski.
A liberdade da Polônia fora o único ideal da sua inspiração; é ela sempre que
transluz nas maravilhas com que enriqueceu a literatura polaca, nos Salmos do Futuro, no Iridion na Comédia Infernal e na Tentação, a que anda ligado este fato que
narramos.
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