Aquela máscara
A
dor transforma-te! Estás desconhecido. Já não tens o entendimento e a
vivacidade dos dias da tua alegria. Que desastre repentino te deu essa
imobilidade do espanto? Desfolharam-se tão cedo as flores da tua primavera;
estão desbotadas as rosas da tua face, extinto o fogo desses olhos, que davam
alma a tudo quanto dizias. A tua alma expandia-se, mostrava-se franca, como a
verdade; iluminava-te o rosto, como um sol rutilante na imensidade tranquila do
mar. Eras exaltado, febril no que sentias; cada palavra tua era o esto de uma
paixão latente. Tinhas o segredo da fascinação, a magnanimidade do herói, e a
impenitência do ergotista; eras a um tempo serafim e demônio, podias
transportar ao sétimo céu, ou atirar ao báratro a mulher que te seguisse.
Tinhas a consciência da força e rias-te de todas as mulheres, não te afligia o
amor. Ainda era cedo para pensares nisso, se é que se pensa quando nos atiramos
à luz que nos deslumbra. Comparavas a sociedade a um oceano revolto, e só
tinhas em vista levar o teu baixel a porto seguro; a estrela que te guiava, a
monção fagueira que desfraldava aos pontos do céu a tua vela branca que havia
de ser, a não ser o amor? O amor era um pequeno móvel para ti; a ambição dava-te
maiores impulsos, querias ser grande e dominar, absorver os outros. De fato
tinhas em ti um poder assimilador, reduzias os outros a ti. No meio dos
caprichos da tua individualidade altiva, mostravas grandes verdades. Eras todo
sensualista, cercavas a vida de prazeres, mas só daqueles que te proporcionavam
os recursos infinitos da inteligência. Para ti a arte era mais do que todas as
ciências do mundo, era a síntese suprema das faculdades do homem, porque é pela
arte que ele adquire a consciência de si. A ação justa, não a conhecias pela
harmonia dos princípios eternos da justiça, era preciso sobretudo que fosse
capaz de produzir uma obra de arte. Todas as tuas posições eram esculturais,
podiam-se reproduzir no mármore; não era a afetação que te levava a este
estudo, eram as tuas ideias da eurritmia, a necessidade de completar as
expressões da tua alma no movimento exterior que mais as significasse. Aqueles
que não compreendiam isto, que se riam e violavam os encantos da plástica,
chamavas-lhes Verna, um nome
insultante, com que mostravas a sua incapacidade para sentirem o belo. Dotado
desta serenidade impassível que tem o homem verdadeiramente superior, às vezes
não sabia porque deixavas um instante de ser bom; não se te dava de sacrificar
os outros com tanto que te engrandecesses. Parecia um egoísmo revoltante. Tu
não professas a igualdade. Os Verna existem, para que entulhem a vala em que o
herói poderia cair. Isto é assim. Já vês que te conheço. Para que te escondes
agora? Porque me não contas a ansiedade de todas as tuas dores! Eu sou incapaz
de te humilhar com a minha compaixão. Se te custa, não me digas tudo, deixa-me
adivinhar, pressentir o mais; temos em tudo a necessidade do indefinido. As
grandes dores são como as lágrimas; são mais ardentes à medida que se represam.
—
Eu tenho vergonha de te não haver descoberto há mais tempo o labor misterioso
que se tem operado na minha alma. Amo! Esta palavra diz tudo. A minha agonia
provém do meu orgulho; é um golpe que dói sempre, eternamente, que me faz ser
mau, vingativo, e me dá força para esmagar os outros. Em mim o orgulho é o
móvel de todos os grandes sentimentos, é ele que me pôde fazer mais do que
homem. Tu sabes perfeitamente a minha vida; tem sido até hoje um combate
incessante; a aura pequena que me cerca, o favor e a consideração que tenho tem
sido uma conquista infatigável, como aqueles combates sangrentos da velha
tática nas minas e contraminas das fortalezas. Detestei a família em que nasci
porque foi a primeira que me humilhou e me queria igualar. Não imaginas que
esforços inauditos para conseguir uma diminuta independência à custa de um
trabalho insano, o trabalho da inteligência, que ninguém reconhece, que se não
paga. Depois, ver-me envolvido na alta sociedade, ter de competir e de mostrar-me
forte, não querer que ninguém adivinhasse a minha indigência! Não sabes, o que
é voltar alta noite do ruído de uma grande festa e atirar-se um homem de
cansado em cima de uma enxerga alastrada numa mansarda lobrega, depois das mais
brilhantes ovações, depois de ter aspirado o perfume quase celestial da glória.
Quantos naquela noite não invejariam a minha transfiguração, sem saber que o
Thabor por onde subia era semeado de cardos que me ensanguentavam.
De
um dia para o outro me vi cercado de glória; falava-se em mim, queriam ver-me,
estava em moda, era recebido como príncipe, festejado, seguido. Explicavam a
distração contínua que me tornava alheio a este culto perene, pelo êxtase da
alma, pela abstração contínua do espírito pairando entre o céu e a terra. Não
era assim. Lembrava-me o passado, a miséria e o abandono do dia de ontem, e
doía-me o contraste. A glória só por si era pouco, não me saciava. Queria
bastante glória, mas para dala. Tinha necessidade de encontrar uma pessoa no
mundo que vivesse da minha vida. Para amar tinha os tipos da minha fantasia,
desenhava-os ao meu capricho, como queria, puros como Ofélia, dedicados como
Griselidis, minhas, minhas como la Belle
au bois dormant. Mas os dias corriam sem novidade de impressões, e os tipos
arcangélicos que me cercavam, que evocava dos abismos da imaginação ardente
desamparavam-me como as filhas do Rei Lear. Lembras-te do quadro gigante
traçado pela audácia de Shakespeare, quando o velho pai, com o cabelo flutuando
ao vento da tempestade, no inverno, caminha desolado no seu abandono? As filhas
da minha imaginação desamparavam-me e o tédio da alma era o deserto glacial em
que me via perdido. Eu sentia em mim bastante fogo, muita vida, para dala a
quem viesse compassiva e não soubesse mesmo confessar o seu amor. Havia de
interpretar cada olhar, como uma aurora que se abre, cada sorriso como uma
catarata de luz que nos envolve e nos confunde no infinito. Criara um longo
sonho de amor, belo, belo, quanto sabia que era impossível realizá-lo no mundo.
Por fim convenci-me tanto da verdade que o julgava possível. Conheces estes
sonhos dos nevoeiros do norte; quando a ondina se confunde na cerração, e o
desejo veemente de vê-la, de abraçá-la, começa pouco a pouco a dar-lhe forma, a
vesti-la de realidade, até que um dia se sente nos braços daquele que a trouxe
um momento à existência pelo ardor da aspiração? Foi como encontrei a mulher
que primeiro me falou de amor. A confiança dela fez-me grande. Disse-me que não
queria a minha glória; que antes me queria obscuro para ter de amar só a mim.
Deixei-me levar por aquelas palavras que eram uma música celeste; quando já não
podia resistir a mim mesmo, o orgulho atacou-me de frente.
Disse-lhe
então que era impossível o amor entre nós. Rica, bela, não podia ser amada
desinteressadamente, ao menos diante do público. Tinha vergonha que dissessem
que a amava pela fortuna que possuía; esmagava-me esta ideia vil do senso
comum. Desde esse instante procurei combater-lhe o sentimento puro que me
revelara. Descobri-lhe uma rival, com quem ela, apesar de todos os encantos,
não poderia competir, que a deixaria na sombra a estiolar-se, enquanto se
aureolava de luz, se dava à adoração de todos; era a Arte, a Arte! Quando lhe
descobri esta atrocidade do egoísmo, em vez de desmaiar e desfalecer como
aquela ingênua e tímida donzela que se prostra perante a majestade olímpica de
Goethe, repelida pela sua rival a Arte, que a lançou fora do seu templo, pelo
contrário se enlaçou a mim com uma candura infantil, despreocupada, beijou-me
em delírio, segredando-me com uma voz que se coava por mim, que me vencia: O
que é a Arte sem a realidade! Depois disse-me com a voz lânguida, frouxa,
impensada como a melodia de uma harpa eólia: “Eu bem sei que não tenho uma
beleza que deslumbre; nem ela existe senão para exprimir algum sentimento. O
que agora se passa em mim é uma verdade, é por isso que as outras me chamam
bela. Se eu tivesse uma correção de formas como um mármore antigo, tinha medo,
sabia que não era amada por mim, que me adoravam os contornos da plástica.
Gosto mais de ser como sou, posso ser amada com mais verdade.” Sentia-me mais
do que Deus; ele nunca teve uma adoração assim; tinha vontade de precipitar o
tempo, e chamar-lhe minha. O amor ia crescendo de dia para dia. Diante da mulher
que eu sonhara, era preciso mostrar-me grande para merecê-la. “Eu bem sei que a
minha família há de combater o nosso amor; que importa! Tenho medo de não poder
lutar. Se me violentarem a casar com outro, tens direito a reclamar quando
quiseres o teu amor.” É impossível! Nunca. Essas palavras na boca de qualquer
eram infames, abjetas; ditas por ti, são uma dor funda, a abnegação de quem não
sabe resistir. Eu pensava em alcançar uma posição social à custa de todos os
esforços; depois iria pedir a sua mão de esposa. O sucesso está em não
precipitar o tempo. Confiava na minha vontade inabalável. Num instante
desampararam-me todos os planos de felicidade; vi-me só!
Não
sei mesmo a quem acuse. Seria por força minha, se eu pudesse ser infame.
Ninguém mentiu. Perdi-a para sempre; entre nós ergue-se o impossível. Eu nunca
duvido do seu amor; mas de que me serve agora, que é já realmente de outro
homem? Não sabias que estava já casada? Não sei como explicar isto! Ela tinha
um primo, o único herdeiro de um título, das grandes riquezas da sua família.
Era a última pessoa que restava, ártico, infestado, com a doença hereditária,
que foi levando um após um os seus irmãos. Voltara de uma viagem pela Europa;
ele mesmo chegara a esquecer-se do prazo fatal que lhe estava imposto pela
doença. Apaixonou-se pela prima, pediu-a, dizendo que não queria deixar
extinguir-se o nome da sua casa. Acederam imediatamente. A vítima inocente não
pôde resistir a estes combates domésticos, de todos os dias; deixou-se levar,
como o cordeiro do sacrifício. Vi-a pela última vez no carro com o noivo;
senti-me pequeno e envilecido, parece que me enterrava pelo chão. Depois não
tive coragem de aparecer. Temia os epigramas dos outros. O orgulho é o meu
maior algoz; devora-me como um cancro. Sinto-me mão, com vontade de esmagar os
outros, não compreendo a generosidade. Este desgosto fez uma alteração profunda
na minha vida; nunca mais posso falar verdade, porque me mentiram no momento
mais santo da vida. Sinto-me com a imbecilidade do assombro, estou estúpido;
sou um involucro vazio, abandonado pela borboleta; como uma concha atirada do
fundo do mar imenso a uma praia deserta. Apossa-se de mim um desespero
insofrido ao lembrar-me que ainda sou criança, e que tenho de arrastar uma vida
erma de todas as esperanças.
—
Eu bem sei que não mentes, que não é imaginária a tua dor. Basta olhar para a
tua face; tem empanado o brilho da mocidade; é como um lago que vai perdendo a
limpidez, e que as bafagens mornas evaporam. Eu queria saber consolar-te sem te
humilhar. Bem sei que é muito difícil. Não achas a mínima distração onde os
outros encerram todos os seus prazeres. Deixa que a tua indiferença te leve. A
mulher que amaste é hoje condessa, e abre os seus salões aos amigos que
festejam os anos do seu marido. Vem comigo. É um baile de máscaras. Ninguém te
pode descobrir; eu apresento-te como um amigo íntimo. Tu precisas cauterizar
essa agonia. Vem vestir-te.
***
Pela
volta das onze horas da noite os dois máscaras foram introduzidos na sala do
baile. Era mais vivo o estridor das valsas; as cores deslumbrantes, as
pedrarias, os reflexos da luz, a confusão e o delírio, os pares enlaçados num
volteio frenético, tornavam comunicativa, convulsa tamanha alegria. Entraram
desapercebidos, sob dominós singelos. Debaixo de uma máscara de cetim ninguém
sabia que andava escondido um grande desgosto; a máscara servia mais para não
deixar ver aos outros aquela tristeza funda que não era para ali. Ia pelos
salões olhando, seguindo, como quem caminha nas trevas. Cada vulto que passava,
gracejando, rindo distraído, parecia-lhe uma larva errante num páramo deserto.
Tanta mulher bela, tantas palavras de amor, vibradas tremendo, e nem uma sombra
leve de verdade. Como os homens se alegram quando sabem que estão entre si a
mentir!
Nessa
noite a condessa estava arrebatadora de encanto; acabara de tirar a máscara
nesse instante, e o calor que lhe afogueava a face dava-lhe uma cor lasciva, de
endoudecer; o cansaço, os lábios entre abertos, que estavam como a pedir beijos,
tornavam-na lânguida, voluptuosa como a huri mais ideal dos sonhos do profeta.
Caiam-lhe algumas tranças desprendidas no fragor da dança, sobre os ombros
alabastrinos, como numa travessura, como os cabelos de uma odalisca que se
alevanta do banho embalsamado e tépido. Uma das rosas da sua grinalda caiu
casualmente no chão. O olhar mais ardente e expressivo de uma mulher, não podia
ser tão fatal como a queda daquela rosa. A máscara de cetim aproximou-se
misteriosamente e ergueu-a do chão. A condessa seguiu-a vagarosamente com a
vista, e esperava que a flor lhe fosse restituída. O máscara escondeu-a em si,
e confundiu-se nos grupos que se cruzavam. Ninguém deu por isto. Depois a
orquestra rompeu com as notas estridentes e repentinas de uma contradança.
—
Digna-se vossa excelência dar-me a honra de ser meu par? — disse o máscara de
cetim aproximando-se levemente da condessa.
—
Com tanto que diga para que escondeu a rosa?
—
Se escondi a flor, temia que a calcassem aos pés. Custava-me tanto ver esmagada
a imagem mais triste da minha alma. — Apenas proferidas estas palavras com a
voz abafada e trémula, a condessa ergueu-se de súbito, hesitando se deveria
ouvir uma confidência que a comprometia; o máscara de cetim deu-lhe o braço e
foi colocar-se ao fundo da sala diante do seu vis-à-vis, triunfando daquela
irresolução.
—
E o que pretende fazer dessa flor?
—
Guardá-la.
—
A sua determinação leva-me a perguntar quem lhe deu direito para tanto?
—
Não devo dizê-lo.
—
Ordeno!
—
Não é justo satisfazer todas as indiscrições, principalmente quando...
—
Complete a frase.
—
A ingenuidade de criança...
—
Diga tudo.
—
É irresponsável pelo passado.
—
Não compreendo! — Retorquiu a condessa fitando a máscara, procurando em vão
surpreender debaixo dela quem seria capaz de falar assim.
Um
misto de terror e de curiosidade embaraçava-a, não sabia o que devia fazer.
Depois de alguns instantes de silêncio, disse quase em lágrimas: — Tenho medo
de si! Oh dê-me essa flor.
—
Nunca!
—
Exijo! — disse a condessa com a voz sumida, sentindo-se dominada pela
fascinação do desconhecido.
—
Aqui está a rosa, — disse o máscara tirando do seio a flor quase murcha. — É
impossível entregá-la. Eu posso exigir mais em paga dela. Posso exigir tudo! É
uma promessa inviolável como o juramento. Um dia a mulher que eu amava, no
extremo da sua vertigem e loucura por mim, prometeu ir até onde eu estivesse, e
aí entregar-se-me, se soubesse que eu tinha a vida contada por instantes, e
havia de sair deste mundo sem abraçá-la ao menos uma só vez como minha. Os
desgostos têm-me devorado lentamente a existência; pressinto a cada instante em
mim a frieza do sepulcro, e não soube ainda erguer a voz e reclamar a promessa
fatal. Nem eu a quero! Bastou-me ouvi-la para antecipar no mundo todas as venturas
do empíreo. Deseja a rosa ainda?
—
O senhor dilacera-me! — volveu a condessa com a voz dorida, e com uma
delicadeza inexcedível.
—
Se a flor que deixou cair está cheia de espinhos! Não me atrevo a entregá-la.
Dou pela rosa a única ideia que me podia fazer persuadir que ainda vivo! É uma
troca generosa! Aceita? Um dia a mulher que eu amava, conheceu a desigualdade
da nossa posição, disse-me, de um modo que só ela saberia dizer sem macular a
ingenuidade da sua candura: — “Se me violentarem a casar com outro, tens
direito a reclamar quando quiseres o meu amor!” Seria uma infâmia vir
lembrar-lhe uma palavra proferida no momento mais exaltado da paixão, para perdê-la
por um capricho. Não vale essa promessa. Agora ainda quer a flor?
—
Oh, não! não! — acudiu a condessa represando as lágrimas que lhe inundavam os
olhos cintilantes. — Eu não sei o que quero agora! Ninguém podia falar-me assim
a não ser... Fale-me, eu estou conhecendo esta voz! É impossível que não seja!
Não sabe como é horrível esta incerteza. Não o julgo capaz de atraiçoar-me!
Erga uma ponta da máscara, deixe-me vê-lo, a mim só, e fico descansada.
—
Eu não podia atraiçoá-la, nem mentir-lhe. Sou quem imagina; vim para vê-la pela
última vez, porque me sinto acabar; estão contados os dias da minha vida; passo
com as folhas deste inverno. Bem o conheço, e resigno-me. Não pensei que o
primeiro amor que se tem na vida poderia ser tão funesto.
—
Oh, não fale assim, que me mata! Eu tenho remorsos de não ter lutado mais
tempo; não tive culpa; minha família quis a minha infelicidade. Eu amo-o porque
não sabe acusar-me. Quero vê-lo! já que não é possível mais. Tire por um
instante a máscara. É o que ouso pedir-lhe.
—
Eu tenho medo de arrancar a máscara; está pregada com o suor frio que me
escorre da cara. Para que me quer ver? Estou tão demudado! Não sou o mesmo.
Deve ter horror de mim; estou quase esqueleto.
—
Por um instante só! quero vê-lo, afaste um pouco a máscara. — Neste instante a
condessa voltou a face de aterrada. Contemplou de relance os estragos que uma
dor lenta fizera sobre as faces tão animadas que primeiro refletiam os seus
primeiros rubores. Fez um esforço inaudito para suster-se; a máscara de cetim
deu-lhe novamente o braço e foi sentá-la no mesmo lugar onde tinha caído a rosa
da grinalda; depois segredou-lhe umas palavras de abnegação e bondade:
—
Esta rosa é a primeira que há de reflorir sobre o meu sepulcro. — E saiu; a
noite ia remota; os alvores da madrugada lutavam com as luzes baças das salas,
o acordar da natureza com o ruído vertiginoso da festa; o tédio e o cansaço
traziam a desanimação, como acaba sempre o baile mais esplêndido.
***
Apesar
da impertinência de ártico e da estupidez vinculada na sua descendência, o
conde tratava perfeitamente a sua mulher. A causa deste respeito provinha da
desigualdade, da força de inteligência, da graça com que ela se tornava
interessante para todos. Admiravam-na, e esta veneração refletia-se um pouco
sobre o marido. O conde sentia que a sua mulher lhe dava a importância que não
tinha por si, e respeitava-a também.
A
alegria com que ela andava! Sentia-se mãe, tinha vontade de amar. Dera-lhe Deus
um filho, uma alma para o seu amor. Parecia-lhe que ao beijá-lo, ao tê-lo sobre
os joelhos, se esquecia de tudo, de um passado feliz, de uma união forçada, do
vazio da existência, mesmo daquela noite ligeira, em que contemplou as ruínas
que fizera, e que lhe deixou recordações pungentes, infinitas. Depois, a
lembrança do passado amor, o primeiro, o puro, o íntimo, vinha unir-se a esta
ideia risonha de ser mãe, que a fazia esquecer-se de tudo! Pobre mãe! O conde
preocupava-se apenas com a existência de um herdeiro. Era o que bastava. Almas
vis que destroem o que há de mais santo na vida pelo interesse mercenário! Doente,
no seu amor a mãe sentia-se cada vez mais compassiva; lembrava-lhe a rosa que
lhe tinha caído do cabelo, o cavaleiro que lhe fizera a despedida para o
sepulcro, e esta saudade começou vagarosamente a influir, a exercer uma ação
misteriosa sobre o feto. Não é estranho este fenômeno maravilhoso em
fisiologia. O segredo da calipédia das mães gregas consistia em contemplar
estátuas admiráveis cuja beleza se refletia depois nos filhos.
Passados
meses veio à luz a criança. O conde andava louco com o nascimento do filho. À
medida que os traços da fisionomia se iam precisando, a criança parecia-se
menos com o conde; ele começou a observar isto. Não se atrevia a fazer uma
acusação. Era impossível. Depois as desconfianças tomaram corpo na sua alma,
quando viu que a criança se parecia muito, muito com o rival, que preterira.
Com a malignidade acintosa de achacado, foi torturando com esta atrocidade a
tranquilidade da sua esposa. Ela, quanto mais se refugiava no passado, tanto
mais via o filho representá-lo diante dos seus olhos. Não sabia defender-se; a
inocência não se preocupa com argucias, não quis resistir, e deixou-se vergar
pela dor. Foi a definhar-se lentamente no sofrimento mudo desta ímpia
injustiça. Assim a rosa que refloriu sobre um sepulcro que impensadamente
abrira, veio cair desfolhada pelas virações da tarde sobre a terra fresca que
acabava de a cobrir.
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