Anatole
France: Justiça e Injustiça
“A justiça dos homens”
(Civilização Brasileira - 1978)
É no livro de contos “A justiça dos homens” que
Anatole France publica o seu famoso libelo contra um dos três poderes que, em
nome da democracia, oprime e sufoca o cidadão comum: o aparelho judiciário ou,
no popular, a Justiça. “Crainquebille” – esse é o nome da peça – na palavra de
Mario da Silva Brito “é um libelo, um requisitório, comovido e comovente, sobre
o comportamento do aparelho jurídico e judiciário em relação aos desvalidos,
aos pobres diabos – o desvalido ou pobre diabo que qualquer um, dependendo das
circunstâncias, poderá vir a ser diante da majestade das leis. Todos somos
Crainquebilles em potencial.”
Só a orelha de Mario da Silva Brito é suficiente para
incitar a todos a leitura da obra, porém não a indicamos a juristas, advogados,
juízes e rábulas, porquanto seria malhar em ferro frio... Porém,
“Crainquebille” não vinga sozinho no volume. Outros contos de igual repercussão
acompanham-no na coletânea. Entre as histórias, todas recheadas de humanismo e
humanidade, salta o conto “Putois”, que vem logo a seguir. A figura de Putois
nasce de uma mentira – um motivo
plausível – inventada pela família Bergeret, para justificar a ausência a
uma indesejada (e, ao que parece, chata) reunião familiar.
“Lamento muitíssimo, cara tia, mas não nos será
possível. Domingo estarei esperando o jardineiro.” O diálogo prossegue
incluindo todas as minúcias necessárias a justificar a mentira. Quem é, quem
não é, pois nas vilas se conhece tudo ou quase tudo o que se passa. E por fim
vem a pergunta fatal:
“Como se chama o teu jardineiro?”
“Putois”.
Pronto, a mentira foi batizada e portanto passou a
existir. Mas como fazer existir o que não existe? Da mesma maneira que a criatura
toma posse do criador. Uma vez lançada no mundo até uma ficção vira realidade.
E lá pelas tantas, quando a própria enganada resolve também admitir o
jardineiro a seu serviço, Putois vê a sua invisibilidade ameaçada. A mentira
cresce, torna-o esquivo, difícil de encontrar, além de tudo é um mau caráter,
um mandrião. Mas, de repente, um dia...
“Acabo de ver Putois.”
“Não diga!”
“Sim, eu vi.”
“Tem certeza?”
“Absoluta! Estava andando depressa. Perdi-o de vista.”
“Era ele mesmo?”
“Sem a menor dúvida. Um homem duns cinquenta anos,
magro, encurvado, parecendo um vagabundo, com uma camisa encardida.”
“De fato, a descrição pode aplicar-se a Putois.”
Agora que a figura é palpável, o mau-caratismo cresce.
As coisas desaparecem? Foi Putois. Roubos ocorrem? Foi Putois. Até mesmo uma
cozinheira, tida como beata, foi seduzida e violentada. Por quem? Putois. A
existência de Putois vira caso de polícia. Agora é procurado e perseguido por
seus pequenos delitos. Seu destino final parece claro – a cadeia. Mas quis o
destino que assim não fosse. Um corpo com a mesma descrição de Putois é
encontrado. E assim dá-se fim a uma ficção que virou realidade e morreu. Morreu
mesmo? Antes que o desaparecimento de Putois se fizesse por total, a pessoa que
lhe deu vida, sua criadora pois, “certa feita chegou a sentir que o sangue lhe
fugia, imaginando que ia ver a sua mentira materializar-se diante dela.” Foi no
dia em que a nova criada veio anunciar que estava à porta um homem queria
vê-la.
“Quem é?”
“Um homem de macacão.”
“Não disse o nome?”
“Disse, madame.”
“E então, como se chama?”
“Ele disse que se chama Putois.”
Quando a criada, enfim, foi à porta, não tinha mais
ninguém. Só que a partir daquele momento, a criadora da farsa passou a crer que
Putois tivesse existido mesmo e que, afinal, talvez ela não tivesse mentido...
Até aí morreu o Neves! Na sequência do livro o próximo conto é “Riquet”. E lá
vou embarcado numa viagem de destino desconhecido, como costumam ser os livros.
Mas quem é Riquet? Nada mais nada menos que o cão de Bergeret, figura do conto
anterior! Personagem, aliás, cuja existência não tinha sido mencionada! Bom, em
resumo é o seguinte.
O senhor Bergeret tinha resolvido mudar-se com a
família da velha casa, para morar num apartamento moderno. Nesse cenário, aos
poucos invadido pelos homens da mudança e se torna devastado, vaga a figura de
Riquet, o cão. Sem entender o que está se passando, vê os móveis e objetos aos
quais tanto se afeiçoou sendo retirados. “Ele deplorava em silêncio o
descalabro da casa e procurava em vão, de quarto em quarto, um pouco de
sossego.” E no dia da partida, “vendo as coisas piorarem de hora em hora, ele
se desesperou.” São muitas as provações pelas quais passa um cão em mudança. Só
quando o próprio Bergeret veio em socorro e, apesar de tudo, o levou a um
passeio, ele se acalmou. Do outro lado da rua, o homem e seu cão admiravam o
lamentável espetáculo dos móveis, objetos domésticos, livros, estantes, tudo
espalhado pela calçada à espera da mudança.
“Então, Riquet esfregou com as patas as pernas do dono
e levantou para ele seus belos olhos aflitos”, que diziam: “– Será que tu, até
bem pouco tempo, tão rico e poderoso, te tornaste pobre? Será que te tornaste
fraco, ó meu senhor? Deixas que homens venham invadir a tua sala de visitas, o
teu quarto de dormir, a tua sala de jantar, revirar os teus móveis e
carregá-los para fora, arrastar pelas escadas a tua bela poltrona, a poltrona
em que descansávamos os dois todas as noites e muitas vezes de manhã, um ao
lado do outro? Eu a ouvi gemer nos braços daqueles homens mal vestidos, aquela
poltrona que é um precioso Fetiche e um gênio benfazejo. Não te opuseste
àqueles invasores. Se não tens mais nenhum dos espíritos que enchiam a tua
morada, se perdeste até aquelas pequenas divindades que calçavas de manhã
quando te levantavas da cama, aqueles chinelos que eu por brincadeira mordia,
se és agora indigente e miserável, ó meu amo o que será de mim?”
Até aí – de novo – morreu o Neves! Meus amigos, olhem
o que acontece na sequência, porque o próximo texto é – tcham, tcham, tcham,
tcham! – “Pensamentos de Riquet.” Pois, pois, eis, que um personagem que nem
havia sido citado já percorre o itinerário de três estórias... E quais são
esses pensamentos do cão filósofo? Zaratustra que se cuide!
I – Os homens, os bichos, as pedras aumentam de
tamanho quando se aproximam e ficam enormes quando chegam junto a mim. Eu não.
Continuo sempre do mesmo tamanho, onde quer que esteja.
II – Quando o meu dono me estende sob a mesa bocados
do alimento que ele vai meter na boca, é para me tentar e castigar-me se eu
sucumbir à tentação. Pois eu não posso acreditar que ele se prive por mim.
III – O cheiro dos cães é delicioso.
IV – Meu dono me mantém aquecido quando eu fico
deitado atrás dele em sua poltrona. Isto é porque ele é um deus. Há também na
frente da lareira uma laje quente. É uma laje divina.
V – Eu falo quando quero. Da boca do meu amo também
saem sons que forma um sentido. Mas são sentidos bem menos distintos do que eu
exprimo pelos sons da minha voz. Na minha boca, tudo tem um sentido. Na do amo
há muitos ruídos vãos. É difícil, se bem que necessário, adivinhar os
pensamentos do amo.
VI – Comer é bom. Ter comido é melhor. Pois o inimigo
que nos espia para arrebatar-nos o alimento é lesto e sutil.
VII – Tudo passa e se sucede. Só eu permaneço.
VIII – Eu estou sempre no centro de tudo: os homens,
os animais e as coisas, hostis ou favoráveis, dispõem-se ao meu redor.
IX – Quando se está dormindo, se vê homens, cães,
casas, árvores, formas amenas e formas assustadoras. Quando se desperta, essas
formas desaparecem.
X – Meditação: Eu amo o meu senhor Bergeret porque ele
é poderoso e terrível.
XI – Uma ação pela qual se foi espancado é uma ação
má. Uma ação pela qual se recebeu carícias e comida é uma boa ação.
XII – Quando a noite cai, potências malfazejas rondam
em torno da casa. Eu, com meus latidos, advertimos o meu senhor, para que ele
as expulse.
XIII – Prece: Ó meu senhor Bergeret, deus do massacre,
eu te adoro. Terrível, sê louvado! Propício, sê louvado! Eu me arrojo a teus
pés, lambo-te as mãos. Tu és muito grande e majestoso. Tu és grande e majestoso
quando, com um movimento do dedo, transformas a noite em dia. Guarda-me em tua
casa à exclusão de todos os outros cães. E tu cozinheira, divindade excelsa e
bondosa, eu te adoro e venero para que me dês bastante de comer.
XIV – Os cães que não mostram devoção para com os
homens e que desprezam os fetiches reunidos na casa do senhor levam uma vida
errante e miserável.
XV – Um dia, um cântaro furado, cheio d’água,
atravessando a sala de visitas, molhou o assoalho encerado. Acho que o
porcalhão deve ter sido surrado.
XVI – Os homens têm o poder divino de abrir todas as
portas. Eu só consigo abrir um pequeno número delas. As portas são grandes
fetiches que não costumam obedecer aos cães.
XVII – A vida de um cão é cheia de perigos. Para
evitar sofrimentos é preciso estar vigilante todo o tempo, durante as refeições
e até durante o sono.
XVIII – Nunca se pode estar certo de ter procedido bem
em relação aos homens. Cumpre adorá-los sem procurar compreendê-los. Seus
desígnios são misteriosos.
XIX – Invocação: Ó Medo, Medo augusto e paternal, Medo
santo e salutar, penetra-me, invade-me no perigo, para que eu evite o que possa
me ferir e para que eu não venha, lançando-me sobre o inimigo, a sofrer por
minha imprudência.
XX – O mundo é cheio de coisas hostis e assustadoras.
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