Amância

No
meio de uma bela companhia de moças que fazem esquecer as horas, não me
importei com a última barca de vapor que saíra, projetando voltar em uma falua
quando cessasse o sarau. Estávamos tomando chá, repetindo charadas, e contando
anedotas, quando bateram à porta.
—
Entre quem é, disse a dona da casa.
Entrou
um homem bem parecido, todo vestido de preto; e só por esse modo de trajar,
qualquer que ali o não conhecesse diria ser pessoa grave, e que não para se
divertir tinha ido a Niterói.
—
Oh, Sr. Doutor! Vossa senhoria por aqui a estas horas! Sem dúvida veio ver
algum doente? disse a dona da casa.
—
Decerto; e estou desesperado, não pelo doente, mas pela última barca que lá se
foi. A noite está tempestuosa, e não tenho remédio senão ir para a cidade em
uma falua.
—
Meu Doutor, disse-lhe eu, terá companhia; porque também estou aqui invernado.
—
Quer entretanto tomar uma jaqueta? Francisco, traze de lá uma jaqueta, disse o
dono da casa.
—
Ora, Doutor, tome uma xícara de chá, disse-lhe uma das moças, e conte-nos
alguma novidade para entreter-nos até passar a chuva.
—
Que lhe hei de contar, minha priminha? Eu não sei senão casos de doentes.
—
Pois não! O senhor que é capaz de falar um dia inteiro sem comer nem beber, só
tomando pitadas! Veja agora se quer que o roguem!
—
Senhor Doutor, disse outra moça, conte aquele caso da moça que se atirou ao
mar, e que dizem que o senhor viu.
Enquanto
entre o doutor e as duas moças se passava esta conversação, outras pessoas em
grupos diversos riam-se e falavam de outras coisas.
—
Pois bem, disse o doutor, vou contar-lhes o caso, minhas senhoras; mas quando
acabar cada uma me há de dar um abraço. Estão por isso?
—
Nós lho prometemos. Escutem, meus senhores, minha mãe, prima, maninha, venham
ouvir uma história muito bonita.
O
doutor, tomando uma pitada, assim começou.
—
Era uma bela noite de verão, tão pura, tão serena, tão clara, que se podia
dizer com Chateaubriand: não era noite, era a ausência do dia. Parecia que o
sol, retirando-se, deixara ao firmamento parte das suas galas. Tão rutilante
estava a lua que diríeis ser o mesmo sol mal envolto em um véu transparente e
azulado. À porfia brilhavam as estrelas, e pela pureza dos ares maiores
pareciam que de ordinário. Era uma noite própria à observação das maravilhas
celestes, e igualmente propícia às folganças campestres; enfim, para tudo dizer
de uma vez, — era uma noite do Rio de Janeiro!
"Já
ao longe na Fortaleza de Santa Cruz, que guarda a entrada da barra, um tiro de
artilharia tinha anunciado as nove horas; e as trombetas e tambores das
inúmeras embarcações de todas as partes do mundo, ancoradas na vastíssima baía,
elevando ao céu seus mastros, como uma floresta seca da Europa, repetiam aquele
sinal de repouso. Uma suave viração refrescava as ruas da capital do Império, e
trazia o eco longínquo das músicas que nos vasos de guerra soavam. Em todos os
quartéis tocava-se a recolhida, e no interior das casas reinava o prazer. Daqui
uma flauta chorosa, dali uma guitarra, acolá uma voz melancólica de moça,
acompanhada pelo piano. Tudo era alegria. Não faltaria também quem chorasse
nesse momento.
A
minha profissão de visitar os que sofrem tinha-me levado até o caminho do
Catete, muito antes de chegar à ponte. Na volta vinha eu em uma espécie de
êxtase, não só pela beleza da noite como pelo prazer das melhoras do meu doente
e agrados da família, prazer este que é a maior recompensa do médico que apenas
enceta a sua carreira, todo cheio de esperanças de adquirir reputação e
conceito.
Que
venturas não vinha eu sonhando! Às vaidosas criações da minha mente sucederam
mais calmas meditações mal cheguei à estrada da Glória. A vista do mar
tranquilo como um espelho que se estendia à minha direita, atravessado por uma
faixa abrilhantada, que sobre ele projetava a lua, tendo um ponto fixo na
imagem do astro da noite, e outro móvel que me seguia, produzia sobre mim uma
impressão de melancólico prazer, que o coração sente, e não sabem os lábios
explicar. Não pude resistir; eu andava com os olhos pregados ora no céu, ora no
mar, que outro céu se me antolhava ainda mais iluminado, porque não só refletia
todas as estrelas, como a luz de todas as lanternas dos navios. Na verdade, a
baía do Rio de Janeiro é uma maravilha do mundo!
Desejei
então ter uma fantasia de poeta; e como que minha alma extática poetizava em
silêncio, sem achar palavras que exprimissem a infindade de seus pensamentos,
tão vagos como o espaço, tão serenos como a noite, e tão brandos como o
murmúrio das mansas vagas, que preguiçosamente se deslizavam morrendo sobre a
praia da Glória. Oh! os poetas têm momentos deliciosos! Momentos de embriaguez
celeste, a que nada se pode comparar! Oh poetas! Ministros da Divindade, que
convosco ri-se, e com vossos cânticos se apraz! Eu daria metade da minha
monótona existência para gozar na outra metade desses vossos delírios de
inefável deleite! O riso mais angélico da inocência, que docemente salpica os
lábios da infância, apenas é para o médico uma contração; mas a vossos olhos o
que não revela esse riso? o que não diz à vossa imaginação criadora? O amor é
um objeto de especulação para o egoísta, um instinto sensual para o comum dos
homens; mas para vós, oh poetas, é uma fonte perene de suaves melodias; é uma
divindade pura, uma fragrância contínua, uma harmonia inesgotável do coração,
um êxtase infinito, uma adoração de todos os sentidos e de todas as faculdades,
um sacrifício d'alma, uma elevação a Deus! Feliz o poeta; porque ele só sabe
gozar o amor puro, verdadeiro e endeusado! Feliz a bela que inflama o coração
do poeta; porque só ela entre todas as belas, recebe o tributo digno da beleza!
—
Está bom, Sr. Doutor, basta de preâmbulo; conte a história e deixe-se de
poesias, disse uma das moças, que parecia impacientar-se.
O
doutor, olhando para ela fixamente, tomando uma pitada, respondeu-lhe em tom
malicioso: Eis aqui como às vezes descubro sem querer os segredinhos das moças!
A prima, ou não ama, ou se ama, não é certamente a um poeta.
Aplaudiram
todos a resposta, e Florinda, corando, tomou um tom de zombaria para disfarçar
o seu vexame, e assim replicou: — Deus me livre de poetas! Eu lá quero um doido
comigo! Bem me custa aturar o senhor, quando começa a falar sem nunca acabar, e
que para dizer uma coisa leva um dia; quanto mais a um poeta, que primeiro que
diga o que quer, procura mil rodeios, e afinal é preciso que o adivinhem.
—
Não se enfade; a prima parece tomar o pião à unha.
—
Vamos lá; acabe a história.
—
Agora apenas tinha principiado; são os prelúdios para dispor o auditório. Não
falto às regras da retórica.
—
Florinda tem razão, disse Margarida: o Sr. Doutor não se lembra que as mulheres
são curiosas, e desejam saber as coisas logo.
—
Eis aí porque elas sabem pouco. É preciso vagar para tudo; não se vai a Roma em
um dia. Tenham paciência. Como estou com a imaginação exaltada, e a língua
solta, por ter discorrido toda a tarde em uma reunião em que estive, quis
florear um pouco. Demais, estes casos contados simplesmente não têm graça.
Vamos ao caso.
"Vinha
eu todo engolfado nestas meditações, sem dar atenção aos mais objetos, e sem
saber para onde meus pés caminhavam; assim atravessei o largo da Lapa, e em vez
de tomar pela rua das Mangueiras, que era o meu caminho, quando de mim dei
acordo estava na porta do Passeio Público, respirando um ar embalsamado pelo o
aroma de mil flores. Creio que abstrato continuaria a andar, se insensivelmente
não voltasse os olhos para minha direita, e não visse esse corredor formado por
copadas árvores, plantadas ainda no tempo do vice-rei Vasconcelos, e cujo fim
aberto em arco deixava ver a claridade da lua. Notem a minha distração, causada
pelas ideias poéticas expostas no meu preâmbulo, que não é tão fora de
propósito como parece, e vejam as consequências salutares. Quis voltar; mas a
força do destino, ou a Providência, que até ali me levou distraído, obrigou-me
a entrar. Antes de chegar no meio dessa rua de árvores, parei para ver o efeito
misterioso que produzia a lua no lugar em que se alargam em círculo as copadas
mangueiras, a cuja sombra durante o dia repousam os passeantes sobre os bancos
de granito que o circundam. Quando para o chão olhava, parecia-me um lago
tranquilo aquela claridade refletida; erguendo porém os olhos dissera ser uma
claraboia no meio de um salão escuro. Tomei a direita; não sei porque; e fui
até o paredão do jardim, e daí caminhando ao terrado que deita para o mar,
tencionava colocar-me em seu centro, para do alto ver o efeito das duas
pirâmides saudosas, que se elevam dos dois pequenos lagos rodeados de
salgueiros chorões, e que atestam o amor que ao Rio de Janeiro consagrava
aquele vice-rei, cujo governo foi sempre em benefício público.
"Coisas
há que não se podem explicar. Ou fosse por essa lembrança do passado, ou pelo
estrépito das vagas, quebrando-se contra o recife que protege o exterior da
muralha do terrado, ou pelo coaxar das rãs nos tanques triangulares, em que
estão as pirâmides, ou porque mesmo o coração previsse alguma coisa, senti uma
espécie de arrepiamento, e uma palpitação mais apressada, que me obrigou a
apressar os lentos passos em que eu lia. Não tinha eu ainda chegado à escada
lateral do terrado, quando ouvi uma voz que arrepiou-me todo.
—
Ingrato! vem mais devagar!
Tremi
e parei, e levantando repentinamente os olhos, que até ali se apraziam em ver
caminhar a minha sombra, dei com um vulto no alto do terrado, que veio a mim,
dizendo: Há que tempo estou eu a tua espera!
A
voz me parecia juvenil, e o vulto condizia com a suavidade da voz; o que, aqui
para nós, tirou-me todo o susto. Subi apressadamente a escada, e o incógnito
com os braços abertos me veio esperar. Batia-me o coração fortemente sem saber
por que. Mal nos esbarramos recuou o desconhecido, soltando um ah! de espanto,
e cobrindo o rosto com as mãos, disse com voz trêmula:
—
Enganei-me; queira perdoar.
—
Não há de que, meu menino; nem esse engano lhe deve causar tanto susto. Se
espera por alguém da sua família, e teme estar só, poderei fazer-lhe companhia
até que chegue.
—
Obrigada, obrigado.
"Devo
desde já dizer que o incógnito era de pequena estatura, estava vestido de
homem, e sua voz era suave, e por isso qualquer o tomaria por um menino:
contudo, o título de ingrato que me havia dado, o susto ao reconhecer que eu
não era quem esperava, a elegância do seu corpo, e o obrigada mal corrigido,
fizeram-me logo crer que era alguma infeliz menina, que ali esperava o seu
sedutor. Não querendo porém, para evitar-lhe a vergonha, revelar-lhe que eu
havia adivinhado o seu sexo, continuei a tratá-la como se fosse um menino.
—
Diga-me, senhor, porque esconde o seu rosto? De mim nada há que recear.
—
Faça o favor de me deixar sozinho. Meu pai não tarda por aí.
—
E o que tem o senhor seu pai de escandalizar-se se me encontrar aqui a seu lado?
Não estamos aqui em um lugar público de passeio? Não está a noite tão clara,
convidando a que conversemos sobre estas maravilhas que nos cercam?
O
desconhecido, parecendo não ouvir-me, e cada vez mais assustado, procurava
escapar-me. Pude, então, apesar do seu lenço branco aplicado à boca por uma mão
de neve bem torneada, e apesar do chapéu de castor que lhe ensombrava a fronte,
descobrir seus olhos belos, vivos e grandes, e o nariz fino, próprio de uma
beleza.
—
Eu sei o motivo, lhe disse, porque procura esconder o seu lindo rosto! eu a
conheço, e...
—
Senhor! exclamou ela. E as lágrimas lhe saltaram dos olhos, e toda trêmula
estava.
—
Sossegue, senhora, ouça-me. Sente-se primeiro.
—
Devo estar só. Por Deus, senhor, por Deus, deixe-me só.
—
Eu já a teria deixado, se não visse que com isso faria uma ação indigna. Não
tenho direito de importuná-la, é certo, mas também não posso deixá-la aqui
sozinha quando talvez a senhora necessita do meu socorro.
—
Eu o agradeço. Preciso estar só.
—
Tudo na senhora me anuncia uma moça bem-educada e de boa família; e a sua
estada aqui sem companhia só se explica por uma loucura. Eu sou responsável a
Deus, se podendo evitar a sua desgraça, o não fizer.
—
Se tenho de ser desgraçada, desde já o sou, e ninguém agora pode evitar a minha
desonra.
—
Eu, senhora, eu posso.
—
Como?... É impossível.
—
Este lugar é o prazo dado para a espera?
—
Sim.
—
Pois acompanhe-me; e se quiser voltará a ele quando for tempo.
—
Se entretanto...
—
Sei o que quer dizer. Donde estivermos veremos quem vem.
—
Pois bem, senhor, vamos.
Dei-lhe
o braço. Parecia-me que eu tinha alcançado um grande triunfo, e caminhava tão
cheio de mim como se conduzisse uma conquista minha. Já não sabia o que lhe dissesse;
toda a minha retórica desapareceu naquele instante; o negócio era sério.
Andávamos como duas estátuas mudas, e apenas eu sabia que vivia pelas
palpitações do meu coração.
—
Que horas são? perguntou-me ela.
Receei
dizer-lhe a verdade: Hão de ser nove horas.
—
Tão tarde! meu Deus.
—
Quer que a conduza até a casa?
—
Agora?
—
E por que não?... A senhora tem pai?
—
Não me pergunte coisa alguma a esse respeito. — E com esta pergunta estremeceu.
—
Sentemo-nos aqui; deste lugar podemos ver quem sobe para o terrado, sem que nos
vejam.
—
Qual? eu já não espero. Fui enganada... Desgraçada de mim!
—
Sei em que estado deve estar a sua alma; mas confie em Deus. E para que também
possa ter alguma confiança em mim, saiba que sou médico, estou acostumado a penetrar
o seio das famílias, e a ouvir confidências, e muitas vezes tenho consolado a
outras talvez ainda mais infelizes do que a Senhora. Não preciso que me diga
que motivo aqui a conduziu. A paixão que a domina, nos seus olhos a leio. O
amor tem feito muitas vítimas, mas também faz a felicidade de muitos entes.
Moça, sem experiência do mundo, talvez enganada, deixou-se a Senhora seduzir
sem dúvida por algum desses conquistadores de profissão, que não vacilam diante
de nenhuma dificuldade, e arrastam ao precipício as suas vítimas. Mas não me
quero aventurar em supor o seu amante de torpe caráter, que...
—
Não; ele não é assim... Se o senhor o conhecesse far-lhe-ia justiça, e me
desculparia.
—
Eu desculpo todas as paixões, porque nem sempre elas em nós se manifestam por
nossa vontade; condoo-me de quem as experimenta, pelo muito que sofre, e pelas
desgraças que não lhe é dado evitar. Nem eu me ofereço para moralizá-la, sim
para servi-la, e se julga que lhe posso ser útil, ordene; serei mais pronto que
um escravo obediente, e mais cuidadoso que o amante fiel.
A
impaciência, a aflição, a desordem estavam pintadas no seu rosto, que ela já
não ocultava. Era um rosto de anjo com tal expressão de dor tão viva, que
cortava-me o coração. Rafael não duvidaria toma-la por modelo de uma Mater dolorosa. Ais e suspiros lhe
escapavam do peito a cada expiração. Lágrimas em bagas se deslizavam em suas
faces desbotadas pela mágoa, e a furto esclarecidas pelos raios da lua que se
enfiavam por entre as folhas das mangueiras. Constantemente enxugava com seu
branco lenço o suor frio da fronte; descerrava os lábios trêmulos para falar, e
os sons lhe expiravam na garganta, antes de articulados. Não menos triste e
complicada que a dela era a minha posição. Tomei-lhe o pulso; um estado febril
se anunciava; entretanto a pele estava fria como um gelo, e orvalhada de suor.
Que lhe diria eu? Como tirá-la dali? Para onde levá-la? Como falar-lhe de sua
família, se com essa lembrança mais a inquietariam os remorsos? Depois de um
momento de silêncio, invoquei toda a minha coragem de médico em caso
desesperado.
—
Senhora, disse-lhe eu em tom decisivo, e que mostrava uma firme resolução, não
podemos escolher, porque não há meios diferentes que possamos abraçar. Aqui não
podemos ficar. O seu amante não vem; cumpre portanto voltar para a casa.
—
Que vergonha!
—
Para servi-la procurarei iludir a pessoa que a governa; direi que a poucos
passos distantes da sua casa encontrei-a delirante. Tire essa casaca, não
talhada para seu corpo; ponha-a no ombro. Não precisa recorrer ao fingimento;
seu pulso anuncia febre; em casa a sangrarei, e convencerei a qualquer pessoa
que um delírio repentino, causado por um ataque de nervos, foi causa do seu
procedimento.
—
Não acreditarão! Não...
—
Deixe isso por minha conta; basta que a senhora não fale, e não se lembre de
coisa alguma.
—-E
o ingrato! e o ingrato que me traiu! Meu Deus! meu Deus!
—
Acompanhe-me, senhora; tenho resolvido. Depois me agradecerá; vamos.
—
Antes morrer; mil vezes morrer.
—
Eu a levarei à força, e assim melhor a salvarei.
—
Não; por piedade; deixe-me.
Nesse
momento quase que lutávamos. Antes disso havia eu empregado para convencê-la
mil meios de brandura, que deixo de mencionar. Vendo que tudo era inútil, o que
eu devia fazer? Deixá-la? seria uma crueldade. Decidi-me pois a levá-la por
força. Nesse ponto estávamos, quando a minha desconhecida, parando
repentinamente, exclamou: — Lá vai ele! Adeus; deixe-me.
E
como dela me descuidasse, para ver se com efeito alguém tomava a direção do
terrado, a moça sem mais esperar escapou-me numa carreira. Segui-a
apressadamente, na dúvida se vinha alguém; em tal caso por amor dela não
estimaria que me vissem; mas temendo que fosse uma ilusão da impaciência, não
queria perdê-la de vista. Subiu ela a escada que fica ao lado do tanque no
centro do terrado; e admirava-me de não ver senão ela. O raciocínio em certas
circunstâncias é tão rápido como o instinto: se alguém para ali se tivesse
dirigido, não teria tempo de estar em cima; quando muito teria passado as
pirâmides e pela carreira que levava a incógnita, ter-se-iam encontrado perto
do tanque. Concluí que fora uma ilusão, e dei-me maior pressa para alcançar a
moça.
Cheguei
a cima do terrado, e achei-me só! Um grito soou em meus ouvido! A infeliz tinha-se
precipitado ao mar... E para isso me havia enganado!
Chegar
ao parapeito, vê-la estendida sobre o recife que impede as ondas de bater
contra a muralha do terrado, amarrar um lenço de seda na base da grade de
bronze que o guarnece, escorregar por ele, cair da altura de uma braça, foi
obra tudo de um momento. Julguei ao princípio que estivesse morta. Mas
palpitava-lhe o coração, e o corpo estava frio como a neve. Felizmente tinha
caído sobre um monte de secas folhas, que os jardineiros deitam do terrado
abaixo quando diariamente limpam e varrem o jardim. Contudo ela se tinha
ferido, e o rosto estava ensanguentado. A água do mar serviu-me de medicina.
Levantei-a, e tomando-a nos braços, rodeei o exterior dos muros do jardim, com
tenção de levá-la para minha casa.
Oh!
como eu ia agitado, e ao mesmo tempo satisfeito por ter arrancado à morte uma
infeliz menina! Talvez a levasse à sua família; mas sabia eu porventura quem
fosse? Fiz o que podia fazer. Cheguei a casa, e depus sobre o meu leito um
fardo que tão grato me fora.
Tirei-lhe
a casaca e o colete, e logo sangrei-a, por já começar a febre, e eu temer o
delírio. O peito estava azulado pelas contusões, e as mãos e uma das faces
arranhadas pelos espinhos das roseiras secas. Fiz tudo o que devia fazer em
tais casos.
Foi
larga a sangria; e seguiu-se o sono.
Assentei-me
à sua cabeceira; contemplei a sua rara formosura, e vi com uma espécie de
admiração religiosa a inocência espargida sobre um semblante de dezesseis anos,
tão desmaiado que de mármore parecia. Eu a olhava já com os olhos ávidos de um
apaixonado; e para dizer a verdade, cheguei a crer que o céu destinava aquele
caro objeto para mim, para meu amor! Que sono tranquilo ela dormia! E que
sonhos tão meigos eu sonhava acordado! Cheio de respeito tomei uma das suas
mãos geladas e beijei-a. Levantando-me tomei a vela, e a casaca com que ela se
disfarçara, saí do quarto, e fui assentar-me na sala ao lado da mesa, pensando
na incógnita: e que outro pensamento podia eu ter?
Lembrei-me
que ela fugindo de casa, devia trazer consigo algumas cartas do seu amante, e
que por elas podia eu desenredar o drama apenas começado. Mas receava penetrar
um segredo que voluntariamente se me não confiava. Depois de alguns momentos de
luta, pensei nas consequências; e julguei que me era lícito saber de tudo, para
um fim honesto. Achei na algibeira da casaca um maço de bilhetes, ligados com
uma fita, e uma caixinha de marroquim.
As
cartas estavam deslacradas; abri-as, e li. Algumas só continham expressões e
protestos de amor, outras acusavam recebimento de flores. Entre elas li a
seguinte:
PRIMEIRA
CARTA
"Se creio no que me mandaste dizer, sou o mais feliz de todos os amantes, porque basta o teu amor para endeusar minha existência. Mas ao mesmo tempo a pertinácia de teu pai me constitui o mais desgraçado de todos os mortais. Eu sempre antepus a honra e a glória ao dinheiro; mas hoje desejaria ter milhões para deslumbrar os olhos ávidos de um velho, que no esposo de sua filha não deseja ver outro mérito senão esse. Oh minha Amância! louco de amor por ti, nem me lembro que te não mereço por essa falta de tanta importância para o nosso século de egoísmo. Mas tu, oh anjo com figura humana, tu me desculpas, e me amas! Dize o que devo fazer para possuir-te legitimamente. Minha impaciência é igual ao meu amor. Teu fiel etc."
Nenhuma
das cartas estava datada e assinada; e só depois de ler todas pude descobrir a
ordem em que foram escritas, que era pouco mais ou menos a mesma em que estavam
emaçadas.
SEGUNDA CARTA
"O amor que te consagro, e o que me retribuis apenas servem agora para me fazer mais desgraçado. Ontem tu me dias achar bem mudado! Andei como um doido; estive quase entrando em tua casa, lançando-me aos pés de teu pai, dizendo: Ela já é minha, não a entregueis a outro: seu coração é meu; eis aqui a prova nesta carta. Mas temi que o respeito de filha apagasse o teu amor por mim. Não, oh minha Amância, não; eu não viverei se se verificar a notícia que já corre na cidade, e que a tua carta acaba de confirmar. Eu não temo um rival, porque tu o não amas; mas temo um competidor poderoso; temo a ambição de teu pai; temo a tua inocência; temo o teu respeito à autoridade paterna; tudo temo. Mas não, tu não serás dele. Tu não podes dar uma destra fria a quem teu coração aborrece. Sua idade é muito superior à tua. Uma menina de dezesseis anos não pode ser esposa de um homem de cinquenta, de um velho que só tem por si o dinheiro. Tu serás desgraçada, minha Amância, serás desgraçada, ele, e eu também; seremos todos desgraçados. Mas eu não serei testemunha dos teus desgostos; porque no dia mesmo desse consórcio cruel, à face dos altares, quando tua mão estiver sobre a dele... eu morrerei... sim, morrerei... E de que me serve a vida sem ti?... Há um ano que padeço; há um ano que me não pertenço; há um ano que te consagrei o meu coração, minha liberdade e minha vida. E tudo isso para ver afinal... nem ouso acabar... Oh minha doce Amância, tem compaixão de mim."
TERCEIRA
CARTA
"O
sono fugiu de meus olhos, e no fim desta vigília, mais cruel que a tempestade,
só vejo a morte. Três dias de esperanças e de luta só tenho diante de mim; e no
fim destes três dias de angústias tu me dirás um eterno adeus, para entregar-te
ao teu odioso esposo... e eu estarei na eternidade!... É isto o que queres? Dize,
dize, cruel? O que esperas ainda? Já eu não sou o teu amante? Já te esqueceste
dos teus juramentos? Ah, minha bela, no meio da tempestade, quando as ondas
ameaçam tragar o quebrado navio, salva-se quem pode na primeira tábua que
encontra: a nossa é a fuga. Salvemo-nos! Aceitas? Hoje mesmo, não há mais que
esperar, hoje mesmo. De noite eu estarei no terrado do Passeio Público, no
canto que deita para o lado do Convento do Carmo, por ser o menos frequentado.
Às 7 horas, enquanto toda a tua família estiver com visitas na sala, na ocasião
em que fores preparar o chá, toma a vestes de teu irmão, e vai encontrar-me.
Sim, minha esposa, eu já como tal te considero, e só esta ideia me anima. Não
causes a minha morte. Salva o teu amante, o teu esposo."
QUARTA CARTA
"Estou desenganado... Conheci-te enfim Não há amor de mulher que seja real. Seu juramento é uma perfídia; seu riso uma zombaria; sua palavra uma mentira; tudo nela é uma pura falsidade, que se desvanece como as ilusões do sonho. Oh! como tu me enganaste tão cruelmente! Não haverá também compaixão no coração da mulher? Já eu me contentava que por piedade fizesses o que por amor eras incapaz de fazer... sim por piedade; porque sofro muito. Minha morte é inevitável. Tu não compareceste no prazo dado; sinal certo que me não queres acompanhar, que queres entregar-te a esse odioso rival. Pois bem, entrega-te. No momento do sacrifício, à face de Deus e dos homens, tu me verás surgir como um espectro do sepulcro, no meio dos assistentes... Ver-me-ás morrer, e o meu sangue cairá sobre ti. Com a desesperação n'alma, e o inferno no meu peito, juro que cumprirei o que digo. Adeus, até o momento da minha morte."
QUINTA CARTA
"Sim,
eu devo viver, tu o queres! Tão repentinamente passei da desesperação à alegria
que sinto a cabeça perturbada. Oh! que não possa eu agora abraçar-te, e
devorar-te com os meus beijos como faço à tua carta, que não sai de meus lábios
e de meu peito, como uma preciosa relíquia. Como tu me amas, Amância! Como tu
me amas! Eu também te amo, e te adoro. Perdoa-me, minha querida, a dureza da
carta desta manhã. Eu estava doido, e te julgava ingrata. Sim, tu me perdoarás
pelo muito amor que te consagro. Eu lá vou esperar, como tu me ordenas. Eu lá
estarei de joelhos à tua espera... sim, de joelhos; e a primeira palavra que
quero ouvir de teus lábios é: — Eu te perdoo."
Ora,
eis-nos aqui mais orientados. Amância não faltou naquele dia, pois que lá a
encontrei; por que pois não compareceu o seu tão solícito e apaixonado amante?
Eis o problema que não pude resolver.
Depois
de ler estas cartas, abri a caixinha de marroquim, a que no princípio não dera
atenção, cuidando ser alguma joia; mas qual foi o meu pasmo achando um retrato
de homem! Devia ser o do seu amante. Representava ter vinte anos, e estava de
uniforme militar. Não o conhecia, entretanto parecia-me que já o tinha visto; a
fisionomia não me era inteiramente estranha. Talvez o tivesse encontrado alguma
vez por acaso. À vista do retrato, feito sem dúvida por um bom artista,
desculpei a cega paixão de Amância. Era um belo moço; seus olhos expressivos,
lábios cerrados, faces coradas, cabelos negros, nariz fino, fronte de regular
dimensão, tudo denotava inteligência, e um caráter veemente, sujeito a grandes
paixões.
Se
eu soubesse seu nome e sua morada, talvez o fosse procurar naquela mesma noite
durante o sono de minha enferma, que devia ser longo. Mas guardei isso para o
dia seguinte, tencionando ir ao quartel do seu batalhão que me indicava o
uniforme, e lá informar-me com um oficial meu conhecido, que à vista do retrato
não deixaria de reconhecê-lo.
O
resto da noite foi para mim uma contínua vigília: ora passeando na minha sala a
pensar neste estranho caso; ora ao lado da desconhecida, contando as suas
palpitações, e procurando perceber alguma palavra escapada no sonho. Nada;
tranquila passou a noite. A larga sangria produziu ótimo efeito. Ela dormia,
como se houvesse muitos dias que não gozasse as doçuras do sono.
Já
a luz matinal penetrava os resquícios das janelas, e eu ensejava, sem que pudesse
ser visto, os primeiros movimentos do despertar da pobre Amância. Não queria
ser visto para evitar-lhe o susto; porque tudo o que lhe havia sucedido devia
estar mal gravado na sua memória, como as fugitivas imagens de um sonho. Vi que
ela se revolvia no leito, e repentinamente abrindo os olhos, assentou-se,
procurando reconhecer o lugar em que se achava, e o primeiro nome que lhe
escapou dos lábios foi: Jorge! Jorge!
Era
o nome de seu amante, em cuja casa talvez cuidasse estar. Reparando depois na
ligadura do braço, disse: — Quem me sangrou? Estou ferida! Que foi isto?
Tal
era o seu pasmo que parecia uma alienada, com os olhos abertos e imóveis, os
lábios frouxos, e os braços caídos sobre o regaço. Depois, como procurando
ligar suas ideias fugitivas, franziu a testa, ergueu os olhos para o céu, e com
a mão direita alisava as rugas da fronte. Eu a vi nesse estado ficar longo
tempo sem proferir palavra; entretanto movia os lábios, como se estivesse
falando consigo mesma. Pouco a pouco as faces se contraíram para cima, seus
lábios começaram a tremer convulsivamente, e uma lágrima escapou-lhe dos olhos;
seu peito foi-se erguendo e dilatando, como quem reprime a respiração, e
soltando um ai, caiu de novo sobre o leito a soluçar. Meu primeiro impulso foi
socorrê-la, e o fizera se não fosse médico.
Com
prudência aguardei outros fenômenos, e não me enganei.
—
Quem me socorre! gritou ela. Ai de mim! Ninguém me socorre.
Apresentei-me
então.
—
Senhora! não me conhece? Eu sou o seu protetor. Lembre-se da noite de ontem.
—
Como me trouxe para aqui?
—
Nos meus braços. A senhora estava desmaiada. Contei-lhe o passado; silenciosa
escutou-me, e no fim exclamou: Por que não morri? Por que não me deixou morrer?
—
Porque deve viver para ser feliz.
—
Feliz, eu?
—
Sim; eu já sei de tudo. Vou procurar o Sr. Jorge, que sem dúvida razão de
enfermidade impediu de ir ter ao prazo dado. Eu o trarei aqui; e se ele é um
pérfido, o que não creio, farei pela senhora tudo o que pode fazer um homem
para salvar a honra de uma menina sacrificada. Tudo, senhora, tudo eu farei.
—
Obrigada, senhor! obrigada!
Disse-lhe
mil coisas para acalmar a sua agitação, e pedindo-lhe que me esperasse,
prometendo-lhe voltar logo com o seu amante, nos separamos.
Fui
rapidamente ao quartel para saber onde morava o capitão Jorge; cheguei à sua
casa em frente da praia Formosa; bati à porta, e ninguém me respondia. A
desesperação já se infiltrava em minha alma..Continuei a bater, até que um
soldado me abriu a porta, e sem me deixar entrar, disse-me com mau humor: — Meu
Capitão não pode falar, está incomodado.
—
Diga-lhe que é um amigo, que vem por negócio dele mui importante.
—
Tenho ordem para não deixar entrar pessoa alguma, nem mesmo o Coronel, se
viesse procurá-lo.
—
Eu sou o médico; sei que ele está doente.
—
Eu não fui a médico algum.
—
Não importa; sou seu amigo.
O
soldado queria fechar a porta mal aberta, e eu entre a porta e o portal
procurava impedir; nem ela se fecharia sem que me esmagasse. Tirei então da
algibeira a minha carteira, e escrevi este bilhete de provocação, para obrigar
o Capitão a receber-me:
—
Capitão, ou vós estais enganado, ou sois um pérfido; seduzistes uma inocente, e
a deixais na desesperação. Por vossa honra, se a tendes, deixai-me entrar, e
nós conversaremos.
O
soldado levou o bilhete, fechando a porta, e em um minuto a porta de novo se
abriu, e um homem pálido como o mármore do sepulcro, com a cólera nos olhos, um
sorriso sardônico nos lábios, todo trêmulo, e uma espada na mão, estava diante
de mim. Recuei receoso que me fizesse algum insulto.
—
Vem sem espada! disse-me ele com voz rouca, que lhe saía do peito arquejante.
—
Sim; minha profissão é conservar a vida, e não dar a morte.
—
O que quer de mim? Quem lhe deu o direito de insultar-me?
—
O furor vos cega, senhor Capitão! Importante negócio aqui me conduz. O
interesse é mais vosso que meu.
—
Que se perca! Já não pertenço a este mundo que detesto. Podeis retirar-vos.
—
Não entendestes o meu bilhete? Não vos lembrais que ontem devíeis esperar por
uma menina?
—
E quem vos disse? Como o sabeis?
—
Se me quiserdes ouvir, e ser franco, dir-vos-ei tudo.
—
Ah! sois o confidente da pérfida! Ela tudo vos contou? e assim se diverte com o
meu amor! Ah! quem se pode fiar em mulheres!
—
Fazeis grande injustiça à vossa amante.
—
Injustiça! Injustiça! E quem sois vós para tomar a sua defesa?
—
Uma testemunha das suas desgraças.
—
Desgraças! Ela? como assim?
—
Permita que eu suba; e tranquilos falaremos.
Subimos
ambos: pediu-me que me assentasse, e pondo a espada sobre a mesa, deixou-se
cair sobre uma cadeira.
—
Senhor, disse-me ele, desculpe a minha perturbação. Há três dias que não sei o
que é descanso; há duas noites que não sei o que é sono.
—
Tudo creio, senhor Capitão; e o estado em que o encontro perturba todas as
minhas ideias. Falemos do objeto que me obriga a procurá-lo. Existe uma infeliz
neste mundo, que só tem por si os meus cuidados, e que talvez não existisse
hoje se a Providência a não socorresse com a minha presença.
—
Amância! Amância está doente? Será essa a causa por que ela... Ah, senhor, sois
médico? Dizei-me, dizei-me.
—
Sim, eu a salvei.
Como
um louco precipitou-se sobre mim, beijando-me mil vezes a mão, e regando-a com
as suas lágrimas.
—
Quanto, quanto vos sou obrigado, dizia ele. Pobre Amância! E eu que tão
injustamente a acusava. Queriam casá-la à força: eis por que ela adoeceu, sem
dúvida de paixão.
—
De paixão, sem dúvida, porém por vossa causa,
—
Sim, por minha causa! Como ela me ama! E ria-se e chorava a um tempo como uma
criança, ou como um delirante.
—
Instada por vós, deixou ela a casa paterna...
—
Quê! Amância fugiu?
E
ficou pálido, com os olhos tão abertos e fixos sobre mim, que pareciam
devorar-me.
—
Sim, fugiu por vossa causa.
—
Fugiu! exclamou ele tão cheio de terror como se visse uma serpente... Fugiu! E
não por mim! e não comigo! E tremendo como uma frágil vergôntea caiu sobre o
chão desmaiado.
Prestei-lhe
todos os socorros da ciência, e esperei que tornasse a si. Entretanto já eu
acreditava que ele tivesse perdido a razão; que por isso não tivesse ido ao
prazo dado, e que agora me não compreendesse. Fundada era a minha conjetura:
tantas vigílias, tantos sustos, a passagem rápida da desesperação à alegria, o
que bem se depreendia das suas duas últimas cartas, uma paixão violenta, tudo
podia ter-lhe perturbado o juízo. A maneira por que me recebeu, e tudo o que
entre nós se passava denotava um certo grau de alienação mental.
Já
ele abria os olhos, sem contudo dar fé de mim, e pronunciava algumas palavras
soltas sem sentido, quando na escada senti passos, de quem desvairadamente
subia.
—
Amância! minha filha! Aqui está teu pai!
Assim
bradava, entrando, um homem de cabelos brancos, com a desesperação e a fadiga
impressas no rosto e em todos os seus movimentos.
Mal
chegou à sala, volvendo os olhos para todos os lados, perguntou:
—
Onde está ela? onde está minha filha? quero vê-la.
—
Senhor, disse-lhe eu, nesta casa não há mulher alguma.
—
Ela foi roubada, e há de aqui estar por força. Esta é a casa do seu sedutor, do
infame que ma roubou.
—
Nesta casa apenas mora este homem, que se acha gravemente enfermo, e não podia
decerto ter roubado vossa filha. O estado em que ele se acha prova assaz o que
digo.
—
Oh desesperação!... E quem é esse homem?
—
Não o conhece? É o Capitão Jorge.
—
Jorge? gritou o velho fitando nele os olhos e reconhecendo-o: — Jorge! Foi
ele... És tu, pérfido, que roubaste minha filha. Dá-me minha filha... Onde está
ela?
E
dizendo estas palavras o investiu; e foi-me necessário colocar-me entre ele e Jorge,
que sentado em uma cadeira imóvel parecia nada ouvir, nada ver.
O
velho banhado em lágrimas, caiu a meus pés dizendo:
—
Ah senhor, se sabeis onde ela está, não mo oculteis... Sois meu amigo, sois um
homem de bem; tende compaixão de uma velho, de um pobre pai! Minha Amância!...
Minha filha!... Amância! Amância!
—
Amância!... bradou Jorge, erguendo-se da cadeira como um possesso, e
colocando-se no meio da sala com uma atitude tão trágica, que se me arrepiaram
os cabelos.
—
É aqui que tu a procuras, bárbaro pai? Velho avarento, que por ouro venderias a
honra, a filha e teu Deus. Não, coração de cofre, que só para o ouro se abre,
não é aqui que tu deves procurar tua filha; ela aprendeu contigo; e o Capitão
Jorge não possui riquezas para seduzi-la.
O
velho ficou como ferido por um raio; e eu estupefato. Jorge em três passos
ganhou o leito, e mergulhou a cabeça nos travesseiros.
Um
momento de silêncio sucedeu a esta trágica cena. Eu possuía o segredo, e não
ousava revelá-lo antes de tempo. A honra da infeliz Amância me era tão cara,
que eu temia qualquer indiscrição que a pusesse em dúvida.
—
Senhor, disse eu ao velho, o Capitão sofre como vós pela fuga de vossa filha, e
eu temo pela sua vida. Talvez que ela se refugiasse em casa de alguma parente
ou amiga, para não ser constrangida a dar a mão a um homem que lhe não merece o
coração. Acalmai-vos; não desacrediteis a vossa filha, publicando a sua fuga.
Ide procurá-la com toda a prudência que requer este acontecimento.
—
Eu vos agradeço, senhor, tão salutar conselho. Não me ocorreu no meu furor, que
pudesse Amância ter ido para a casa de alguma parente. Deve ser como dizeis. Eu
vou. Obrigado, mil vezes obrigado. Mas antes de deixar-vos... pedi ao vosso
amigo que me desculpe. Ele torna parte na minha desgraça; e contudo não é
inteiramente inocente. Talvez por ele Amância me desobedecesse.
—
Se é como dizeis, respondi-lhe já caminhando para a porta, há de vossa filha
participar ao Capitão, e nesse caso encarrego-me de vos informar de tudo, a fim
de tranquilizar o vosso espírito.
Agradeceu-me
muito cordialmente, e retirou-se, deixando-me entregue a novo combate.
Em
pé, no meio da sala, esperava eu que o Capitão, erguendo a cabeça do leito em
que a tinha mergulhada, me dirigisse a palavra com mais algum discernimento,
devendo ter ouvido o que eu acabava de dizer ao velho. Depois de um largo
espaço de tempo, dirigiu-se com efeito a mim, a passos lentos. A palidez da
morte lhe desfigurava o semblante; com a cabeça baixa, os cabelos em desordem,
os braços cruzados sobre o peito, disse-me com voz abatida:
—
Pode retirar-se; necessito estar só. Com todo o vagar tomei o meu chapéu, como
quem pouca vontade tinha de obedecer àquela ordem. Endireitei os lenços nas
algibeiras da minha casaca; tomei uma pitada compus-me todo, e chegando-me a
ele como para despedir-me, lhe disse com muita gravidade:
—
Sinto ter merecido tão frio acolhimento, quando talvez a vossa salvação
dependesse de uma franca confidência. Eu me retiro, senhor. Capitão, mas
lembrai-vos que sois vós que ordenais, sem ouvir-me, como o pede o vosso
interesse.
Acentuei
estas últimas palavras. Disse-lhe adeus, e queria sair, quando ele rompendo o
silêncio me perguntou:
—
Não me disse o senhor que é médico? — Sim, disse.
—
E que tinha tratado de... dela? — É verdade. — Que está enferma?
—
Decerto, e bastante.
—
Mas se ela não está em casa de seu pai, onde esteve o senhor com ela?
—
Eis o que eu desejava dizer-vos, e porque vim procurar-vos, com perda de meus
interesses. Mas eu vos incomodo; convém retirar-me.
Um
ligeiro sopro de esperança parecia deslizar-se em seus lábios.
—
Senhor, se sois médico, não adivinhais que perdi o juízo? Desculpai-me.
—
Se vos não desculpasse, já aqui não estaria. Porém os meus doentes me chamam...
—
Esperai; eu também estou doente, e necessito do vosso socorro.
—
Senhor Capitão, falemos claro; o acaso me fez sabedor do que entre vós e D.
Amância se há passado. Felizmente pude impedir as funestas consequências da
desventurada paixão dessa senhora; e para servi-la vim procurar-vos, a fim de
receber um desengano, e restituir a seu pai uma menina que por causa vossa, e
para escapar à desonra, procurava a morte.
—
A morte? por minha causa?
Vivos
sinais de interesse começaram a animar a sua abatida fisionomia.
—
Sim, a morte, de cujas garras a subtraí ontem à noite.
—
Meu Deus! será possível! Explique-me tudo, caro doutor!
—
O que vos digo é bastante, para que possais compreender que de tudo estou
informado, e que me deveis franca confissão do que necessito saber, para revelar-vos
o resto.
—
Prometo dizer tudo.
—
Bem; vós destes à vossa amacia um prazo no Passeio Público. Por justa causa
faltou ela na primeira vez; mas à vista de uma carta vossa, bastante
desesperada, escreveu-vos, prometendo que compareceria naquela mesma noite, que
foi ontem. Dizei-me agora, por que tendo vós empregado tanta força para
obrigá-la a esse passo, faltastes ao prazo que destes?
—
Faltar?... Pois disso me acusa ela?
—
Sim.
—
Eu não faltei, nem podia faltar... Faltou ela. Desde as seis horas da tarde até
às oito impaciente a esperei. Com os olhos fixos no meu relógio via fugir a
minha esperança a cada minuto que marcava o ponteiro. Ao mais tardar devia ela
lá estar às sete horas e meia; e não apareceu... Ah, vós não sabeis com que
desesperação se espera por quem mais que a vida se deseja. E quando se espera
por uma amante, se algum dia amastes, sabeis o que isto quer dizer; quando se
espera por uma amante, que deve fugir da casa paterna, esquecer-se por um
momento de todos os preceitos bebidos desde a mais tenra infância, porque enfim
eu conheço que é preciso um momento de delírio; quantas, quantas atribulações e
dúvidas não combatem o coração do infeliz que espera! Julguei que era inútil
esperar mais tempo; ou antes sem refletir, arrebatadamente como as pancadas de
meu coração, saí daquele lugar, para me livrar de um pensamento horrível — que
ali achassem meu cadáver no dia seguinte. — Quantas vezes arrepiei meus passos;
quantas vezes saí, até que afinal, levado por um impulso estranho, fui até a
sua porta; investi pela escada: subi; desci; na minha cabeça só havia projetos
de desesperação e de morte. Nada fiz, porque as forças me faltaram; voltei ao
jardim, até que desenganado, quase morto, depois de andar toda a noite sem
tino, pude chegar a casa, donde sairei pela última vez. — A impaciência é uma
má conselheira. Capitão, vós sereis meu amigo, como eu já sou vosso. Se
tivésseis esperado mais uma hora, seríeis agora o mais feliz dos homens.
—
Que dizeis? que dizeis? Ela foi? Julga-me traidor? E eu que sofro angústias
mais cruéis que as da morte! Eu que impiamente a tenho acusado. Oh meu Deus!
que fiz eu?... Pobre Amância!
Narrei-lhe
então o ocorrido na passada noite, e Jorge parecia não contentar-se de ouvir as
minhas palavras, ele as bebia, interrompendo-as com expressões da mais veemente
dor, arrancando os cabelos, e derramando lágrimas de arrependimento. Pediu-me
que o levasse à minha casa para lançar-se aos pés de Amância. Acedi ao seu
desejo, com a condição que na escada esperasse, para que a sua presença
imprevista não perturbasse o espírito da moça. Assim como dois íntimos amigos,
caminhamos para a cidade.
Chegamos
à casa que encerrava o tesouro do meu novo amigo; abri a porta; o capitão ficou
na escada esperando o sinal entre nós concertado, e eu mostrando rosto alegre
entrei gritando: Parabéns! parabéns!
Amância
estava assentada, olhando para o retrato do seu amante, e apenas me ouviu,
dando um ah! de espanto, levantou-se e perguntou-me.
—
Então, achou-o? onde está ele? Não veio? Estará doente?
—
As boas novas, disse-lhe eu, não se dão de repente. É preciso saboreá-las pouco
a pouco, como um delicioso manjar.
—
Então... ele não é traidor?... Ainda me ama?
—
Cada vez mais... Não sabe em que estado de desesperação o encontrei. E neste
teor lhe fui contando tudo, e o desencontro por causa das horas dadas para a
reunião.
—
Ele foi!... Coitado! Como não ficaria julgando-me falsa! Tomara vê-lo, para lhe
dizer a causa que me impediu de ir mais cedo. Quando virá ele?... Por que não
veio com o senhor?... Diga-me, quando virá? — Neste momento.
Bati
com o pé, e Jorge apareceu, lançando-se de joelhos aos pés de Amância. Um grito
de prazer e de espanto da parte de uma, e — Amância! — pronunciado com
transporte pelo outro, foram as únicas palavras que soaram naquele primeiro
momento de amor.
Contar
todos os abraços que se deram; todas as palavras meigas que soltaram, todas as
desculpas, todos os transportes, todas as exclamações de que tão pródigos são
os amantes, seria um nunca acabar. Coloque-se cada qual na mesma posição, e
imagine se puder o que ali se passou, e do que eu fui muda testemunha,
participando também de alguns abraços, e regozijando-me de ter concorrido para
a felicidade dessas duas criaturas. Feliz quem ama, e é amado; sobre a terra
não vejo maior bem.
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode
experimentá-lo.
Quem
fez estes versos sabia bem o que é amor.
Para
terminar esta cena direi somente que Amância desculpou-se por ter ido tão tarde
ao lugar aprazado, e consentiu que o seu amante lhe beijasse mil vezes a
destra, em sinal de perdão, dizia ele, por não ter esperado até de manhã.
Uma
boa hora tinha decorrido; e repetiam sempre as mesmas coisas, parecendo
esquecidos do futuro, como se aquele estado fosse a sua única bem-aventurança,
e que de mais nada devessem cuidar, nem mesmo de comer.
Em
um intervalo de silêncio, em que eles se contemplavam, disse-lhes eu:
—
Então, que determinação tomam? Ficam assim eternamente? Qual o vosso intento, senhor
Capitão?
—
Fugir! disse ele prontamente: Não é assim, Amância?
—
Eu sei?... O que nos aconselha o senhor doutor?
—
Já que o destino quer que eu aqui represente o papel de protetor e conselheiro,
dir-lhes-ei que o melhor é ir solicitar o perdão do senhor seu pai.
—
Meu pai! Oh como não estará ele? Pobre velho! E assim dizendo as lágrimas lhe
saltaram dos olhos.
—
Senhor doutor, disse Jorge, ele não consentirá na nossa união; eu sou pobre.
—
O amor de um pai, respondi-lhe, posto que menos furioso, é mais compassivo,
mais duradouro que o de um amante. Se consentem que eu sirva de medianeiro,
irei procurá-lo, e dispô-lo em favor de ambos.
—
Sim, sim! exclamou Amância.
—
Tempo perdido — disse o Capitão.
—
Senhor Jorge, vós não conheceis o coração de um pai. Tempo perdido é este que
inutilmente gastamos sem nada resolver. Dai-me a vossa palavra de militar
honrado, de respeitar como homem esta senhora, e fazei-lhe companhia até que eu
volte. E vós, senhora, rogai a Deus para que vosso pai me atenda. Abracei-os, e
saí.
Um
escravo conduziu-me à alcova, onde estava deitado o desesperado velho, que, ao
ver-me, levantou a cabeça, e antes que eu tivesse tempo de o saudar,
perguntou-me:
—
Que notícias me dá de minha filha? Ah senhor doutor, eu a procurei em todas as
casas dos parentes; nada, nada.
—
Não se aflija; o céu conserva vossa filha sempre pura para ser a consolação da
sua velhice. Ela chora por vós, e se lastima pela vossa teima em querê-la casar
com um homem que não pode fazer a sua felicidade.
—
Então, sabe o doutor onde ela está? onde? onde está? quero ir vê-la... essa
filha ingrata que será a causa de minha morte.
—
Vós me pareceis bem agitado; tranquilizai-vos, e conversemos.
—
Ah senhor doutor, se os filhos soubessem as aflições que causam ao pobre homem que
tem a desgraça de ser pai!... Parece que o céu nos pune por havermos dado o ser
a outras criaturas, rebelando contra nós os nossos próprios filhos.
—
Que blasfêmia! Foi o senhor porventura a causa da desgraça de seus pais?
—
Sempre os respeitei.
—
Se foi respeitoso filho, como declama contra todos os filhos? A natureza de pai
destrói porventura a de ter sido filho?
—
Os filhos de hoje não são como os do outro tempo: havia então mais respeito,
mais amor, mais religião. Hoje tudo está corrompido; nem a Deus se respeita.
—
Engano! Acusai antes a vossa... pertinácia em querer forçar a natureza. Se seu
pai o tivesse obrigado algum dia a obrar contra o seu coração, o senhor o
chamaria bárbaro.
—
Deixemos essa conversação: falemos antes de minha filha. Sois ainda moço,
defendeis o vosso tempo, que já não é o meu. Onde está Amância? Posso vê-la?
—
Hoje mesmo a verá; mas peco-lhe um favor antes de vê-la.
—
Tudo o quiser; diga.
—
Que a deixe escolher um marido a seu gosto. Um marido é mais que um pai, e a escolha
deve pertencer a quem a ele se há de se sujeitar. Sei que o senhor é viúvo, e
que ainda hoje lastima a perda da companheira de seus anos mais felizes. Se a
força se tivesse a ela ligado, nem a sua existência teria sido como foi, nem
por ela chorara.
O
pobre velho exalou um profundo suspiro, e seus olhos se umedeceram.
—
Senhor, continuei, por amor dela, por amor de vossa falecida esposa, pelo
sossego de sua alma, que agora talvez lamente o vosso procedimento; perdoai a
vossa filha.
—
Eu lhe perdoo, sim, eu lhe perdoo.
—
Deixai-lhe a liberdade de escolher um esposo.
—
E minha palavra dada? Todo o mundo sabe que eu a tinha prometido ao Sr.
Norberto; nem ele quererá ceder.
—
Tem porventura algum direito sobre vossa filha? Prometeu-lhe ela coisa alguma!
—
O que hão de dizer?
—
Se a constrangerdes, dirão que sois um pai tirano, que fizestes a desgraça de
vossa filha por amor do dinheiro. Dirão mais que fugiu por vossa causa, e que
fez muito bem, porque todo o mundo tem o direito de defender a sua liberdade.
Se consentirdes no que vos peço, será vossa filha feliz, e todos aplaudirão a
vossa bondade. Sois rico; não precisais que o vosso genro traga mais dinheiro;
basta que ele seja pessoa honesta; vossos filhos vos abençoarão, viverão
convosco, e à vista da vossa felicidade ninguém vos acusará. — Se o Sr.
Norberto cedesse...
—
E o que pode ele fazer? que remédio tem ele senão ceder!
—
Senhor doutor, creio que ele aí chega... estes passos são dele.
—
Não falemos mais nisso.
Entrou
um homem de cinquenta anos pouco mais ou menos, e sem mais cumprimentos
perguntou com maus modos:
—
Então o que é isto, Sr. Fábio? Que novidade é esta? Será certo o que ouvi dizer?
Então a Sra. D. Amância fugiu?... Então, que diz?... não responde! será verdade?
— Senhor
Norberto, disse-lhe Fábio, poupe-me essa lembrança cruel; recorde-se que sou
pai.
—
Então pelo que vejo é verdade! Não me enganaram! E esta! quem tal diria! Com
efeito deu o senhor muito boa educação à sua prezada filha! Olhe que pode
limpar as mãos à parede.
O
velho fez um movimento de indignação, e não ousou soltar uma só palavra.
—
Senhor! disse eu ao importuno, o estado em que se acha o Sr. Fábio não é muito
próprio para ouvir tais coisas.
—
Sim, certamente, continuou ele, oh lá! A menina fez muito bem... pois não!
Ainda em cima devo ser eu o consolador do Sr. Fábio.
—
Ah Sr. Norberto, disse o velho, se igual desgraça lhe tivesse acontecido, outra
seria a sua linguagem.
—
Que outra linguagem!... Pois isto tem pés nem cabeça? Se não fossem as suas condescendências,
já eu estaria casado. Queria ver se o passarinho me havia de fugir da gaiola.
Pois não!
—
Se a guarda de um pai não foi bastante, menos seria a de um marido, disse-lhe
eu.
—
Então outro galo cantaria, respondeu ele. Mas vamos a saber quem foi o sedutor?
Quem é esse menino bonito? Quero ter o prazer de ver esta bengala cantar-lhe
nas costas.
—
Ora, disse-lhe eu, se com efeito a Sra. Amância saiu da casa paterna só para
não dar-vos a mão de esposa; se esse a quem chamais seu sedutor, for um
militar, moço e bravo, tereis ânimo de disputar-lhe a sua conquista?
—
Tenho muito dinheiro para gastar. Hei de metê-lo na cadeia; hei de mandá-lo
para a índia; hei de...
—
Se fôsseis senhor absoluto, não duvido; mas neste tempo já não há índias para
os amantes.
—
Qual tempos nem tempos! Todo o tempo é o mesmo quando há dinheiro.
E
dizendo isto o arrogante media a sala a largos passos, brandindo o bastão de
cana da índia, e bufando como um touro. Parando depois defronte do velho:
—
Então, Sr. Fábio, em que fica isto?
O
pai de Amância, a quem todo este aranzel não menos que a mim tinha desgostado,
respondeu-lhe:
—
Amância ainda é minha filha; e se o Sr. Norberto quer renunciar a sua mão,
estimarei muito.
—
O Sr. Fábio diz-me isso?... Ainda esta me faltava ver. Será este senhorzinho o
mimoso? E com ar de desprezo mediu-me de alto a baixo. Não pude deixar de
dizer-lhe: Se o seu dinheiro lhe não tem servido para adquirir melhor educação,
e tratar com mais reverência os desconhecidos, eu me encarrego de educá-lo de
graça.
—
Se não estivesse aqui, eu lhe diria, seu...
—
Senhor Norberto! exclamou o pai de Amância, respeite a minha casa.
—
Tão bom é você como sua filha, disse o insolente. Eu os ensinarei;... passem
muito bem...
E
saiu como um endemoniado, mais furioso talvez pela perda do dote, que da
esposa.
Depois
de algum silêncio em que ficamos, olhando um para o outro, disse eu ao Sr.
Fábio:
— É este o bruto escolhido para esposo de vossa filha, tão moça, tão terna e tão bem educada?
— Ah senhor doutor, respondeu-me ele, estou coberto de vergonha... Minha filha está desculpada. Estou arrependido de não tê-la dado a esse pobre Capitão Jorge, que tanto ma pediu, e que eu estimo... Como estará ele! Pobre Capitão!
Cheio de prazer lhe disse: Vinde ver vossa filha, que vos espera para receber vossa bênção.
O efeito que não produziu toda a minha eloquência, produziram as insolências do Sr. Norberto. É assim que o aspecto do vício nos faz amar a virtude. Que pai poderia dar sua filha a um labrego com este, sem outro mérito mais que possuir alguma riqueza, talvez bem mal adquirida?
Fábio
amava o dinheiro, e todos o amam, mais ou menos; porque sem dinheiro não se
vive na sociedade civilizada; mas tinha um coração de pai; desejava ver sua
filha feliz, e nesse momento o céu o esclareceu. Deu-me mil agradecimentos,
pela parte que neste negócio havia eu tomado, metemo-nos em um carro, e
partimos.
Parou
o carro à porta de minha casa. Amância e Jorge chegaram à janela, e por um
instinto de vergonha ambos se ocultaram.
—
Minha filha, vem aos braços de teu pai!
E
Amância caiu de joelhos diante dele, beijando-lhe as mãos, e o velho desfez-se
em lágrimas.
—
Perdão, meu pai, perdão; dizia ela chorando.
—
Perdoada estás há muito tempo; o céu te libertou aconselhando-te esta fuga, sem
a qual eu não teria ocasião de conhecer a brutalidade daquele malcriado.
Pede-me o que quiseres; em sinal do meu amor tudo te darei.
—
Senhor doutor, peça por mim, disse-me Amância. — Jorge! chamei eu; e o Capitão todo
trêmulo apareceu: beijai a mão do vosso pai.
—
Sim, disse o velho, serás meu filho; minha casa será vossa, e o céu que
protegeu vosso constante amor proteja e abençoe a vossa união, e vos conserve
sempre virtuoso.
Assim
terminou o doutor a sua história, e uma das moças que atenta o escutara, lhe
perguntou:
—
E o tal Norberto, que fim levou?
—
Continuou a negociar e a ganhar dinheiro; e no ano passado embarcou para
Portugal, a fim de lá gastá-lo.
—
E os amantes casaram-se?
—
Por sinal fui eu um dos padrinhos. Vivem felizes. O Capitão reformou-se, e está
hoje rico, com uma fazenda de café. Já tem dois filhos. E com esta me vou, que
já a lua saiu. Adeus, até outro dia.
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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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