Abgar Renault - O Anjo Caído
"A
Outra Face da Lua"
(Editora José Olympio - 1983)
(Editora José Olympio - 1983)
Quantas
vezes já lemos os decretos que regem o fazer poesia e o quê o poeta pode ou não
pode poetar. Quantas vezes o adjetivo foi execrado, os possessivos foram
defenestrados, os plurais detonados, a própria pontuação, quantas excessivas
exclamações foram para o cadafalso sem direito a defesa.
Sim,
nós lemos e escrevemos porque herdamos de nascença uma língua das antigas, um
vastíssimo dicionário, uma gramática e tentamos o trabalhar honrado dentro
desse espectro.
Laboramos,
claro, suamos um pouco, sorrimos ao dormir com nossa penúltima obra prima, nos
envaidecemos com a lisonja, a palavra amiga de quem interpretou, embora de
maneira diversa, nossa modesta confabulação com as musas.
Decerto
isso tudo não é pouca coisa não. Mas aí vem a mais clássica das perguntas, que,
extraída das cavernas lúgubres da inteligência, aflora à luz numa entrevista
qualquer:
–
O que é poesia?
O
poeta treme. O poeta vacila. O poeta engole seco. E pensa em quantas e quantas
centenas de milhares de definições estão por aí vagando pelo inter espaço! Na
última vez que fiz essa pergunta ao Google veio o absurdo: Aproximadamente
6.480.000 resultados (0,12 segundos) e lá embaixo apareceu um
Goooooooooogle de intermináveis ós... E depois os próprios poetas se acorrentam
nas proposições ditas clássicas:
O poeta não deve se inspirar no próprio sofrimento.
O poeta deve refletir o sentimento do mundo.
O poeta tem uma atitude específica diante do mundo que não é a do
filósofo, nem a do cientista.
O poeta vive de descobertas e de espantos a cada momento.
O poeta não tem por objetivo explicar o mundo.
O poeta revela para as pessoas o seu espanto, o mistério e a beleza da
vida.
O poeta mostra o que a vida tem de incompreensível, de transcendente, de
inexplicável.
O poeta deve ter aquele grau de loucura bíblico, mas não necessariamente
estar num grau de loucura.
A poesia não se entrega a quem sabe defini-la.
O verdadeiro poeta não lê outros poetas: lê os pequenos anúncios dos
jornais.
O poeta não tem o ofício de narrar o que aconteceu e sim o que poderia
acontecer.
O poeta traduz o que é possível, segundo a verossimilhança e a
necessidade.
O poeta é mais fabulador que versificador, porque é poeta por imitação –
imita ações.
Quando, porém, o poder do imponderável visita sua vida, o poeta se vê despido do manto de superioridade e se torna o homem comum que é. A vida é composta de pequenas tragédias, ninguém a elas está imune. Não existe uma vacina contra a tragédia nem contra o inexplicável que permeia sua existência. Quando a tragédia ocorre naturalmente a vida desaba, o mundo desaba, a fé desaba, instala-se o caos cósmico – o poeta é um anjo caído.
Então,
se ele pretende desvelar o trágico por suas próprias palavras, todas as teorias
literárias e regras poéticas caem por terra. O poeta é agora um ser humano
primitivo que canta as mazelas ao som de rude viola. É uma lavadeira que à
beira do rio enfeita seu labor com versos que sua avó ensinou e que sua neta,
agora, devora com ouvidos atentos. É um cantador cego que acompanha apenas com
o martelar rítmico do pandeiro o canto rimado que vem da alma e só a ele
alcança.
Assim
ocorreu com o Mário de Andrade. A foice desta vez estava representada pela
angústia, as mazelas, o próprio viver que a idade trava. Pois foi do fundo
dessas questões freudianas que nasceu o Mário de Andrade sentimental da Lira
Paulistana, mas, sobretudo, o poeta ser humano de A
Meditação sobre o Tietê:
Quando eu morrer quero
ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na
Rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio
afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o
ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia
Sereia.
O nariz guardem nos
rosais
A língua no Alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
A língua no Alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão o que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
Assistirão o que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
(Lira Paulistana)
****
Água do meu Tietê,
Onde me queres levar?
– Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
Onde me queres levar?
– Rio que entras pela terra
E que me afastas do mar...
Eu recuso a paciência,
o boi morreu, eu recuso a esperança.
Eu me acho tão cansado em meu furor.
As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista
Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas
Para o peito dos sofrimentos dos homens.
...e tudo é noite. Sob o arco admirável
Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca
Uma lágrima apenas, uma lágrima,
Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.
Eu me acho tão cansado em meu furor.
As águas apenas murmuram hostis, água vil mas turrona paulista
Que sobe e se espraia, levando as auroras represadas
Para o peito dos sofrimentos dos homens.
...e tudo é noite. Sob o arco admirável
Da Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca
Uma lágrima apenas, uma lágrima,
Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.
(A meditação sobre o Tietê)
Assim
foi também com o poeta Ferreira Gullar, quando a febre do exílio atacou-lhe as
vísceras, quando a perseguição implacável tirou-lhe o sossego, quando o cerco
irrefreável da violência trouxe-lhe o medo. Quase o mesmo sentimento que
décadas atrás havia ferido de morte o escritor Stefan Zweig: o exílio, a falta
da pátria, a ausência de uma ilha – uma ilha que fosse! – atirou o sentir do
poeta nas páginas de Na vertigem do dia e,
principalmente, do Poema Sujo:
Amigos morrem,
as ruas morrem,
as casas morrem.
Os homens se amparam em retratos.
Ou no coração dos outros homens.
(Na vertigem do dia)
***
Na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floresço:
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
(...)
Acordo na zona. O dia ladra, navega
enfunado e azul (...)
(Poema Sujo)
Não
dizem que toda regra tem exceção? Pois a exceção para este noturno chama-se
Carlos Drummond de Andrade. Se houve um ataque à percepção onírica do ser
poeta, isso ocorreu com a frialdade corpórea e sentimental que sempre
acompanhou o poeta de Itabira. O poeta preparou-se para a morte com a frieza de
um papa-defuntos. Drummond viveu uma existência literária premeditada e desde
cedo tirou o corpo fora das ranhuras da comoção. Mas o fato ocorreu e foi na
própria carne, na própria existência, que Carlos Drummond de Andrade escreveu o
seu último poema. Mas o que escreveu o poeta ante a trágica desaparição de
sua filha queridíssima Maria Julieta? Nada, nenhum poema! Simplesmente morreu!
É provável que haja repetido o monólogo que teve consigo mesmo por noventa
e tantos anos de vida...
Não serei o poeta de um mundo
caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
(Mãos dadas)
Com
Abgar Renault a tragédia o visitou em forma de notícia. Veio de longe, mas atacou
o lado mais íntimo do poeta. Como uma enxurrada incontrolável arrasou a
imaginada fortaleza, mas só imaginada porque se estraçalhou rápida e
fulminante. Se a covardia diante do fato abateu o ser humano tribal, o mesmo
não aconteceu ao poeta. O homem ruiu, a vida se transformou em cacos de vidro,
mas o poeta não refugou a verdade nem se escondeu da violência, da fatalidade.
Nem censurou a voz da alma, quando ela derramou lágrimas em forma de poesia:
verso de poeta gente, lavra de poeta homem, oração de poeta pai.
Isso
se deu no livro A outra face da lua, quando, escondidos nas
últimas páginas, aglomerou cinco poemas aos quais deu o título A
lápide sob a lua, onde se desvenda o poeta o mais humano possível.
NO ALTO DA MONTANHA
Já não sinto saudade de mais nada,
a não ser do começo da escalada,
quando o azul era azul de azul sem fim
e Deus criava de novo o mundo em mim.
a não ser do começo da escalada,
quando o azul era azul de azul sem fim
e Deus criava de novo o mundo em mim.
(A outra face da lua)
A LÁPIDE SOB A
LUA
TOMBO,
SENHOR, SUBMISSO, MAS INCONFORMADO NA DESESPERANÇA E NÃO TE RECONHEÇO NA
CRUEL DESNECESSIDADE DA TUA LANÇA.
FILHO MORTO
Vejo
o corpo morto da tua mocidade
dormindo sem sono a sua construção de ossos e músculos.
Estás ferido, e dóis, deves doer, e nem te queixas e não choras,
e nunca dirás o que sentiste
quando sobre a tua frágil cabeça de menino e deus
a vida desabou.
dormindo sem sono a sua construção de ossos e músculos.
Estás ferido, e dóis, deves doer, e nem te queixas e não choras,
e nunca dirás o que sentiste
quando sobre a tua frágil cabeça de menino e deus
a vida desabou.
Estás
imóvel, frio e sozinho, com os teus olhos sem olhar,
a tua palavra muda, os teus dentes sem rico;
mas nós conversamos, comemos, dormimos,
o nosso corpo exige abrigo contra o frio,
e usamos pesadas lãs.
a tua palavra muda, os teus dentes sem rico;
mas nós conversamos, comemos, dormimos,
o nosso corpo exige abrigo contra o frio,
e usamos pesadas lãs.
Olho
o azul infenso, o ouro falso do sol,
ouço perto os pássaros da vida a encher o claro céu de cores,
e penso na roxidão das tuas unhas
e na tristeza das tuas roupas derradeiras.
Estou aqui o mesmo entre imagens, luzes, relógios, cravos, pessoas,
mas não és mais tu; és apenas o teu corpo indiferente,
a tua boca que não ri, os teus pés que não caminham,
as tuas mãos que não oferecem,
e insone para sempre dormirás.
Fulgura o dia sem nuvens. Há risos na amplidão,
as continuas imóvel, sozinho e cheio de frio.
ouço perto os pássaros da vida a encher o claro céu de cores,
e penso na roxidão das tuas unhas
e na tristeza das tuas roupas derradeiras.
Estou aqui o mesmo entre imagens, luzes, relógios, cravos, pessoas,
mas não és mais tu; és apenas o teu corpo indiferente,
a tua boca que não ri, os teus pés que não caminham,
as tuas mãos que não oferecem,
e insone para sempre dormirás.
Fulgura o dia sem nuvens. Há risos na amplidão,
as continuas imóvel, sozinho e cheio de frio.
O
que eu choro na tua ausência
não é a rosa do teu corpo jovem, abatido na haste,
nem a tua alegria, que não mais verei:
doem-me os teus frutos, que, ao caíres, esmagaste sob ti;
amarga-me o quinhão de tempo e flor
arrebatado às tuas mãos de vida.
não é a rosa do teu corpo jovem, abatido na haste,
nem a tua alegria, que não mais verei:
doem-me os teus frutos, que, ao caíres, esmagaste sob ti;
amarga-me o quinhão de tempo e flor
arrebatado às tuas mãos de vida.
Ai!
o colete que pela primeira, única vez usaste!
Ai! o teu terno novo e triste!
Como ficaram amargos os meus dedos entre os teus cabelos ainda vivos
– pálido consolo...
Ai! o teu terno novo e triste!
Como ficaram amargos os meus dedos entre os teus cabelos ainda vivos
– pálido consolo...
Lembro
a verruga da tua nuca,
as unhas rentes nas mãos generosas,
o largo riso dos teus dentes brancos,
os coloridos papagaios de papel que inventei para o sem-limite do teu céu;
lembro-me outrora e esqueço-te morto,
mas abro a janela do meu quarto,
entra por ela a vida, e em seu clarão me firo;
tão inútil e desnecessário o teu destroço!
e vejo o teu dia breve e tempestuoso,
teu excessivo, teu imperfeito sol,
a rua fulgurante e breve em que esvaíste
tão antes da tarde o teu ardente girassol,
e contemplo – já sem ti a minha vida –
este coração – esta rua chovida e sem pássaros.
as unhas rentes nas mãos generosas,
o largo riso dos teus dentes brancos,
os coloridos papagaios de papel que inventei para o sem-limite do teu céu;
lembro-me outrora e esqueço-te morto,
mas abro a janela do meu quarto,
entra por ela a vida, e em seu clarão me firo;
tão inútil e desnecessário o teu destroço!
e vejo o teu dia breve e tempestuoso,
teu excessivo, teu imperfeito sol,
a rua fulgurante e breve em que esvaíste
tão antes da tarde o teu ardente girassol,
e contemplo – já sem ti a minha vida –
este coração – esta rua chovida e sem pássaros.
Vou
calar-me e fingir que eu sou eu,
mas, se virem um homem chorando sem pejo,
será ele, o pai do moço, do menino, do meninozinho,
que o fortuito matou na reta da estrada, à toa...
mas, se virem um homem chorando sem pejo,
será ele, o pai do moço, do menino, do meninozinho,
que o fortuito matou na reta da estrada, à toa...
Triste
vento soletra a solidão,
e triste vento lê teu surdo nome,
e dentro da noite de tristes árvores insones
finjo que não ouço e adormeço,
ó triste viajante horizontal,
como se não soubesse o triste número
da tua triste casa e quanto ele dói
na brancura silenciosa da última cidade.
e triste vento lê teu surdo nome,
e dentro da noite de tristes árvores insones
finjo que não ouço e adormeço,
ó triste viajante horizontal,
como se não soubesse o triste número
da tua triste casa e quanto ele dói
na brancura silenciosa da última cidade.
ESTRAMBOTE DO MORTO VIVO
Ah!
de todas as vezes que morri
sempre restou a máscara e uma pétala,
e fingi o meu som de vida viva,
e pude arder sobre raízes frias.
sempre restou a máscara e uma pétala,
e fingi o meu som de vida viva,
e pude arder sobre raízes frias.
Agora,
morro derradeiramente:
não ficou dos pretextos de ficar
nem vago fio ou sombra ou voz ou letra,
e escuto sobre o túnel, sob a treva,
não ficou dos pretextos de ficar
nem vago fio ou sombra ou voz ou letra,
e escuto sobre o túnel, sob a treva,
cair
o solo e o seu silêncio turvo:
não tenho olhar, nem fronte, nem perfil,
e aço de espelho algum me refletira.
não tenho olhar, nem fronte, nem perfil,
e aço de espelho algum me refletira.
Quem
destruiu a luz e no seu vácuo,
fora do céu, deixou, por só lembrança,
minuto mutilado antes do voo,
fora do céu, deixou, por só lembrança,
minuto mutilado antes do voo,
viúvo
gesto de gelo em mãos de goivo?
ELEGIA
Cada
momento do meu coração
bebe a memória do teu morto nome,
e este meu resto, em fuga, se consome
entre musgos de cinza e escuridão;
bebe a memória do teu morto nome,
e este meu resto, em fuga, se consome
entre musgos de cinza e escuridão;
nem
a memória só do morto nome,
mas o calado rosto, a inútil Mao,
a voz, o peito, a prematura fome
de vida no menino (e homem) de então.
mas o calado rosto, a inútil Mao,
a voz, o peito, a prematura fome
de vida no menino (e homem) de então.
Meu
lembrar-te, buscando sem onde,
caminha, a amargamente sobe a rua
e o seu silêncio pálido de cal.
caminha, a amargamente sobe a rua
e o seu silêncio pálido de cal.
Sobe,
e deixa, na pedra que te esconde,
entre apagada flor e antiga lua,
póstumo olhar sem tempo, de água e sal.
CHÃO MORTO
entre apagada flor e antiga lua,
póstumo olhar sem tempo, de água e sal.
CHÃO MORTO
Se
essa orfandade, essa privação de tudo, esse escuro exercício do nada
ao menos rebentassem num verso nu, esguio, sujo de terra,
– raiz arrancada em convulso estremecimento,
Não da gelada lucidez do pensamento,
Mas da viva carne da aflição, –
ainda houvera similitude de consolação,
e a cegueira fora-me outro modo de enxergar.
ao menos rebentassem num verso nu, esguio, sujo de terra,
– raiz arrancada em convulso estremecimento,
Não da gelada lucidez do pensamento,
Mas da viva carne da aflição, –
ainda houvera similitude de consolação,
e a cegueira fora-me outro modo de enxergar.
Mas
não. A falta de luz na alma e no olhar,
a perda de tudo (de um tudo que não é meu), menos o
[náufrago vivo sempre e para sempre frio,
E tudo apenas isto, este acontecimento que estala os ossos.
Ou estas palavras: sal, areia, surda pedra, geladas lavas
em que não nasce fonte, avaro fruto, espinho amargo.
a perda de tudo (de um tudo que não é meu), menos o
[náufrago vivo sempre e para sempre frio,
E tudo apenas isto, este acontecimento que estala os ossos.
Ou estas palavras: sal, areia, surda pedra, geladas lavas
em que não nasce fonte, avaro fruto, espinho amargo.
O
escuro, o ralo sol, o sufocamento no vácuo triste,
a forma bem morta, a forma disforme no livro, na carta, no peito largo,
no assoalho, na rua, na lâmpada, na mesa.
Forma que não é forma, nem feiúra nem beleza,
água que não matará nenhuma sede, chão que nada enterra,
estacado pensamento, gesto cortado no braço que o fazia,
obrigatório sono dentro do leito perpétuo e frio.
a forma bem morta, a forma disforme no livro, na carta, no peito largo,
no assoalho, na rua, na lâmpada, na mesa.
Forma que não é forma, nem feiúra nem beleza,
água que não matará nenhuma sede, chão que nada enterra,
estacado pensamento, gesto cortado no braço que o fazia,
obrigatório sono dentro do leito perpétuo e frio.
SAUDADE
Por
tua casa pálida e noturna
hoje passei, terrestre, sem parar;
na límpida corola da manhã
aberto sol, que ria ao mar e ao céu,
cegou-me o peito, e a minha dor cansada
doeu-me como doeu e hora primeira
da tua ausência eterna – e nunca ausente.
Mais do que a sombra do teu vulto, vi
o claro outrora do teu riso largo
e a infância-às-vezes dos teus olhos bons,
e no silêncio da atmosfera lúcida
o longe ouvi da tua voz perdida;
outras manhãs desabrocharam no ar,
e os meus amargos olhos também o viram
a tua mão sem cor, num gesto imóvel,
que as fez murchar, sem sol e sem azul,
num jardim cujas flores eram sinos
lançando ao vento músicas de cinza;
e vi no triste mármore de fontes
o cristalino cântico das águas
petrificar-se num escuro gelo;
contemplei-te menino, homem e criança,
e de novo te vi, amargamente,
na manhã morta, de arroxeados sóis,
nem homem, nem menino, nem criança
dormindo, sem dormir, um sono morto
e rodeado de luzes e de vésperas;
teu íntimo calvário, a cruz precoce,
tão mais de ferro que teus ombros e ossos,
teu arco-íris de cravos e de goivos,
teu céu infante entre os teus dedos de homem,
tua fulguração profunda e rápida,
o ardente leque de culminações
imensamente aberto antes do tempo,
chama partida e vã, fogoso fruto
colhido quando ainda sonho verde...
hoje passei, terrestre, sem parar;
na límpida corola da manhã
aberto sol, que ria ao mar e ao céu,
cegou-me o peito, e a minha dor cansada
doeu-me como doeu e hora primeira
da tua ausência eterna – e nunca ausente.
Mais do que a sombra do teu vulto, vi
o claro outrora do teu riso largo
e a infância-às-vezes dos teus olhos bons,
e no silêncio da atmosfera lúcida
o longe ouvi da tua voz perdida;
outras manhãs desabrocharam no ar,
e os meus amargos olhos também o viram
a tua mão sem cor, num gesto imóvel,
que as fez murchar, sem sol e sem azul,
num jardim cujas flores eram sinos
lançando ao vento músicas de cinza;
e vi no triste mármore de fontes
o cristalino cântico das águas
petrificar-se num escuro gelo;
contemplei-te menino, homem e criança,
e de novo te vi, amargamente,
na manhã morta, de arroxeados sóis,
nem homem, nem menino, nem criança
dormindo, sem dormir, um sono morto
e rodeado de luzes e de vésperas;
teu íntimo calvário, a cruz precoce,
tão mais de ferro que teus ombros e ossos,
teu arco-íris de cravos e de goivos,
teu céu infante entre os teus dedos de homem,
tua fulguração profunda e rápida,
o ardente leque de culminações
imensamente aberto antes do tempo,
chama partida e vã, fogoso fruto
colhido quando ainda sonho verde...
Terrestre,
sem parar, hoje passei
por tua casa silenciosa e pálida.
por tua casa silenciosa e pálida.
(A lápide sob a
lua)
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