5/31/2019

A vida do homem (Conto), de Xavier Marques



A vida do homem
Deus criou o homem e disse-lhe:
— Vai, serás o senhor da terra e o animal superior. Grandes trabalhos e surpresas te esperam mas de tudo triunfarás, se fizeres a tua parte. A tua felicidade depende muito do teu querer. Viverás 30 anos.
O homem ouviu e calou-se.
Deus criou o burro e disse-lhe:
— Vai viver como escravo do homem, conduzi-lo e a todos os fardos que te puserem às costas. Serás bastante discreto e paciente para suportar, além da pesada carga, as privações que te forem impostas durante as viagens. Viverás 50 anos.
— Escravidão, cargas, privações e viver 50 anos...É muito, senhor, bastam-me 30.
Deus criou o cão e disse-lhe:
— Vai ser o companheiro do homem, de quem guardarás sempre alerta a porta, servindo-o com inteira obediência, ainda que não recebas mais do que um osso para matar a fome. Sofrerás açoites, mas, humilde e fiel, tens que lamber a mão que te castiga. Viverás 30 anos.
O cão pensou e refugou:
— Vigiar dia e noite, açoitado, padecer fome e viver trinta anos... não, Senhor, quero apenas dez.
Deus criou o macaco e disse-lhe:
— Vai, o teu ofício é alegrar o homem, saltando de galho em galho, ou atado a um cepo, procurarás, imitando-o o bom humor. Viverás cinquenta anos.
O macaco pestanejou e pediu:
— Senhor, é demasiado para tão indigno mister. Basta-me viver trinta anos.
Tomando, então, a palavra, disse o homem:
— Vinte anos que o burro não quis, vinte que o cão enjeitou, vinte que o macaco recusa, dai-mos, Senhor, que trinta anos é muito pouco para o rei dos animais.
— Queres? Respondeu o Criador. Viverás, assim noventa anos, mas com uma condição:
Cumprirás, em tua vida, não só o teu destino, mas também o do burro, o do cão e do macaco.
E assim o homem vive. Até os trintas, forte, corajoso, resistente, arrasta os perigos e estorvos, luta com resolução, vence e dorme. É HOMEM.
Dos trinta aos cinquenta, tem família e trabalha sem repouso para sustentá-la. Cria os filhos, afadiga-se para educá-los e garantir-lhes o futuro. Sobre ele se acumulam os encargos. É BURRO.
Dos cinquenta aos setenta, está de sentinela à família. Dedicado e dócil, seu dever é defendê-la mas já não pode, contudo, fazer valer sua vontade. Contrariado, humilha-se e obedece. É CÃO.
Dos setenta aos noventa, sem força, curvo, trôpego e enrugado, vegeta a um canto, inútil e ridículo. Faz rir com sua gula, sua caduquice e sua própria rabugice. Sabe que não o tomam a sério, mas se resigna e tem gosto em ser palhaço das crianças. É O MACACO. Pois esta, afinal, é a vida do homem.

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