A Rosa de Saron
(Poema em Prosa)
Era
noite; o som do sino corrido ecoara
pela Judiaria; emudeceu como se as passadas lentas de um convidado de pedra
troassem no meio das risadas de um festim. A alegria e o ruído do trabalho
suspenderam-se; os mesteirais e homens de ofício fecharam as portas; os
cristãos, odiando a raça maldita, separaram-se, deixando-a ao medo da noite.
Então na pequena casa do judeu acende-se a luz do lar; cansado de receber
insultos durante o dia, de ver em roda de si a vileza e a traição, a lei e o
fanatismo a ameaçá-lo, esquece por um instante os planos da sua indústria, os
recursos com que produz o ouro e os capitães com que há de comprar a sua segurança,
e entra no foco mais íntimo da família. Entra prostrado; banha-lhe o suor as
faces, traz o desgosto pintado na cara encanecida, vem afadigado das longas
migrações, amedrontado pelos terrores das grandes crises do estado; ao
asilar-se no remanso da casa, entra como o errante do deserto num oásis
desconhecido; o rosto tranquilo da esposa lembra-lhe o tipo de Ester, da
Sulamita, de Débora, da Sibila palestiniana, e abraça-a com a sofreguidão com
que umas fauces ressequidas se dessedentam numa nascente viva. Vêm depois os
filhos, debruçam-se-lhe dos ombros, prendem-se-lhe às pernas, enlaçam-se em
volta do corpo, e nessa hora o judeu sente-se outra vez forte para todas as
lutas, para todos os opróbrios, para todos os vexames, com alma para afrontar a
miséria e o queimadeiro. Fala das tradições de Israel, da sua migração através
dos séculos, da terra prometida, e do Messias, não o ídolo papal que se impõe
pela fogueira, mas a boa nova da igualdade e da liberdade humana.
***
Na Judiaria, habitava um velho negociante de joias e pedrarias; quando algum potentado casava, mandava sempre ali escolher o presente de noiva, a compra de corpo, o dom da manhã. Ele tinha as pérolas das mais lindas do fundo do mar; as rochas mais encantadas do Oriente tinham entregues ao joalheiro os brilhantes facetados da água mais límpida; topázios, esmeraldas, adereces, diademas, nunca o tesouro da Senhoria de Veneza reuniu riquezas de tanto gosto e primor. Viera de Espanha, no tempo da grande expulsão dos judeus por Fernando e Isabel; o facho de Torquesada iluminou-lhe o caminho de Portugal, terra da tolerância e da paz. O clima, o ar, a doçura do céu, lembram-lhe o Oriente; ele ama como filho a boa terra lusitana. Voltava do trabalho à hora do sino corrido; deixava o tesouro que faria a inveja de bastantes tronos, mas vinha ver outro tesouro, o mais querido, e estremecido — uma filha de quinze anos. Chamava-lhe o bago das vinhas de Engadi; chamava-lhe a Rosa das campinas de Saron, irmã gémea da filha de Jefté, pura como Débora, deslumbrante como a Sulamita.
***
O
pai entrara para casa; veio a filha abraçá-lo quase à porta. Se o bom do velho
não recearia que lhe descobrissem essa flor escondida! Esperava-o a
tranquilidade do lar; os risos e folguedos das outras crianças faziam-lhe
esquecer os apupos e maldições da gentalha. Jogral de um povo rude, o lar
tornava-o um patriarca, um levita, sacrossanto como Moisés descendo o Monte do
Senhor. Sentou-se de cansado. Tinha perto de si o Guemara; ao lado vem assentar-se a filha, Ebla, assim chamada do
nome da Lua, como conta o velho Livro de
Enoque. Ebla falou-lhe:
—
Nunca mais tornaremos a ver Sião, e os túmulos dos profetas? nem escutaremos o
sussurro dos nossos rios?
O
pai, enquanto as outras crianças brincavam, pousou o dedo sobre o verso do Guemara, volveu-lhe um sorriso doloroso.
—
Virgem do coro das donzelas de Sião, os nossos filhos continuam a nossa
existência na terra; assim como o castigo vem dos pais sobre a cabeça dos
filhos, o Senhor também recompensa nos filhos os bens que os pais tiverem
merecido. Há quantos séculos andamos longe de Sião bem-dita; eu sinto que os
meus não pisarão o solo da terra prometida; mas vejo-te ao meu lado, como a
flor que brota de uma ruína; eu não poderei entrar na Cidade dos profetas,
serei como Moisés no alto do Abarim; mas o Senhor deu-me uma esperança, fez-te
nascer no meu lar, filha. Assim o fanatismo e a atrocidade me não arranquem a
vida. Uma noite, eras tu ainda pequenina, em Toledo; a noite ia escura e
carregada, chovia, cruzavam-se os raios. Sou na Judiaria uma voz sinistra: Às onze
horas do sino da Catedral, a hora em que devíamos abraçar a religião de Cristo,
seriamos lançados nas fogueiras das praças ou abandonar para sempre a
formosíssima terra de Espanha. Os meus tesouros lá ficaram, e dei-me por feliz
em trazer-te comigo. Portugal anda entregue às descobertas e aventuras do mar;
os ódios de raça ainda cá não tinham sido exaltados pela classe dos tonsurados.
Trouxe-te ao colo, e tu me deste animação e alento na fugida.
—
Ó meu pai, acudiu Ebla, passou hoje pela nossa porta uma cigana, cantando
romances e seguidilhas de Espanha, e pedi-lhe para ela cantar...
—
E que ouviste? interrompeu o judeu aterrado.
—
Ela contou-me que el-rei D. Manoel vai em breve casar com a filha de Fernando e
Isabel a Católica, e que ela só aceita a mão de esposo com a condição de
desterrar para sempre os judeus para fora de Portugal. E acompanhava a notícia
com a cantiga castelhana:
Ea! Judios
á enfardelar!...
los Reyes mandan
passar la mar.
O
velho judeu ficou assombrado; fechou o Guemara,
e repousou a cabeça sobre o livro. De repente sentiu-se ecoar pela Mouraria o
som seco e repetido de uma matraca, e de espaço a espaço, a voz do pregoeiro
das justiças, bradar:
“Ordem
del-rei para os judeus de Lisboa se apresentarem na alvorada com uma dança
judenga, guizos, touras e guinolas, para irem receber o séquito da nova rainha.
Sofrerá pena de morte o que levar armas consigo. O rabi da Judiaria irá na
frente das danças.”
Debaixo
das janelas do velho judeu soaram estas palavras. O canto da cigana revelado
pela filha lembrou-lhe um presságio funesto.
—
Patriarca no lar e truão nas ruas! cumpra-se o destino a troco da paz. — E
levantou-se com o aspecto venerando de sacerdote magno, e foi sacudir a sua
vestimenta de guizos, procurar a palheta, enquanto esperava o toque da
alvorada.
***
Lisboa
tumultuava em festa imensa; arcos e flores, salvas de artilharia, estandartes,
músicas, anunciavam o dia da chegada da infanta D. Isabel, mulher do monarca
Venturoso. Já se sentia o estrépito do cortejo real; pelas portas da cidade vem
entrando as danças dos mesteirais. Primeiro, vinha a Folia, com gaitas e pandeiros à velha portuguesa, dançando em volta
de um tambor; trazem guizos nos pés, cantam letrilhas de folgar e sainetes
galantes; os guizos dos artelhos no retinente som confundem as coplas. Com
gentil ademã no ar volteiam lenços acenando. Vinha depois a Carraquisca, a dança dos barqueiros e
mareantes dos galeões do Tejo; trazem andando um balanço que imita um bâmbula
dos pretos, aprendido lá nas conquistas. Vai passando a Cativa, uma outra dança de agrilhoados mouros, bailando aos modos
da Salé, vão confessando preito à nova rainha. Já vem perto a Gitana, toda feita de ranchos de
raparigas vestidas de variegados panos, cintos de ouro e vermelho; voam-lhes as
roupagens com o vento cruzando facas entre si, ao doce baile da Mourisca, que
os sentidos fez perder com a trisca dos volteios. Eis que chega também a Dança judenga! Os apupos do povo
alevantaram-se furiosos chamando-lhes traidores; as vaias e as pedradas eram
pelo ar sem conto; a plebe desenfreada atira-se de roldão sobre a judenga ao entrar da cidade, e abafam as
queixas dos oprimidos com risadas. Vinha na frente o velho Rabi, dirigindo a
guinola e toura, quando um malvado lhe arrepela as barbas brancas. Os olhos do
venerável velho chamejaram de indignação e vergonha; levantou a palheta de bobo
que bamboava nos ares, e descarregou-a na cabeça do atrevido, com a mesma altivez
de ânimo do velho Cônsul da cadeira curul. O vilão caiu por terra e lá ficou
calcado aos pés da multidão que se atropelava e ruía furibunda sobre a
desgraçada dança judenga. O velho
Rabi fugiu a todo o custo; a multidão precipita-se após ele; gritando,
chamando-lhe refece assassino. A noite vinha descendo, e protegido pelas
sombras do crepúsculo se ia livrando dos golpes que lhe atiravam. O velho ia
quase exausto, a turba que o perseguia ia rareando após ele; já poucos o
seguiam; mais um esforço, e ficaria salvo; as pernas parecem falhar-lhe,
falta-lhe o ar; sente vontade de atirar-se ao chão e deixar-se retalhar. Mas um
raio de luz e de vigor lhe atravessou o espírito; lembrara-se de Ebla, da sua
filha!
Ia
o velho Rabi a entrar já na Judiaria, estava quase à porta de casa quando um
dos poucos populares que ainda vinha atrás dele lhe deitou a mão.
Inesperadamente veio-lhe um socorro imprevisto; um donzel do séquito do
príncipe Dom Afonso, e que andava ainda triste com a morte do seu jovem amigo,
sentiu um impulso do bem e defendeu o velho judeu. Desembainhou a espada e os
populares retiraram-se. O Rabi bateu à porta; abriram. À luz de um candil viu o
rapaz cavaleiro a cara mais linda de nazarena, os olhos mais lânguidos que não
teria a Sulamita; o sorriso mais puro, a graça, a meiguice, a expressão de
Quirub. Que contraste! na rua o gênio do mal a segui-lo, em casa o anjo da
candura a iluminá-lo, a inspirar-lhe serenidade.
O
velho Rabi vinha ensanguentado e roto; ao receber o abraço de Ebla tirou-lhe do
pescoço um colar de pérolas, e veio dá-lo ao desconhecido. O rapaz cavaleiro
beijou-o, e tornou-o a entregar.
—
Quem és, que te mostras tão generoso e cavaleiro? perguntou o Rabi.
—
Dom Tello; e adeus!
O
rapaz cavaleiro perdeu-se na sombra da noite; ai dele se a essa hora entrasse
em casa do judeu; a lei era implacável; condenava-o à pena do fogo.
O
velho Rabi sentou-se ofegante, com a cabeça encostada aos ombros da filha. Quis
começar a falar-lhe mas as lágrimas e os soluços irrompiam frequentes. Alfim,
pode ligar as palavras e contar-lhe o sucedido.
—
Oh meu pai; parece que os nossos desastres não acabaram aqui. Hoje passou rente
à gelosia uma cigana, e parou a cantar, e dizia que el-rei D. Manuel casando
com a infanta de Castela, a primeira promessa do seu dote era tirar aos judeus
os filhos de menos de quatorze anos, e batizá-los à força, e matar os mais
velhos e pô-los fora de Portugal...
—
Filha, é o céu que manda esse aviso; tu foste a minha providência.
E
desceu a um subterrâneo da casa, e lá se entreteve sozinho dispondo as suas
riquezas para a hora da expulsão.
Ebla
ficara por instantes só; revolvia na mente o dito da cigana; nas cantigas a
cigana dissera-lhe mais coisas: Que um cavaleiro rapaz e formoso a adorava; que
por ela seria capaz de abandonar a religião em que nascera e segui-la até aos
confins do universo. E que se um dia visse um rapaz trigueiro, de bigode preto
e olhos vivos, faiscantes, era D. Tello, aquele que a adorava. Ebla atou na
mente esta lembrança; lembrou-se que Tello, o rapaz cavaleiro acabava nesse
instante de salvar o pai. Nasceu-lhe na alma um amor repentino; veio-lhe uma
vontade de vê-lo, de lhe falar; notou a generosidade de não aceitar mas beijar
o colar de pérolas. Solícita e a medo assomou à gelosia; a luz do candil
refletiu-se fora, através das grades da adufa. Sentiu uns passos na rua, depois
uma voz mansa e suave que proferiu no silêncio da noite:
—
Ebla!
Estes
sons entraram na alma da donzela; e obedecendo à fascinação daquela voz, lançou
a cabeça de fora. Viu na sombra um vulto, que a irradiação lhe iluminou como a
imagem vaga descrita no cantar da cigana. Aquela voz, como vibrada por um
verdadeiro amor, disse-lhe com o império de uma vontade irresistível:
—
Vem.
Ebla
desceu em cabelo, e sentiu-se envolver num abraço apaixonado, veemente,
expressivo. Era a primeira vez que sentia o amor. Deixou-se levar sem saber
porque, nem para onde.
Naquela
noite, com as festas do casamento de el-rei D. Manuel, as portas da Judiaria
ficaram abertas. Ebla e D. Tello afundavam-se na escuridão da noite, quando
entra na Judiaria um tropel imenso de homens de armas e de cavalo; ia na frente
o alcaide da justiça. Ao som de uma matraca restabelecera-se o silêncio, e pela
escuridão sombria e soturna da Judiaria soava uma voz sinistra, como de
sentença:
“Pregão
d’el-rei D. Manoel, para os judeus, ao toque da alvorada, embarcarem para fora
de Lisboa, sob pena de morte.” A palavra morte acendia na multidão um
entusiasmo frenético que apupava, ameaçava e esbravejava cantando entre risos
alvares:
Ea! Judios
á enfardelar!...
á enfardelar!...
los Reyes
mandan passar la mar.
Aquele
grito sinistro, toda a judiaria se levantou em peso; do fundo do seu subterrâneo
saiu o velho Rabi, solícito, temeroso, mas constante. Ouviu proferir a sentença
ominosa. Chamou pela sua filha, e foi acordar as outras crianças que dormiam; a
mulher voltou apressada do pé dos tesouros. Tornaram a chamar por Ebla; o
grande ruído das ruas e da multidão nada deixava perceber. Chamou por Ebla com
uma aflição de morte; viram a porta aberta; multidão de gente que tripudiava,
lançando fogo às casas. O velho pai parecia um leão ferido.
—
A maldição desta raça caiu inteira sobre mim. Perdi tudo ao levarem-me essa
filha. A minha condenação, a minha morte para salvá-la. Se há no mundo alguma
força superior, que seja o destino das coisas, Javé ou Jesus, acaso ou as potências
do inferno, conjuro tudo sacrifico-lhe a minha vida, a minha sorte pelo
aparecimento de Ebla. De que vale todo esse ouro e pedrarias se perdi Ebla;
levaram a minha joia de mais valia, e com ela todas as esperanças e alegrias da
minha vida...
Era
incomportável a dor do velho; ia continuando, frenético, doido; queria fazer-se
cristão para procurar a filha, quando ecoou de novo a voz do alcaide da alta
justiça:
“Soou
agora o toque da alvorada; o incêndio lavra já na Judiaria! — Ao embarque, ao
embarque nos galeões do Tejo, ou a morte à escolha.”
O
velho Rabi saiu com a sua mulher e dois filhos pequenos, levados em tropel
confuso e lamentos para o Tejo, aonde se enchiam os galeões de Holanda, e
ressoava o eco lúgubre:
los Reyes
mandan
passar la
mar.
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