5/30/2019

A promessa de Marcolina (Conto), de Luís Guimarães Júnior





A promessa de Marcolina
CAPÍTULO 1
Elas cantavam, durante o trabalho, dia e noite. O canto de uma era choroso como o suspiro das fontes ou os suspiros do mar. Chamava-se Ana e tinha menos dois anos que Marcolina. Era pálida e nos seus pensativos olhos negros borbulhava uma lágrima eterna. Dir-se-ia que em vez de cortina branca, afagara-lhe o berço apenas a escura asa da morte.
A segunda, a Marcolina, era mais alegre, mais viva e mais criança que a irmã! Tinha uns olhos verdes, olhos de esperança e de amor, perenes fontes de sagradas qui­meras e iriantes carícias da mocidade. A alvura de ambas moldurava-se graciosamente sob compridas e ondulantes tranças de cabelos negros. Viviam unidas pelo mesmo pensamento, as mesmas ideias, as mesmas mágoas e as mesmas consolações, como dois lírios em um só galho, ou em um só hastil duas orvalhadas açucenas.
Eram órfãs de pai e mãe. Pobres e virtuosas, acudiam à magra subsistência de sua vida trabalhando na costura sem descanso e trajando com a perfeição e o gosto de quem sabe ser formosa, sem adornar-se nem resplandecer como as meninas ricas que se espanejam nos salões da opulência.
Marcolina amava Ana com a sofreguidão de uma mãe e as santas ternuras da mais dedicada irmã. Tristeza que sombreasse a adorada cabeça de Aninha descia logo sobre o risonho coração da outra, como as dobras de uma mor­talha ou a pedra de uma sepultura.
Às vezes Ana deixava cair os dedos estáticos à costura começada, olhava para o céu azul, onde corria um bando de andorinhas, e suspirava.
— Que tens, Aninha?
— Nada; saudades...
E de novo a agulha embebia-se veloz na dobra da seda ou da casa, enquanto a voz da menina não cantava, mas gemia umas quadras melancólicas:
Tu hás de vir numa noite
Sem estrelas nem luar,
Ver meus olhos como fecham
Ver meu peito agonizar.
E os meus pesados tormentos,
Não poderás consolar,
Se vieres numa noite
Sem estrelas nem luar.
— Cala a boca, Aninha! dizia Marcolina ternamente repreensiva. Que hás de estar cantando sempre essas coisas tristes!
— E o que tem, se eu sou triste por natureza!
— Ao menos para aí. Não gosto do resto dessa cantiga l
Mas Aninha sorria com um ar de angélico martírio, e depois de dar dois pontos febris na costura, prosseguia:
Como, oh pobre! hás de sofrer!
Como tu deves chorar!
As nossas almas na terra
Nunca mais hão de se olhar!
Pois Deus escolheu a noite
Sem estrelas nem luar,
Porque não quer que tu vejas
Minh'alma aos anjos voar.
Vivamos enquanto é tempo,
Enquanto eu posso te amar,
Ai! antes que chegue a noite
Sem estrelas nem luar!
O seio de Aninha ofegava e uma lágrima tremia nas doces pálpebras abaixadas sobre a costura.
Marcolina, seguia lentamente a ondulação e a queda daquela misteriosa lágrima.

CAPÍTULO 2
O pai dessas duas costureiras morreu no campo de batalha, em uma de nossas antigas campanhas, batendo-se como um bravo, em honra da pátria. Recebeu o golpe fatal, trazendo na farda as divisas de coronel. Serenaram-se os tempos; o resto das tropas empenhadas em defender o nome do ministério, que sustentou a guerra, e a ban­deira nacional, voltou aos pátrios lares; soldados estropiados, oficiais sem braços e cobertos de cicatrizes; mas a glória fartara-se de sangue e a palavra de ordem fora pronunciada nos campos da peleja.
O soldo do coronel morto foi a princípio religiosa­mente ou antes politicamente entregue à viúva, cujas filhas, Ana e Marcolina contavam nessa época cinco e sete anos de idade. A viúva, para encher a lacuna aberta nos gastos da casa, cosia para fora; o soldo auxiliava mas não socorria a todas as despesas.
Mudaram-se os tempos e mudaram-se as políticas. Quando as meninas completavam, uma treze e a outra quinze anos, não se sabe porque motivo, a viúva deixou de perceber o soldo do coronel morto em defesa da pátria.
A desventurada pediu a Deus forças para o trabalho, e nunca mais se apagou a lâmpada noturna a cuja luz cegaram-se pouco a pouco os olhos, que as lágrimas não haviam conseguido enevoar.
Marcolina e Ana começaram a compreender então todo o peso de sua desventura, e com uma resignação sublime, com essa virtude que a Providência retempera nas almas privilegiadas, atiraram-se ao trabalho e não abandonaram nunca a santa e carunchosa mesa, junto à qual ia se extinguindo a misérrima viúva do soldado.
A tristeza que pairava, como sinistra ameaça sobre a fronte macilenta da mãe, ficou por herança à filha; nunca as lágrimas correram isoladas pela face da velha: Ana chorava também quando pressentia que a pobre mulher retinha um soluço ou sufocava um pranto de solador.
Marcolina, mais alegre por natureza, e talvez, quem sabe? para afastar um pouco a profunda e mortuária tristeza que oprimia a família, ria-se, lembrava anedotas, cantava e enfiava risadas turbulentas.
Quem canta seus males espanta! exclamava ela com os olhos brilhantes e sobraçando o travesseiro da costura, onde fazia prodígios de máquina. Ana suspirava, com­primindo as pulsações do seu coração ferido por mágoa desconhecida, e murmurava com a alma desorientada:
— Isto durará sempre, Mãe Santíssima?

CAPÍTULO 3
Richard era um rapaz de vinte e dois anos, gracioso e modesto como uma menina bem educada. Era louro, tinha olhos azuis magníficos, e um meigo sorriso que encantava a todos.
Nascera no Rio de Janeiro e descendia de uma família francesa. Os pais morreram-lhe antes dele contar quinze anos, e a modista, amiga da extinta família, tomara sob sua proteção o menino do qual fez o seu mais fiel caixeiro e o mais sisudo amigo.
Richard encarregara-se dos melindrosos tráficos da casa. Por morte do guarda-livros cedera-lhe a modista toda a escrituração e as transações comerciais jogadas com esta praça e a de Paris. O zelo, a atividade e a limpeza acompanhavam os trabalhos do moço como a sua guarda e os diplomas de seu raro valor.
Quem levou pela primeira vez encomendas à casa da viúva do coronel, foi ele. As meninas não lhe apare­ceram, e a viúva, ciosa até o excesso, tratara-o com certa urbanidade e reserva.
Multiplicaram-se as visitas, e em um belo dia, quem o recebeu não foi a viúva, foi Aninha com os seus grandes e tristes olhos negros.
Richard era acanhado; coisa rara em um rapaz que tem a liberdade de percorrer a Rua do Ouvidor, e que é empregado em casa de uma modista de fama.
Aninha fez-lhe sala até à chegada de sua mãe e de Marcolina, que haviam saído. Quando a viúva entrou, não franziu o sobrolho vendo-os juntos, porque Richard entrara na simpatia da honrada senhora.
— Oh! estava aí, Sr. Richard?
_ — Trouxe estes vestidos para ficarem prontos até o dia 20, disse o caixeiro com um leve e picante sotaque francês.
— Até o dia 20! A madama anda agora muito apressada. Diga-lhe que aqui não há máquinas!
— Mas as senhoras trabalham tão depressa!
Richard despediu-se, e ao transpor a porta, os olhos dele e os olhos de Aninha encontraram-se por acaso. A formosa menina corou ternamente e sentiu que o seu coração batia mais apressado.
Daí por diante, não era só a viúva quem vinha atender a Richard nas encomendas da modista. Ora Marcolina, ora Aninha, acudiam pressurosas às palmas do gracioso moço e davam sempre por bem-vinda a sua presença.
Marcolina que adivinhara qualquer coisa, ria-se para Aninha, ao ouvirem ruído na escada, e dizia maliciosa­mente:
— Temos encomenda, Aninha!
— Melhor!
— Mas não reparaste ainda, mana, que Madame Augusta pensa mais em nós agora do que dantes?
É desprendia uma gargalhada melodiosa e vibrante.
— Marcolina!
A viúva do coronel também notara a assiduidade de Richard junto de Aninha, mas não dissera palavra nunca. E Aninha? A própria irmã, até um dos dias mais fatais de sua vida, não pôde conseguir, por mais que tentasse, ouvir dos lábios da outra o menor vislumbre de con­fissão amorosa.
— Pois não gostas de Richard?
— Gosto. É um mocinho sério e...
— E bonito?
— Nem reparei ainda! acudiu Aninha, erguendo com mimoso desdém os ombros. Para mim, Marcolina, a melhor beleza está na alma, e essa não se vê!
— Bravo! a minha filosofia!
— Richard amava Aninha, e deveras. Há uma certa relação íntima e espontânea entre aqueles a quem o destino tem ferido nos seus mais caros sentimentos, que não é dado à criatura adivinhar ou compreender na vida. A orfandade de Richard pendia para a triste palidez de Aninha, à semelhança de certas flores que só brotam na grama que rodeia os túmulos, e crescem inclinadas sobre a terra que vai recebê-las em breve.
Mas, nunca da boca de Richard saíra a mais simples palavra de amor em presença de Aninha. O pobre rapaz deixava à linguagem dos olhos e dos suspiros a confissão de suas secretas mágoas. Como toda a mulher, desde Eva até a leitora desta história, Aninha adivinhara nos olhos e nos suspiros de Richard, o amor que germinava naquele leal coração e naquela honesta alma.
No dia dos anos de Aninha, Richard trouxe-lhe por mimo um livro de missa, ricamente encadernado em veludo azul e prata.
A menina leu a oração da noite com os mais santos entusiasmos de sua alma e de seu puro coração de donzela. O livro que Richard lhe oferecera, tornou-se o seu Evangelho, a Bíblia de sua mocidade e aspirações virginais.
Morreu a viúva do militar. As filhas que rodea­vam-lhe a cama, ouviram de sua boca, santificada pelas sombras profundas da eternidade, conselhos que só as mães e os anjos sabem proferir nos momentos solenes.
— Olha bem para Aninha, Marcolina, suspirava a moribunda. A honra é uma coisa que se quebra com facilidade extraordinária. Cuidado com a nossa honra, filhas!
Marcolina, pálida, forte e resignada, amparava seu peito palpitante a cabeça desorientada de Aninha.
— Marcolina, tu és mais velha e conheces melhor o mundo do que ela. Salva tua irmã e salva-te!
— Sim, mamãe, sempre!
Richard bateu à porta.
Quando a moribunda viu o moço entrar no seu quarto, tentou, por um hercúleo esforço, estender-lhe a mão lívida e transparente.
Richard, com os olhos molhados e a boca trêmula, dirigiu-se a Marcolina.
A menina disse-lhe apenas:
— Mamãe está muito mal, Richard.
E correu para fora do quarto, onde já não podia a infeliz sufocar a torrente impetuosa de suas lágrimas.
A janela da sala deixava entrar os abundantes clarões da lua. Marcolina estendeu os braços ao céu iluminado:
— Meu Deus! amparai a sua alma, e protegei-nos, santo lenho de Jesus!
Richard saía nesse momento da alcova. Marcolina correu ao seu encontro:
— Não se chama um padre, não se chama um médico?
— Ela não quer ninguém. Pediu-me apenas que lhe desse o seu crucifixo de marfim, quando estivesse para entregar a alma a Deus.
Ficaram ambos a ouvir os doces murmúrios da noite, aclarados pelos raios da lua misericordiosa e terna.
— Que desgraça, Marcolina!
— É uma desgraça, sim, uma desgraça irremediável, Richard! Parece que Nossa Senhora, com pena de mim, arrancou-me do seio o coração e fez-me estátua para poder suportar todas estas desventuras. E Aninha, Richard; e Aninha?
— Pela salvação de minha alma, que a amo!
— Ama Aninha? Você a quer para si? Diga!
— Seria a minha única ventura! exclamou o moço levantando a cabeça ao céu, como se exigisse o teste­munho dos anjos.
Um clarão divino cobriu o rosto de Marcolina, que se fez de uma beleza ideal.
— Seria a sua única ventura? disse ela sorrindo, com os olhos úmidos e o regaço ofegante.
— Seria.
— Louvado seja Deus! bradou a menina apertando as mãos de Richard e desprendendo um suspiro de inefável contentamento.
À porta da alcova apareceu a cabeça lívida de Aninha.
— Marcolina!
A viúva agonizava. Estremeciam-lhe as magras mãos, cingidas sobre o crucifixo, úmido de suor e de lágrimas.
Quando Marcolina ajoelhou-se aos pés da cama, a pobre mulher exalava o derradeiro suspiro, articulando ainda:
— Deus receba a minha alma.
Aninha saiu do quarto nos braços de Marcolina e de Richard, inanimada e fria.

CAPÍTULO 4
Richard continuou a frequentar a casa daquelas duas crianças desamparadas.
Aninha expirava aos poucos, como uma música, como um perfume, como um bonito dia de verão; ia acabando naturalmente, sem que ninguém descobrisse por traz das melancolias da menina a figura inexorável da morte.
Richard pediu oficialmente, isto é, a Marcolina, a mão de Aninha.
Marcolina participou o ocorrido à irmã. Aninha abaixou cabeça e pôs-se a chorar.
— Por que choras?
— Porque vou morrer. A alma de mamãe está me chamando, Marcolina!
Houve um enterro, cujo esquife saía da vizinhança, e Aninha assistiu à fúnebre cerimônia, como se fosse a festa do seu casamento.
— Sabes, Marcolina? Quero pedir-te um favor.
— Sim? acudiu a menina sorrindo.
— Não viste uns túmulos brancos com um anjinho em cima, de mármore, quando fomos com mamãe, há dois anos, ao cemitério de São Francisco de Paula?
— Nem me lembro!
— Pois promete-me que hás de trabalhar para fazeres levantar sobre a minha cova um anjinho assim!
— Tola!
— Não faz mal, prometes? Juras?
— Juro! replicou Marcolina, grave e melancólica.
Richard veio à noite. Aninha recebeu-o com uma reserva especial. O moço admirou-se. Chamou Marco­lina à parte.
— O que tem Aninha?
— Estou morrendo, murmurou uma voz, junto aos dois.
Marcolina e Richard voltaram-se bruscamente. Ani­nha excessivamente pálida encostava-se a uma cadeira, cerrando os olhos e apertando com a mão livre o peito arquejante.
Marcolina amparou-a entre os seus braços, ansiosa e louca. Aninha arfou convulsivamente, e os seus dedos descerraram-se pouco a pouco. Estava morta.
O que Marcolina sofreu... Para que tentar no estilo débil exprimir as mais cruciantes e terríveis dores? Marcolina sobreviveu ao naufrágio tremendo de sua família.
Uma ideia jamais a desamparou: foi o desejo fúnebre da irmã, em possuir um mausoléu branco, adornado com um anjo de mármore.
Começou a trabalhar, a trabalhar afoitamente, dia e noite, sem descanso. Em vão! As raras moedas mal chegavam para os gastos da casa. Um dia, bateram-lhe à porta; era um velho gamenho, enluvado e cheiroso, que veio oferecer-lhe meios para ela lançar-se aos abismos da desgraça e da prostituição.
Marcolina repeliu-o indignada.
— Oh, minha mãe! exclamou ela; muito custa ser honesta e feliz!
Não dormiu durante a noite. No dia seguinte, convulsa e sombria, esperou pela visita do velho, depois de receber um bilhete em que lhe participavam.
— O senhor fará o que eu desejo?
— Tudo, tudo!
— Pois bem; mande levantar um mausoléu sobre a cova de minha irmã!
— Oh!
— Só assim.
— E a senhora? E tu?
Marcolina reprimiu um gesto de enojo.
— Eu irei entregar-me à sua pessoa. Espere-me no seu quarto.

CAPÍTULO 5
Sobre a cova de Aninha erguia-se, cinco dias mais tarde, um formoso e singelo mausoléu de mármore.
Nessa noite, o velho gamenho, entrando em casa, estremeceu de volúpia, quando o criado lhe disse que no seu quarto esperava-o uma mulher.
O libertino penetrou contente e saltitante na gua­rida de suas torpes vigílias.
Marcolina estava morta em cima da cama, com um vidro de arsênico ao pé de si.
No travesseiro havia um bilhete, que o velho abriu aterrorizado:
"Cumpri a minha promessa. Aqui estou!"
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Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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