A promessa
de Marcolina
CAPÍTULO 1
Elas cantavam, durante o trabalho, dia e
noite. O canto de uma era choroso como o suspiro das fontes ou os suspiros do
mar. Chamava-se Ana e tinha menos dois anos que Marcolina. Era pálida e nos
seus pensativos olhos negros borbulhava uma lágrima eterna. Dir-se-ia que em
vez de cortina branca, afagara-lhe o berço apenas a escura asa da morte.
A segunda, a Marcolina, era mais alegre, mais
viva e mais criança que a irmã! Tinha uns olhos verdes, olhos de esperança e de
amor, perenes fontes de sagradas quimeras e iriantes carícias da mocidade. A
alvura de ambas moldurava-se graciosamente sob compridas e ondulantes tranças
de cabelos negros. Viviam unidas pelo mesmo pensamento, as mesmas ideias, as
mesmas mágoas e as mesmas consolações, como dois lírios em um só galho, ou em
um só hastil duas orvalhadas açucenas.
Eram órfãs de pai e mãe. Pobres e virtuosas,
acudiam à magra subsistência de sua vida trabalhando na costura sem descanso e
trajando com a perfeição e o gosto de quem sabe ser formosa, sem adornar-se nem
resplandecer como as meninas ricas que se espanejam nos salões da opulência.
Marcolina amava Ana com a sofreguidão de uma
mãe e as santas ternuras da mais dedicada irmã. Tristeza que sombreasse a
adorada cabeça de Aninha descia logo sobre o risonho coração da outra, como as
dobras de uma mortalha ou a pedra de uma sepultura.
Às vezes Ana deixava cair os dedos estáticos
à costura começada, olhava para o céu azul, onde corria um bando de andorinhas,
e suspirava.
— Que tens, Aninha?
— Nada; saudades...
E de novo a agulha embebia-se veloz na dobra
da seda ou da casa, enquanto a voz da menina não cantava, mas gemia umas
quadras melancólicas:
Tu hás de vir numa noite
Sem estrelas nem luar,
Ver meus olhos como fecham
Ver meu peito agonizar.
Sem estrelas nem luar,
Ver meus olhos como fecham
Ver meu peito agonizar.
E os meus pesados tormentos,
Não poderás consolar,
Se vieres numa noite
Sem estrelas nem luar.
Não poderás consolar,
Se vieres numa noite
Sem estrelas nem luar.
— Cala a boca, Aninha! dizia Marcolina
ternamente repreensiva. Que hás de estar cantando sempre essas coisas tristes!
— E o que tem, se eu sou triste por natureza!
— Ao menos para aí. Não gosto do resto dessa
cantiga l
Mas Aninha sorria com um ar de angélico
martírio, e depois de dar dois pontos febris na costura, prosseguia:
Como, oh pobre! hás de sofrer!
Como tu deves chorar!
As nossas almas na terra
Nunca mais hão de se olhar!
Como tu deves chorar!
As nossas almas na terra
Nunca mais hão de se olhar!
Pois Deus escolheu a noite
Sem estrelas nem luar,
Porque não quer que tu vejas
Minh'alma aos anjos voar.
Sem estrelas nem luar,
Porque não quer que tu vejas
Minh'alma aos anjos voar.
Vivamos enquanto é tempo,
Enquanto eu posso te amar,
Ai! antes que chegue a noite
Sem estrelas nem luar!
Enquanto eu posso te amar,
Ai! antes que chegue a noite
Sem estrelas nem luar!
O seio de Aninha ofegava e uma lágrima tremia
nas doces pálpebras abaixadas sobre a costura.
Marcolina, seguia lentamente a ondulação e a
queda daquela misteriosa lágrima.
CAPÍTULO 2
O pai dessas duas costureiras morreu no campo
de batalha, em uma de nossas antigas campanhas, batendo-se como um bravo, em
honra da pátria. Recebeu o golpe fatal, trazendo na farda as divisas de
coronel. Serenaram-se os tempos; o resto das tropas empenhadas em defender o
nome do ministério, que sustentou a guerra, e a bandeira nacional, voltou aos
pátrios lares; soldados estropiados, oficiais sem braços e cobertos de
cicatrizes; mas a glória fartara-se de sangue e a palavra de ordem fora
pronunciada nos campos da peleja.
O soldo do coronel morto foi a princípio
religiosamente ou antes politicamente entregue à viúva, cujas filhas, Ana e
Marcolina contavam nessa época cinco e sete anos de idade. A viúva, para encher
a lacuna aberta nos gastos da casa, cosia para fora; o soldo auxiliava mas não
socorria a todas as despesas.
Mudaram-se os tempos e mudaram-se as
políticas. Quando as meninas completavam, uma treze e a outra quinze anos, não
se sabe porque motivo, a viúva deixou de perceber o soldo do coronel morto em
defesa da pátria.
A desventurada pediu a Deus forças para o
trabalho, e nunca mais se apagou a lâmpada noturna a cuja luz cegaram-se pouco
a pouco os olhos, que as lágrimas não haviam conseguido enevoar.
Marcolina e Ana começaram a compreender então
todo o peso de sua desventura, e com uma resignação sublime, com essa virtude
que a Providência retempera nas almas privilegiadas, atiraram-se ao trabalho e
não abandonaram nunca a santa e carunchosa mesa, junto à qual ia se extinguindo
a misérrima viúva do soldado.
A tristeza que pairava, como sinistra ameaça
sobre a fronte macilenta da mãe, ficou por herança à filha; nunca as lágrimas
correram isoladas pela face da velha: Ana chorava também quando pressentia que
a pobre mulher retinha um soluço ou sufocava um pranto de solador.
Marcolina, mais alegre por natureza, e
talvez, quem sabe? para afastar um pouco a profunda e mortuária tristeza que
oprimia a família, ria-se, lembrava anedotas, cantava e enfiava risadas
turbulentas.
Quem canta seus males espanta! exclamava ela
com os olhos brilhantes e sobraçando o travesseiro da costura, onde fazia
prodígios de máquina. Ana suspirava, comprimindo as pulsações do seu coração
ferido por mágoa desconhecida, e murmurava com a alma desorientada:
— Isto durará sempre, Mãe Santíssima?
CAPÍTULO 3
Richard era um rapaz de vinte e dois anos,
gracioso e modesto como uma menina bem educada. Era louro, tinha olhos azuis
magníficos, e um meigo sorriso que encantava a todos.
Nascera no Rio de Janeiro e descendia de uma
família francesa. Os pais morreram-lhe antes dele contar quinze anos, e a
modista, amiga da extinta família, tomara sob sua proteção o menino do qual fez
o seu mais fiel caixeiro e o mais sisudo amigo.
Richard encarregara-se dos melindrosos
tráficos da casa. Por morte do guarda-livros cedera-lhe a modista toda a
escrituração e as transações comerciais jogadas com esta praça e a de Paris. O
zelo, a atividade e a limpeza acompanhavam os trabalhos do moço como a sua
guarda e os diplomas de seu raro valor.
Quem levou pela primeira vez encomendas à
casa da viúva do coronel, foi ele. As meninas não lhe apareceram, e a viúva,
ciosa até o excesso, tratara-o com certa urbanidade e reserva.
Multiplicaram-se as visitas, e em um belo
dia, quem o recebeu não foi a viúva, foi Aninha com os seus grandes e tristes
olhos negros.
Richard era acanhado; coisa rara em um rapaz
que tem a liberdade de percorrer a Rua do Ouvidor, e que é empregado em casa de
uma modista de fama.
Aninha fez-lhe sala até à chegada de sua mãe
e de Marcolina, que haviam saído. Quando a viúva entrou, não franziu o sobrolho
vendo-os juntos, porque Richard entrara na simpatia da honrada senhora.
— Oh! estava aí, Sr. Richard?
_ — Trouxe estes vestidos para ficarem
prontos até o dia 20, disse o caixeiro com um leve e picante sotaque francês.
— Até o dia 20! A madama anda agora muito
apressada. Diga-lhe que aqui não há máquinas!
— Mas as senhoras trabalham tão depressa!
Richard despediu-se, e ao transpor a porta,
os olhos dele e os olhos de Aninha encontraram-se por acaso. A formosa menina
corou ternamente e sentiu que o seu coração batia mais apressado.
Daí por diante, não era só a viúva quem vinha
atender a Richard nas encomendas da modista. Ora Marcolina, ora Aninha, acudiam
pressurosas às palmas do gracioso moço e davam sempre por bem-vinda a sua
presença.
Marcolina que adivinhara qualquer coisa,
ria-se para Aninha, ao ouvirem ruído na escada, e dizia maliciosamente:
— Temos encomenda, Aninha!
— Melhor!
— Mas não reparaste ainda, mana, que Madame
Augusta pensa mais em nós agora do que dantes?
É desprendia uma gargalhada melodiosa e
vibrante.
— Marcolina!
A viúva do coronel também notara a
assiduidade de Richard junto de Aninha, mas não dissera palavra nunca. E
Aninha? A própria irmã, até um dos dias mais fatais de sua vida, não pôde
conseguir, por mais que tentasse, ouvir dos lábios da outra o menor vislumbre
de confissão amorosa.
— Pois não gostas de Richard?
— Gosto. É um mocinho sério e...
— E bonito?
— Nem reparei ainda! acudiu Aninha, erguendo
com mimoso desdém os ombros. Para mim, Marcolina, a melhor beleza está na alma,
e essa não se vê!
— Bravo! a minha filosofia!
— Richard amava Aninha, e deveras. Há uma
certa relação íntima e espontânea entre aqueles a quem o destino tem ferido nos
seus mais caros sentimentos, que não é dado à criatura adivinhar ou compreender
na vida. A orfandade de Richard pendia para a triste palidez de Aninha, à
semelhança de certas flores que só brotam na grama que rodeia os túmulos, e
crescem inclinadas sobre a terra que vai recebê-las em breve.
Mas, nunca da boca de Richard saíra a mais simples palavra de amor em presença de
Aninha. O pobre rapaz deixava à linguagem dos olhos e dos suspiros a confissão
de suas secretas mágoas. Como toda a mulher, desde Eva até a leitora desta
história, Aninha adivinhara nos olhos e nos suspiros de Richard, o amor que
germinava naquele leal coração e naquela honesta alma.
No dia dos anos de Aninha, Richard trouxe-lhe
por mimo um livro de missa, ricamente encadernado em veludo azul e prata.
A menina leu a oração da noite com os mais
santos entusiasmos de sua alma e de seu puro coração de donzela. O livro que
Richard lhe oferecera, tornou-se o seu Evangelho, a Bíblia de sua mocidade e
aspirações virginais.
Morreu a viúva do militar. As filhas que
rodeavam-lhe a cama, ouviram de sua boca, santificada pelas sombras profundas
da eternidade, conselhos que só as mães e os anjos sabem proferir nos momentos
solenes.
— Olha bem para Aninha, Marcolina, suspirava
a moribunda. A honra é uma coisa que se quebra com facilidade extraordinária.
Cuidado com a nossa honra, filhas!
Marcolina, pálida, forte e resignada,
amparava m seu peito
palpitante a cabeça desorientada de Aninha.
— Marcolina, tu és mais velha e conheces
melhor o mundo do que ela. Salva tua irmã e salva-te!
— Sim, mamãe, sempre!
Richard bateu à porta.
Quando a moribunda viu o moço entrar no seu
quarto, tentou, por um hercúleo esforço, estender-lhe a mão lívida e
transparente.
Richard, com os olhos molhados e a boca
trêmula, dirigiu-se a Marcolina.
A menina disse-lhe apenas:
— Mamãe está muito mal, Richard.
E correu para fora do quarto, onde já não
podia a infeliz sufocar a torrente impetuosa de suas lágrimas.
A janela da sala deixava entrar os abundantes
clarões da lua. Marcolina estendeu os braços ao céu iluminado:
— Meu Deus! amparai a sua alma, e
protegei-nos, santo lenho de Jesus!
Richard saía nesse momento da alcova.
Marcolina correu ao seu encontro:
— Não se chama um padre, não se chama um
médico?
— Ela não quer ninguém. Pediu-me apenas que
lhe desse o seu crucifixo de marfim, quando estivesse para entregar a alma a
Deus.
Ficaram ambos a ouvir os doces murmúrios da
noite, aclarados pelos raios da lua misericordiosa e terna.
— Que desgraça, Marcolina!
— É uma desgraça, sim, uma desgraça
irremediável, Richard! Parece que Nossa Senhora, com pena de mim, arrancou-me
do seio o coração e fez-me estátua para poder suportar todas estas
desventuras. E Aninha, Richard; e Aninha?
— Pela salvação de minha alma, que a amo!
— Ama Aninha? Você a quer para si? Diga!
— Seria a minha única ventura! exclamou o
moço levantando a cabeça ao céu, como se exigisse o testemunho dos anjos.
Um clarão divino cobriu o rosto de Marcolina,
que se fez de uma beleza ideal.
— Seria a sua única ventura? disse ela
sorrindo, com os olhos úmidos e o regaço ofegante.
— Seria.
— Louvado seja Deus! bradou a menina
apertando as mãos de Richard e desprendendo um suspiro de inefável
contentamento.
À porta da alcova apareceu a cabeça lívida de
Aninha.
— Marcolina!
A viúva agonizava. Estremeciam-lhe as magras
mãos, cingidas sobre o crucifixo, úmido de suor e de lágrimas.
Quando Marcolina ajoelhou-se aos pés da cama,
a pobre mulher exalava o derradeiro suspiro, articulando ainda:
— Deus receba a minha alma.
Aninha saiu do quarto nos braços de Marcolina
e de Richard, inanimada e fria.
CAPÍTULO 4
Richard continuou a frequentar a casa
daquelas duas crianças desamparadas.
Aninha expirava aos poucos, como uma música,
como um perfume, como um bonito dia de verão; ia acabando naturalmente, sem que
ninguém descobrisse por traz das melancolias da menina a figura inexorável da
morte.
Richard pediu oficialmente, isto é, a
Marcolina, a mão de Aninha.
Marcolina participou o ocorrido à irmã.
Aninha abaixou cabeça e pôs-se a chorar.
— Por que choras?
— Porque vou morrer. A alma de mamãe está me
chamando, Marcolina!
Houve um enterro, cujo esquife saía da
vizinhança, e Aninha assistiu à fúnebre cerimônia, como se fosse a festa do seu
casamento.
— Sabes, Marcolina? Quero pedir-te um favor.
— Sim? acudiu a menina sorrindo.
— Não viste uns túmulos brancos com um
anjinho em cima, de mármore, quando fomos com mamãe, há dois anos, ao cemitério
de São Francisco de Paula?
— Nem me lembro!
— Pois promete-me que hás de trabalhar para
fazeres levantar sobre a minha cova um anjinho assim!
— Tola!
— Não faz mal, prometes? Juras?
— Juro! replicou Marcolina, grave e
melancólica.
Richard veio à noite. Aninha recebeu-o com
uma reserva especial. O moço admirou-se. Chamou Marcolina à parte.
— O que tem Aninha?
— Estou morrendo, murmurou uma voz, junto aos
dois.
Marcolina e Richard voltaram-se bruscamente.
Aninha excessivamente pálida encostava-se a uma cadeira, cerrando os olhos e
apertando com a mão livre o peito arquejante.
Marcolina amparou-a entre os seus braços,
ansiosa e louca. Aninha arfou convulsivamente, e os seus dedos descerraram-se
pouco a pouco. Estava morta.
O que Marcolina sofreu... Para que tentar no
estilo débil exprimir as mais cruciantes e terríveis dores? Marcolina
sobreviveu ao naufrágio tremendo de sua família.
Uma ideia jamais a desamparou: foi o
desejo fúnebre da irmã, em possuir um mausoléu branco, adornado com
um anjo de mármore.
Começou a trabalhar, a trabalhar afoitamente,
dia e noite, sem descanso. Em vão! As raras moedas mal chegavam para os gastos
da casa. Um dia, bateram-lhe à porta; era um velho gamenho, enluvado e
cheiroso, que veio oferecer-lhe meios para ela lançar-se aos abismos da
desgraça e da prostituição.
Marcolina repeliu-o indignada.
— Oh, minha mãe! exclamou ela; muito custa
ser honesta e feliz!
Não dormiu durante a noite. No dia seguinte,
convulsa e sombria, esperou pela visita do velho, depois de receber um bilhete
em que lhe participavam.
— O senhor fará o que eu desejo?
— Tudo, tudo!
— Pois bem; mande levantar um mausoléu sobre
a cova de minha irmã!
— Oh!
— Só assim.
— E a senhora? E tu?
Marcolina reprimiu um gesto de enojo.
— Eu irei entregar-me à sua pessoa. Espere-me
no seu quarto.
CAPÍTULO 5
Sobre a cova de Aninha erguia-se, cinco dias
mais tarde, um formoso e singelo mausoléu de mármore.
Nessa noite, o velho gamenho, entrando em
casa, estremeceu de volúpia, quando o criado lhe disse que no seu quarto
esperava-o uma mulher.
O libertino penetrou contente e saltitante na
guarida de suas torpes vigílias.
Marcolina estava morta em cima da cama, com
um vidro de arsênico ao pé de si.
No travesseiro havia um bilhete, que o velho
abriu aterrorizado:
"Cumpri a minha promessa. Aqui
estou!"
---
Digitalização, pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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