A primeira visita de Macunaíma ao Rio de Janeiro
Antes de escrever o romance Macunaíma,
Mário de Andrade fez uma viagem que veio realizar um de seus sonhos. Partindo
de São Paulo (Santos), a expedição marítima organizada por dona Olívia
Penteado, correu o Amazonas e o Peru, com escalas no Rio de Janeiro, Salvador e
outras capitais do Nordeste.
Desde 1926, dona Olívia Penteado –
conhecida como A Senhora das Artes –
vinha divulgando o seu projeto de organizar uma viagem que simbolizasse uma nova descoberta do Brasil. A ideia
animou sobremaneira Mário de Andrade, que bem a seu jeito, batizou de “Viagens
pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, por Marajó até dizer
chega”.
Participaram da viagem dona Olívia
Penteado, sua sobrinha Mag, Mário de Andrade e Dulce, filha da pintora Tarsila
do Amaral. O itinerário de ida constou de ida de navio até Belém e daí então
seguir de barco pelo Amazonas até Iquitos (Peru). No retorno a comitiva
percorreu a [Estrada de Ferro] Madeira-Mamoré, voltou a Belém e depois
continuou até a Ilha de Marajó. Ao passo que de volta a São Paulo, fizeram
escalas por algumas capitais do nordeste e pelo Rio de Janeiro.
Dessa viagem resultou um sem número de
realizações do escritor paulistano e determinou o interesse de Mário pela
produção cultural do Norte e Nordeste do país. Entre as obras que nasceram da
viagem contam o diário publicado com o título de “O Turista Aprendiz”, as
gravações, fotografias e notas sobre temas populares, que seriam incluídas em
outros trabalhos.
Foi nessa viagem que Mário de Andrade
descobriu o cantador de coco e repentista Chico Antonio (cujo projeto seria o
livro Na pancada do ganzá), mas, principalmente, acendeu no poeta a chama de
brasilidade que deu origem ao seu romance mais famoso: “Macunaíma”. Nesse
romance Mário de Andrade inclui uma pequena passagem do herói pelo Rio de
Janeiro (capítulos VII, Macumba e VIII, Vei a Sol).
É no capítulo VII Macumba, que começa a
primeira atribulada passagem de Macunaíma pelo Rio de Janeiro:
Macunaíma
estava muito contrariado. Não conseguia reaver a muiraquitã e isso dava ódio.
Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer de Exu
diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia.
Com esse estado de espírito Mário de
Andrade prepara o roteiro do seu personagem:
A
macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata, feiticeira como não tinha
outra, mãe de santo famanada e cantadeira ao violão. Tia Ciata era uma negra
velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca
esparramada feito luz em torno na cabeça pequetita.
O reduto de Tia Ciata era conhecido.
Ficava ali pelas bandas da Praça Onze, nas encostas do morro do Estácio. Era
ponto de reunião de macumbeiros, sambistas, músicos e também dos “fadistas” que
se tornariam os chorões no futuro. Pixinguinha, Donga, João da Baiana
compareciam às festanças regadas a música, mulheres e comilanças.
No mesmo terreiro em que ela festejava
os Orixás, as festas de Cosme e Damião, da Oxum Nossa Senhora da Conceição, Tia
Ciata comandava rodas de samba, nas quais demonstrava suas habilidades de
partideira. Avançada na idade, Tia Ciata dava preferência ao miudinho, um tipo
de samba sincopado que se dançava de pés colados, mãos nos quadris, rebolado e
passos curtos.
Então
a macumba principiou: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho
de Ogum, bexiguento e fadista de profissão. E foi lá que Macunaíma provou pela
primeira vez o cachiri temível cujo nome é cachaça.
O filho de Ogum, bexiguento e fadista
não é outro senão o próprio Pixinguinha, em carne e osso, que foi um das muitas
fontes que forneceu a Mário de Andrade os dados necessários para compor o
capítulo. A correspondência de MA com os cariocas comprovam que a todos eles
sempre dava um jeito de perguntar algo sobre a matéria.
No entanto, corre na internet a seguinte
história:
“O escritor Mário de Andrade procurou
Pixinguinha, em 1926, explicando que estava recolhendo material para um livro,
‘Macunaíma, o herói sem nenhum caráter’, que pretendia publicar. Pediu um
depoimento a Pixinguinha, que relatou em detalhes as rituais do candomblé da
Tia Ciata, célebre pelas famosas sessões onde eram cultuados orixás africanos.
Em retribuição, procurando homenageá-lo, Mário fez de Pixinguinha um de seus
personagens na obra, inserido na famosa cena de macumba descrita no livro pelo
autor paulista. Pixinguinha figura como "um negrão filho de Ogum,
bexiguento e fadista de profissão”.
Em toda história tem um pouco de
folclore, nesta não será diferente. Isso porque, salvo prova em contrário, se
existem indícios da criação de Macunaíma nessa época (1926), não seria com
tanta definição assim. O próprio Mário de Andrade fez questão de dizer que
escreveu o livro em 1927, de supetão, na semana de férias que tirou no sitio do
tio dele, no interior de São Paulo, após a viagem ao Amazonas. O livro saiu em
1928.
Ademais, Macunaíma foi um trabalho muito
discutido com seus correspondentes, notadamente Manuel Bandeira, que ousou
desclassificar Macunaíma da condição de romance,
por não satisfazer algumas exigências estéticas. Resultado dessa discussão,
Macunaíma saiu na primeira edição como Rapsódia e não como Romance. Também o
título do romance foi motivo de comentário entre os amigos. Manuel Bandeira
tratava a expressão “caráter” com o sentido moral e ético, enquanto Mário de
Andrade traduzia nela o sentimento antropológico: o brasileiro, devido à
mestiçagem física e cultural, ainda não tinha características de povo, raça.
Por outro lado, a mãe-de-santo mais
afamada da época, Tia Ciata, havia falecido em 1924.
A macumba era frequentada por todo tipo:
gente direita, gente pobre, advogados,
garçons, pedreiros meia colheres, deputados, gatunos, marinheiros, marceneiros,
ricaços, portugas, senadores.
Alcançado o intento de se vingar do
gigante Piaimã, que tia Ciata realizou dando-lhe uma sova monumental, algumas
muitas chifradas de touro selvagem e ferroadas de quarenta mil
formigas-de-fogo. – o que de fato ocorreu – tudo termina em samba.
Mario de Andrade aproveita a ocasião e
faz uma bela homenagem aos amigos:
Então
tudo acabou fazendo a vida real. E os macumbeiros Macunaíma [ele, Mário de Andrade, o próprio], Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise
Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros
saíram na madrugada.
No capítulo seguinte (VIII - Vei a Sol),
Macunaíma ainda está no Rio de Janeiro. Mas é o outro Rio que aparece, a baía
de Guanabara, a Praça Mauá, a Avenida Rio Branco. Macunaíma estava com fome e
fez uma trapaça com a árvore Volomã, fazendo com que caíssem dela os frutos
mais saborosos.
Volomã
ficou com ódio. Pegou o herói pelos pés e atirou-o pra além da baía de
Guanabara, numa ilhota deserta, habitada antigamente pela ninfa Alamoa que veio
com os holandeses.
O retrato da Baía de Guanabara,
pontilhada de centenas de ilhotas desertas, pedregosas, com pouca ou nenhuma
vegetação, sem água e sem condições de serem habitadas, se fixou em Mário de
Andrade. O herói Macunaíma penou na ilhota deserta sujo de coco de urubu, até
que um dia Vei, a Sol tomou Macunaíma na jangada e fez as três filhas limparem
o herói.
E
Macunaíma ficou alinhado outra vez.
A jangada vai flutuando pela baía de
Guanabara, enquanto Macunaíma dorme. Quando a embarcação topou na margem,
Macunaíma acordou.
Lá
no longe se percebia mais que tudo um arranhacéu cor-de-rosa. A jangada estava
abicada na caiçara da maloca sublime do Rio de Janeiro.
Este “arranhacéu cor-de-rosa” não é
outro senão o Edifício A Noite, recém-terminado, que aparecia imponente,
moderno e belo a todos aqueles que chegavam ao Rio de Janeiro, aportando no
principal atracadouro na Praça Mauá. A paisagem vista do cais também é
fotografada pelo romancista:
Ali
mesmo na beira d’água tinha um cerradão comprido cheinho da árvore pau-brasil e
com palácios nos dois lados. E o cerradão era a Avenida Rio Branco.
Os pés de pau-brasil ornamentavam a
então Avenida Central desde a época da sua fundação em 1905. Tempos depois o
pau-brasil foi substituído e até hoje a Avenida Rio Branco é arborizada com
oitizeiros.
Safado como era Macunaíma se viu no
Paraíso:
Pulou
da jangada no sufragante, foi fazer continência diante da imagem de Santo
Antonio que era capitão de regimento e depois deu em cima de todas as cunhãs
por aí.
E depois de muitas estripulias, enfarado
da maloca sublime:
Macunaíma
não achou mais graça da capital da República. Trocou a pedra Vató por um
retrato no jornal e voltou pra taba do igarapé Tietê.
Isso tudo se torna profético, porque
anos depois, em 1938, Macunaíma retornaria ao Rio de Janeiro, em circunstâncias
totalmente diversas e adversas. E do mesmo modo repentino resolveu retornar pra taba do igarapé Tietê.
Esse é o mote para “A segunda visita de
Macunaíma ao Rio de Janeiro”, que virá antes de Miguel de Cervantes escrever a
2ª parte do seu Dom Quixote – a não ser que outro Avellaneda mais afoito me
tome à dianteira.
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