A Ogiva sombria
Sem dúvida, no tempo da mais bela flor
da arquitetura gótica, quando foi construída a catedral de Colônia, ligava-se
uma grande importância a estes números simbólicos, porque a concepção ainda
confusa das ideias racionais, contenta-se facilmente com estes sinais
exteriores.
Hegel (Estética)
A
Catedral! a criação suprema da Idade média, em que a arte, pelo sentimento,
numa estrofe de pedra, sabe concentrar o espírito radiante do cristianismo,
pela força audaciosa do símbolo! Ela representa a aspiração incessante da alma
que se eleva para o céu; é ela como a Esposa dos Cantares, que espera em silêncio a visita do Amado, e se veste das
suas galas e realça de encantos. A curva suave da Ogiva imita uns párpados lânguidos, uma pupila sonhadora, enleada
naquele êxtase sensual do amor divino, que Teresa de Jesus sentia nos seus
delírios místicos; as flechas
atrevidas, atiradas para os ares, a linha a infinitivas se, a perder-se no
espaço, as agulhas bordadas,
rendilhadas, são os cabelos dispersos, flutuantes da donzelinha, que se assenta
cansada de errar pelas brenhas e em volta da cabana dos pastores à busca do
amado. A cúpula altiva, representando
aquele momento em que a alma se desprende dos limos terrenos e se absorve toda
na mística unitiva, é o colo, que o poeta dos Cantares comparava à torre de marfim que olha para o ocidente, e
cuja majestade é semelhante à da lua que se alevanta. Miguel Ângelo chama também
a uma igreja, nas efusões do seu panteísmo artístico, a mia sposa.
Cada
monumento antigo é como uma cara veneranda, enrugada pelos séculos, animada por
uma expressão profunda. Essa expressão é a linguagem dos Evos, criada pelo espírito
que não pode contemplar um fato, acreditar na sua existência independentemente
de uma ideia, de uma razão de ser que procura achar nele. É a fatalidade do
enigma da esfinge. As Catedrais góticas reúnem quase sempre a lenda piedosa com
a lenda grotesca e diabólica; elas são como a incerteza da alma que paira
duvidosa entre a possessão e o êxtase. Umas vezes, são os anjos que vêm de
noite trazer de longe grandes blocos para a edificação da fábrica, que lavram a
pedra, que alevantam o mosteiro. É a inspiração do anônimo nas obras
grandiosas. Às vezes, é o diabo, que com a mira em dilatar o seu império faz
tudo, e transporta para a construção as melhores peças que rouba de outros
monumentos, como uma coluna do templo de Diana em Éfeso para o templo de São
Zenão em Verona. A alma do arquiteto está retratada na sua concepção; receando
das suas forças para realizar o ideal sublime dos sentimentos do cristianismo
nos monólitos de mármore para que cria uma forma, não teme evocar a potência
das trevas. Nas Ogivas escuras, soturnas das Catedrais góticas, nos arabescos
extravagantes das janelas esguias, nos monstros boquiabertos que servem de
goteiras, nos basiliscos informes dos pedestais, reflete-se esta aliança do
misticismo poético com o misticismo divino. Muitas vezes a Catedral tem o
mistério de um símbolo que se mobiliza para exprimir os sentimentos da
humanidade; com as invasões e descobrimentos marítimos ela toma a forma de um
navio voltado para o Oriente, donde lhe vem a luz; também imita uma cruz
estendida ao longo, como na nossa maravilha de arquitetura, a Batalha, o poema
da crença e do heroísmo de um século.
Estamos
em plena Idade média. A noite era caliginosa e tétrica; o coriscar frequente
dos relâmpagos, o ribombo estridente dos trovões repercutindo-se distante, e o
restrugir medonho da floresta, completavam as harmonias intraduzíveis da
tempestade. A alma, diante deste espetáculo estupendo da natureza, sentia uma
pressão que a fazia concentrar-se possuída do sentimento do infinito, a que os
homens que tudo indagam e submetem às fórmulas metafísicas chamam — o sublime.
Via-se
através da escuridade absoluta das horas mortas um clarão incerto, como de
alampada veladora. Seria algum discípulo de Flamel ou de Lulo absorvido pelos
mistérios da alquimia, submetendo a matéria, interrogando este Proteu eterno,
que, a cada pergunta ostenta uma forma diversa, e responde de mil modos
diferentes, sem que cheguem a surpreender-lhe o segredo da sua simplicidade?
Seria um monge solitário enlevado na paz ignota da vigília, procurando, no
silêncio da noite, elevar-se pelo coração até Deus? A luz jorrava da janela do
aposento humilde e sombrio. Dentro, sentia-se o respirar cansado de um peito
opresso; a alampada espalhava em torno uma penumbra em que flutuavam as
visagens caprichosas de uma mente tresvariada, e vinha refletir-se pálida,
descorada sobre o rosto macilento, em que os gestos davam uma expressão
incompreensível como os pensamentos que o agitam. Via-se naquele rosto impressa
a ansiedade dos que penetram pela intuição a verdade de um problema insolúvel,
e uma distração leve lha fez esquecer. Sobre uma mesa estavam pergaminhos
extensos, desenrolados, cobertos de linhas cabalísticas, com que se evocam os
espíritos noturnos, compassos e astrolábios, esferas e mapas.
Era
ali que morava mestre Gerardo, o arquiteto da Catedral de Colônia. Estava
contemplando o traçado da sua obra; a fisionomia animava-se-lhe de vez em
quando com uma luz, um resplendor vivo de transfiguração, como num êxtase em
que o ideal se deixava tocar, determinar numa forma só concebida pela mente do
homem. Os cabelos andavam-lhe revoltos, espalhados sobre a cara, como nas
convulsões de uma sibila quando entrevê o futuro, e sente o influxo vertiginoso
que lhe dita o vaticínio. Depois, uma sombra espessa, como de um desgosto
repentino, veio ofuscar-lhe a serenidade que se lhe espelhara na cara, em que
os anos redobravam a majestade. Nisto, levou a mão à cabeça, como para suster o
impulso de uma ideia que lhe ocorrera:
—
A arte! a arte! é ela que me vem descobrir estas linhas que eu fixo no mármore,
e que hão de ser a admiração dos séculos. Ela vem-me ensinar este segredo do
ornato, a variedade disposta de modo, que leva o espírito à unidade do
pensamento. A arte é uma religião que inspira também uma fé viva, ardente, intensa,
e dá forças para afrontar a dúvida, que cerca e punge o espírito criador. Um
dia duvidaram de mim; não imaginavam que eu pudesse levantar essa mole de
pedras, uma Catedral representando o voo místico da alma! Riram-se do plano da
minha obra! Eu tenho pensado dias e noites, como na virgem eleita dos sonhos da
mocidade. A Catedral! ela aparece-me na fantasia, iluminada por um sol
fulgurante, trasbordando de músicas e harmonias suaves, perfumada de incenso,
revestida de púrpura, recamada de ouro, como a noiva que se veste para entrar
no aposento do real esposo. Cada pedra que se vai dispondo, cada arco, cada
pilastra erguida, é a ponta de um véu que se alevanta e me deixa vê-la, sonhá-la,
idealizá-la sobre essa realidade incompleta. É como a terra que vai aparecendo
vagarosamente ao nauta cansado das tormentas, à medida que se esvaece o
nevoeiro da madrugada. A Catedral! a Catedral! eu sonho e estremeço diante
dela, quando a contemplo; sinto o delírio do artista grego apaixonado pela
carnalidade que ia descobrindo o seu escopro. Ela parece-me uma fada escondida,
e que a arte me descobre o segredo para quebrar-lhe o encantamento, e mostrá-la
excelsa, bela, radiante elevando-se para o alto numa ascensão divina. Eu queria
vê-la suspensa nos ares, servindo-lhe as nuvens e os cúmulos alvacentos de
pedestal! Agora já me não inspira terror o desdém dos meus inimigos: descobri a
última estrofe do poema da minha vida, hei de confundi-los, faze-los curvar-se
adorando-a: é o zimbório, a cúpula arrojada às alturas, semelhante ao voo
extático da alma até à absorção em Deus.
Havia
nestas palavras a vibração frenética do delírio; mestre Gerardo de Colônia
ficou silencioso como na prostração dos fortes impulsos que lhe dera a alegria.
Os olhos brilhavam umedecidos, cintilantes, exprimindo o regozijo íntimo da
contemplação da sua alma. E voltou a inclinar-se sobre a folha de pergaminho, a
recompor na mente as linhas que ali traçara num momento de inspiração. Depois,
acometido por um novo acesso de entusiasmo, arremessou de si o traçado; os
olhos flamejaram coruscantes, parecia que estava doido:
—
Eu quero mostrar assim, que essas Confrarias dos obreiros construtores de
Strasbourg, de Viena, de Zurique e Magdeburg não podem disputar a proeminência
a Colônia. Todos os obreiros e artífices da Baixa-Alemanha hão de reconhecer em
mim a supremacia do chefe. Que importa que Strasbourg queira ser a sede da
grande mestria? De que vale a homenagem prestada pelas confraternidades maçônicas
da Alta-Alemanha, de uma parte de França, da Hesse, da Suábia, de Thuringe, da
Francônia e da Baviera? O zimbório da Catedral há de erguer-se bem alto para a
admiração de todos.
E
calou-se de repente, como envergonhando-se diante de si mesmo, de se haver
deixado possuir daquela vaidade. Depois continuou com dor:
—
Quantos monumentos estupendos, quantos obeliscos gigantes, que assombram as
idades, e que mostram o poder criador do homem, competindo com as criações de
Deus, quantas maravilhas espalhadas pela superfície da terra, e que o arquiteto
não quis que se soubesse o seu nome, com uma abnegação sublime da glória do
mundo! Eu que ainda não completei a minha obra, que a tenho aqui na cabeça, nem
sei mesmo se chegarei a realizar este sonho, se terei a força de Atlante para
suster nos ares a cúpula audaciosa, eu, mesquinho, ufano-me, ensoberbeço-me! O
gênio não tem consciência de si, não conhece o poder mágico de que dispõe, por
isso não se enfatua. O que é a glória do mundo perante a glória celeste! Ilusão
que nunca chega a ter um momento só de realidade; é uma nuvem tenuíssima que
tolda o azul diáfano do empíreo. Para a alma do que preliba os encantos do céu,
a glória do mundo é uma tentação dolorosa, um martírio incessante; porque então
para ela a vida é como a luz vivida da alampada, que se consome no silêncio da
noite diante da imagem veneranda; assim, a alma procura envolver-se no olvido,
no esquecimento de si para resplandecer mais pura.
Os
legendários estão cheios destas lutas violentas com os sentimentos mais
profundos do coração do homem. Um dia Rubens estremeceu atônito diante de um
quadro escondido na penumbra de um coro numa igreja espanhola; o quadro era um
mistério quase impossível de ser traduzido, divulgado pelas cores sobre a tela.
Era a morte do justo. A mórbida expressão do rosto macilento, uma auréola
divina difundindo-se em roda, a alma ansiosa pelo jubilo do céu a exalar-se
docemente, como o último raio do sol da tarde, e por sobre a cabeça os anjos
debruçando-se das alturas a contemplarem o monge na hora do passamento! Era uma
transfiguração sublime, a ideia mais bela, a que resume todo o cristianismo,
revelada pela arte. Quando o grande pintor voltou a si daquele êxtase
imprevisto, sentiu-se pequeno ao pé de uma criação tão perfeita. Perguntou ao
monge que o conduzia, que pincel realizara tamanha obra, para confessar-se seu
discípulo, e proclamá-lo à admiração do mundo. O monge sentiu um estremecimento
convulsivo, e respondeu-lhe apenas: — “Não é já do mundo!” e quando ele voltou
à sua cela, juntou os pinceis, a palheta e lançou-os na corrente de um ribeiro
que deslizava manso à falda da janela; e para esconder as lágrimas que ainda
uma vez lhe escaldaram as faces retintas na palidez da penitência, foi procurar
conforto na oração fervorosa. Como não teria também esta energia para lutar
consigo aquele que escreveu na mudez da cela um livro de resignação e conforto,
a Imitação de Cristo, e que abnegou
dessa glória para não torná-lo uma mentira!
Mestre
Gerardo de Colônia ficara absorvido numa meditação profunda. A tempestade
continuava solene e grandiosa na mudez da noite. Sentiu um leve rumor no
aposento, que a contenção de espírito em que estava mal deixou perceber.
Prestou ouvidos. Batiam à porta.
—
Quem será? assim tão fora de horas! — e correu os ferrolhos. Entrou uma figura
alta, embuçada num gabinardo longo, o rosto assombreado pelas abas de um largo
chapeirão. — Quem sois? — inquiriu o arquiteto, preocupado ainda na sua
abstração.
—
Sou um irmão da Confraria dos obreiros construtores de Strasbourg; — disse o
desconhecido com uma voz cava.
—
Entrai.
Sentaram-se,
contemplando-se um instante silenciosos.
—
A que vindes?
—
O que me traz? — redarguiu o desconhecido com um tom de ironia acerba, — deves
sabe-lo melhor do que ninguém. Confias no zimbório da Catedral de Colônia, para
quereres assim submeter à tua supremacia a mestria central de Strasbourg. É
impossível e quimérica essa tua loucura. As grandes lojas querem todas a
independência. Demais o zimbório, a obra que é o teu orgulho, não está pronta e
talvez nunca a possas levar ao cabo.
Mestre
Gerardo ficou espantado, hirto de raiva diante da audácia do desconhecido.
Depois, volveu-lhe com uma severidade que lhe abafava a voz:
—
Ainda sou arquiteto! e o zimbório há de ser o primeiro a saudar no alto os
alvores do sol quando se alevanta. Juro pela minha alma.
—
Aposto em como te enganas!
—
Aposto em como te hei de confundir, e a todas as mestrias rebeldes da Alemanha!
— insistiu o arquiteto.
—
Pois bem! Eu comecei há dias a obra do Aqueduto de Treves, e espero ainda vê-lo
acabado antes de teres pronta a Catedral. Se assim não for, no dia em que deres
por acabada a tua obra, despenho-me do Aqueduto. Tu precipitas-te também dos
coruchéus da Catedral se eu vier reclamar primeiro? Aceitas a aposta?
—
Aceito.
—
Juras?
—
Juro.
A
este instante ouviu-se longe o canto do galo. O interlocutor misterioso
desapareceu subitamente às primeiras notas do núncio da alvorada. Foi então que
o arquiteto reconheceu o — diabo; não quis acreditar na realidade daquele
pesadelo. O canto do galo é celebrado nos hinos da igreja, principalmente nos
de Santo Ambrósio. Galo canente vigilemus
omnes. Ele simboliza a voz interior que desperta a alma do sono da
tentação; foi o canto do galo que despertou também a Pedro no átrio do
Pretório, quando renegou o Mestre. No misticismo poético ele representa uma
parte importante. A imaginação exaltada pelos sonhos da noite não podia deixar
de revesti-lo de mistério. Já a Grécia lhe tinha formado o mito: é o castigo de
Alectrião. A sombra que reclama de Hamlet uma vingança, o coro das feiticeiras
de Macbeth, desaparecem com a magia desse canto.
Um
dia o arquiteto subira à Catedral; estava prestes a terminar-se a cúpula. A
alegria alucinava-o. Apareceu-lhe então uma cabeça disforme, rindo,
confrangendo-se em esgares satânicos por entre as sombras profundas de uma
ogiva. Disse-lhe que estava pronto o Aqueduto de Treves. Mestre Gerardo
empalideceu e voltou o rosto à pressa! Aquela nova enterrava-o. Baixou os olhos
como para suspender uma vertigem instantânea, fatalmente o relance mediu a
altura da Catedral; o ângulo visual dilatou-se de modo que lhe produziu a atração
do abismo. Resistiu debalde, vacilou um instante e despenhou-se por fim. Disseram
que fora a alegria explosiva de ver a sua obra, que lhe causara o desvario que
o precipitou.
Assim conseguiu estabelecer o seu predomínio a Mestria central de Strasbourg.
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