A lanterninha de Pirandello
“O falecido
Matias Pascal”
(Livraria Martins Editora - s/d)
(Livraria Martins Editora - s/d)
No seu romance mais famoso “O falecido Matias Pascal”,
Luigi Pirandello introduz um personagem desses que se encontra todo dia: o
filósofo da vida. Hospedeiro de Pascal (já incorporando Sr. Meis), Anselmo
Paleari, para distraí-lo enquanto convalesce da operação que consertaria o olho
desviado por má formação, arrancha-se ao lado da cama do doente, que – indefeso
– é obrigado a participar das ideias filosóficas. O capítulo que registra o
tema é “Quarenta dias no escuro” e começa com a lamentação de Pascal-Meis sobre
o período em que teve de permanecer nas trevas.
“Coroada de êxito, oh!, coroada de grande êxito, a
operação. Nesse entrementes, sim, no escuro, durante quarenta dias, no meu
quarto.”
Antes da invasão do filósofo Anselmo Paleari, porém, é
o personagem que monta o seu próprio pensamento: “Pude verificar que o homem,
quando sofre, forma uma ideia particular, sua própria, do bem e do mal, isto é,
do bem que os outros deveriam fazer, para ele e que ele reclama, como se, de
seus sofrimentos, derivasse o direito à compensação; e do mal que ele pode fazer
aos outros, como se, igualmente, através dos seus sofrimentos, se habilitasse a
isso. Se os outros não lhe fazem o bem, quase que por dever, ele os acusa; e,
de todo mal que ele faz, quase por direito, facilmente se desculpa.”
Sem mais nem menos, “Depois de alguns dias daquela
prisão cega, o desejo, a necessidade, de ser confortado de algum modo,
cresceram até à exasperação. Eu bem sabia que me encontrava numa casa estranha,
e que, por isto, até devia agradecer os meus hospedeiros, pelos cuidados
delicadíssimos que tinham para comigo. Entretanto, aqueles cuidados já não me
bastavam mais, ao contrário, até me irritavam, como se fossem proporcionados
por despeito. Sem dúvida!”
E a tábua de salvação para tanto estresse chegou logo:
“Para me consolar, o Sr. Anselmo Paleari desejou demonstrar-me, através de um
longo raciocínio, que a escuridão era imaginária.
– Imaginária? Esta escuridão? – gritei-lhe eu.
– Tenha paciência. Vou explicar.
E desenvolveu uma sua concepção filosófica,
especiosíssima, que provavelmente se poderia denominar lanterninhosofia.
De quando em quando, o bondoso homem interrompia-se,
para me perguntar:
– Está dormindo, Sr. Meis?
E eu via-me tentado a responder-lhe: – Sim, muito
obrigado. Estou dormindo Sr. Anselmo.
Visto, porém, que a intenção dele, no fundo, era boa,
pois trata de me fazer companhia, eu respondia-lhe que, ao contrário, aquilo me
interessava muitíssimo; e pedia-lhe para que prosseguisse.
Mas na verdade Pascal-Meis se preparava para uma
maratona pseudo-filosófica, que, se não fizesse bem, mal mesmo é que não
faria...
“E o Sr. Anselmo, prosseguindo, demonstrava-me que,
para nossa desgraça, nós não somos como a árvore que vive e não sente, e à qual
a terra, o sol, o ar, a chuva, o vento, não se afiguram que sejam algo que ela
não é: coisas ou amigas, ou nocivas. A nós, os humanos, ao contrário, coube, ao
nascermos, um triste privilégio: o de sentir que vivemos, com a
grande ilusão que daí resulta: isto é, com a ilusão de que devemos admitir,
como uma realidade fora de nós, este nosso sentimento interior da vida –
sentimento que é mutável e variável, de acordo com os tempos, os casos e a
sorte.”
E finalmente, surge a persona filosófica que faltava:
“E este sentimento da vida, para o Sr. Anselmo, era, precisamente, como uma
lanterninha que cada um de nós traz consigo, acesa. uma lanterninha que nos faz
ver a nós mesmos como seres perdidos à face da terra, fazendo-nos ver,
igualmente, o mal e o bem. uma lanterninha que projeta, ao nosso redor, um
círculo mais ou menos amplo de luz, além do qual existe a sombra negra, a
sombra apavorante que não existiria se a lanterninha não estivesse acesa em
nós, mas que nós vemos obrigados, infelizmente, a considerar verdadeira,
enquanto ela se conserva viva, acesa em nós. Quando, por fim, a lanterninha se
extingue, a um sopro, o que nos acolhe é a noite perpétua, depois do dia famoso
da nossa ilusão. ou será que ficamos, ao contrário, à mercê do Ser, que então
terá apenas desfeito as formas vãs da nossa razão?”
No entanto, o Sr. Anselmo, não querendo piorar ou
atrasar a convalescência e a pronta recuperação do olho enfermo, prometeu “não
entrar muito profundamente na Filosofia” – antes – “Vamos procurar, ao invés,
acompanhar, por entretenimento, os vaga-lumes perdidos, que seriam as nossas
lanterninhas, na escuridão do destino humano.”
E continuando: “Eu diria, antes de mais nada, que elas
se apresentam de muitas cores. que é que o Sr. diz a isto? De acordo com o
vidro que nos proporciona a ilusão, grande mercadora, grande vendedora de
vidros coloridos. A mim, afigura-se-me, porém, Sr. Meis, que, em determinadas
idades da História, como em certas fases da vida individual, bem que se poderia
determinar o predomínio de uma dada cor, não é mesmo? Em todas as idades, com
efeito, costuma-se estabelecer, entre os homens, uma certa harmonia de
sentimentos, que dá luz e cor aquelas enormes lanternas que são os termos
abstratos: Verdade, Virtude, Beleza, Honra, sei lá o que mais!...
A ideia das lanternas associadas às cores fascina o
“filósofo” Anselmo: “E não lhe parece que deve ter sido vermelho, por exemplo,
a lanterninha da Virtude pagã? De cor violeta, cor depressiva, o da Virtude
cristã. A luz de uma ideia comum é alimentada pelo sentimento coletivo. se,
entretanto, este sentimento se cinde, continua, por certo, de pé, a lanterna do
termo abstrato; mas a labareda da ideia crepita, fagulha e soluça, dentro dela,
como sói acontecer em todos os períodos que são considerados de transição.
Ademais, não são raras algumas lufadas violentas, que apagam, de súbito, todos
aqueles lanternões. Que prazer! Na escuridão subitânea, então, torna-se
indescritível a barafunda das lanterninhas singularmente consideradas. há as
que vão para aqui, há as que vão para acolá; há as que vão para trás, e há as
que dão voltas; nenhuma delas encontra mais o caminho: todas se abalroam. elas
se reúnem, por um momento, em grupos de dez, de vinte; mas não podem entrar em
acordo; voltam, pois, a dispersar-se em grande confusão, numa fúria angustiosa:
como as formigas, quando elas deixam de encontrar a entrada do formigueiro,
obstruída, por brincadeira, por um momento cruel.”
E o fantástico paralelismo chega ao momento em que
ambos se encontram: “Parece-me, Sr. Meis, que nos encontramos, agora, num de
tais momentos. Grande escuridão e grande confusão! Apagados todos os
lanternões. A quem é que devemos dirigir-nos? Devemos ir para trás, talvez?
Recorrer às lanterninhas supérstites, àquelas que os grandes mortos deixaram
acesas em cima dos seus túmulos? Lembro-me de uma bela poesia de Niccoló Tommaseo:
La piccola
mia lampa
Non, come
sol, risplende,
Né, como
incendio, fuma.
Non stride e non consuma,
Ma con la
cima tende
Al ciel che
me la diè.
Stará su me,
sepolto,
Viva. né
pioggia o vento,
Né in lei età
potranno.
E quei che
passeranno
Erranti, a
lume spento,
Lo accenderan
da me.
Minha pequena
lâmpada
Como o sol,
não esplende,
Nem, como
incêndio, esfuma
Não cega e
não se consuma,
Mas sua
labareda pende
Para o céu
que a mantinha.
Viverá sobre
mim, sepulta.
Nem a chuva,
nem o vento,
Nada a abala,
agora e antes,
E os que
passam errantes,
Sem fulgor no
firmamento
Acendem a
chama na minha.
“Mas como poderá ser isso, Sr. Meis, se, à nossa lâmpada, falta o óleo sagrado, que alimentava a do Poeta? Muita gente ainda vai à igreja, para prover, do alimento necessário, as suas lanterninhas. Compõem essa gente, em sua maior parte, de pobres velhos, de pobres mulheres, aos quais a vinda mentiu, e os quais vão para a frente, na escuridão da existência, com aquele seu sentimento aceso como se fora uma lâmpada votiva. toda essa gente protege, com fervoroso cuidado, a sua lâmpada, contra os efeitos do sopro gélido dos últimos desenganos, para que ela continue acesa, pelo menos, até lá, até à orla fatal, para onde se apressam, mantendo os olhos fitos na labareda, e pensando continuamente: Deus me vê! E assim essa gente procede para não ouvir os clamores da vida ao redor, que ressoam aos seus ouvidos como igual número de blasfêmias. – Deus me vê... porque é aquela gente que O vê, não apenas em si, mas também em tudo o mais – até mesmo na sua miséria, nos seus sofrimentos, para os quais haverá um prêmio, afinal. A luz fraca, mas plácida, destas lanterninhas, desperta, sem dúvida, alguma inveja em muitos de nós. e a muitos outros, ao contrário – que se julgam armados, como se fossem numerosos Júpiteres, do raio dominado pela ciência, e que, em lugar daquelas lanterninhas, levam em triunfo as lâmpadas elétricas – inspira apenas uma desdenhosa comiseração.”
E a lanternihosofia cresce como objeto de
orgulho para quem o cotidiano é uma grande festa: “Mas eu agora pergunto, Sr.
Meis: E se toda esta escuridão, todo este mistério enorme, em torno do qual os
filósofos primeiro especularam, e que, agora, mesmo renunciando à sua
investigação, a ciência não exclui, não passar, nu fundo, de um engano como
qualquer outro? De um engano da nossa mente, de uma fantasia que não se colore?
Se nós, finalmente, nos persuadíssemos de que todo esse mistério não existe
fora de nós mesmos, mas tão somente dentro de nós, e, necessariamente, devido
ao famoso privilégio do sentimento que nós temos da vida, isto é, da
lanterninha, de que até agora venho falando? Se a morte, em suma, que nos causa
tanto medo, não existir, e for tão-somente, não a extinção da vida, e sim o
sopro que apaga dentro de nós esta lanterninha, o desventurado sentimento que
nós temos dela – sentimento penoso, assustador, porque limitado, definido por
este círculo de sombra fictícia, além do breve âmbito da luz escassa, que nós,
pobres vaga-lumes, perdidos, projetamos ao nosso redor, e no qual a nossa vida
permanece como que encarcerada, como se fosse excluída, por algum tempo, da
vida universal, eterna, em que nos parece que deveremos reentrar um dia, ao
passo que já nos encontramos nela, e nela sempre nos conservaremos, mas sem
mais este sentimento de exílio, que nos angustia? O limite é ilusório. é
relativo à pouca luz nossa, da nossa individualidade. na realidade da Natureza,
não existe.”
Por fim, a lanternihosofia do Sr. Anselmo
não se mostra pior do que tantas outras teorias carnais ou espirituais que
rondam nossa terrena existência. Isso avaliza o diálogo do mestre Pirandello
que, em muitas outras criações, seguiu o roteiro humanista que escolheu para
ser a lanterna de sua obra. Assim prossegue o Sr. Anselmo: “Nós – não sei se
isto poderá causar-lhe prazer – nós sempre vivemos, e sempre viveremos, com o
universo. mesmo agora, nesta nossa forma, nós participamos de todas as
manifestações do universo; mas não o sabemos, não o vemos, porque,
infelizmente, este maldito lumezinho choramingão nos permite ver apenas o pouco
até ao qual chega o seu minguado clarão. Se, pelo menos, nos fizesse ver isso
como isso é, na realidade! Mas, não senhor: esse lumezinho o colore a seu modo.
faz-nos ver algumas coisas que nós devemos, na verdade, lamentar, por Deus!,
porquanto, numa outra forma de existência, talvez não tenhamos mais boca para
rir a bandeiras despregadas, a propósito delas. Rir, Sr. Meis, de todas as
aflições, vãs e estúpidas, que esse lumezinho nos tiver proporcionado, de todas
as sombras, de todos os fantasmas ambiciosos e estranhos que houver feito
aparecer adiante e ao redor de nós, em consequência do medo que nos provocou!”
Mas quando o Sr. Anselmo Paleari pretende acender na
cabeça do Sr. Meis uma outra lanterna para as suas experiências espíritas,
encontra sérias objeções: “Não era já demais a lanterninha que lá existia?”
O tema retorna em círculos, como a visa em muitas
vezes é círculo. Queremos que a chamada luz da existência pode servir para nos
fazer ver a vida própria. Para nos fazer ver além desta vida, ela não serve de
modo algum. É ilusória. Não serve para iluminar o descobrimento de outras leis,
outras forças, outras vidas na Natureza. Não serve para forçar e ampliar a
compreensão que os sentidos, em si mesmos limitados, nos dão de todas as
coisas.
E desta vez é o próprio Pirandello que mete o bedelho
para encerrar essa discussão sem fim:
“O Sr. Anselmo, entretanto, sentia-se mais do que
convencido e não tinha necessidade, de forma alguma, daquelas experiências,
para reforçar a própria fé. Como homem de bem, que era, indiscutivelmente, não
conseguia supor que o fossem enganar com outro fim em mente. Quanto à
mesquinhez aflitiva e pueril dos resultados, a Teosofia encarregava-se de lhe
dar uma explicação plausibilíssima. Os seres superiores do Plano Mental, ou de
mais para cima, não podiam descer, para se comunicar conosco por meio de um
médium: era preciso, pois, que nos contentássemos com as manifestações
grosseiras de almas de trespassados inferiores, do Plano Astral, ou seja, do
plano mais próximo do nosso. Aí está.
E quem é que estava em condições de dize-lhe que não
era assim?
“Fé – escrevia o Mestre Alberto Fiorentino – é
substância de coisas que se esperam; constitui argumento e prova de coisas não
aparecíveis”.
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