A Iara
Lenda amazônica (versão de
Manaus)
Jaguarari, o filho
do tuxaua dos manaus, era belo como as frescas manhãs de sol nas águas do Grande
Rio. Tinha a força e a destreza do puma auri-negro que domina a matéria brava,
mas muito o excedia na audácia em perseguir a caça e afrontar o inimigo.
Quando ele vogava
na sua igara, deslizando sobre as águas silenciosas, que a proa, como a asa de
um pássaro, apenas frisava, as garças ariscas por vê-lo, não fugiam da beira do
rio, e os jacamins mesureiros vinham saudá-lo roçando os peitos no chão.
Nas grandes festas
com que as tabas dos manaus, reunidas ao rufar do trocano, celebravam a
admissão dos mancebos à fila dos guerreiros, nenhum moço igualou Jaguarari na
altivez do porte, nem na agudez da vista, nem na firmeza do braço.
Arremessada do
rijo arco a sua flecha certeira cortava a carreira do caititu ou o pulo do
maracaiá, e a uamiri da sua zarabatana abatia no voo o gavião carniceiro.
Os velhos o
queriam, amavam-no as moças, admiravam-no os guerreiros e nos seus cantos o
nome de Jaguarari soava como o daquele que um dia, decerto bem longe ainda,
iria gozar o supremo bem nas Montanhas Azuis, a sonhada mansão dos bravos.
Quando ao
florescer da frondosa mamaurana, a sua igara passava junto do barranco do rio,
embaixo da verde ramagem debruçada sobre a corrente, as brisas folionas
sacudiam os galhos e derramavam nos negros cabelos do filho do tuxaua uma chuva
de flores.
Nas tardes
purpúreas, quantas vezes a sua canoa, ruborescida pelo poente e tauxiada de
sombras esguias de árvores marginais, não subia em demanda da ponta do Tarumã,
onde se quedava, solitário e silente, até ao meio da noite!
— Que pescaria é
esta, filho, que se prolonga com as sombras, à hora em que só Anhangá se
deleita em correr as terras e as águas? Não ouviste alguma vez a sua voz
temerosa trazida pelo vento gemedor? Meu filho, meu filhinho! Anhangá espalha
pelo capim rasteiro e pelas folhas dos arbustos as sementes das dores que
matam!
Assim falava a
pobre mãe tapuia quando via o filho entrar na habitação paterna a horas mortas,
vindo dos lados do rio, e ficar insone, noite a dentro, com as pernas pendentes
da rede selvagem, os cotovelos fincados nos joelhos e os olhos fundos e tristes
a olharem, a olharem pungentemente para fora, para o rio, para a noite, para o
seio negro da escuridão!
Às enternecidas
palavras de sua mãe, Jaguarari respondia apenas com um olhar, o olhar daqueles
olhos tristes e fundos, onde se sentiria a crispação de vertigem das
profundezas.
— Filho, não foi
de muito tempo: faz pouco ainda e a alegria esvoaçava à flor de teus olhos como as marrequinhas à tona da lagoa. Por que
fugiu? por que foi ela fazer tão longe de ti e de mim o seu ninho?
— Mãe! — murmurava
ele apenas, fazendo um vago gesto.
E o seu corpo, que
tinha o frescor e a seiva do talo da palmeira, murchava, murchava sempre; o
cupim roaz picava-lhe o coração.
Ele acompanha
ainda o tuxaua nas expedições de caça e o seu braço não treme ao rugido do
canguçu. Mas, ao cair da tarde, evita os jovens guerreiros que armam laços para
prenderem as aves silvestres e foge dos grupos que vagueiam pelas coroas do rio
atirando redes de pesca.
Sozinho, salta na
leve igara e voa até a ponta do Tarumã, onde os companheiros o vêm de longe,
com os olhos fitos no espelho das águas, solitário e tristonho como o
meditativo maguari.
Um dia, cheia de
apreensões funestas, sua mãe exclamou: — Filho, os juruparis perversos
envenenaram o ar que respiras. Acauã vem agora cantar à nossa porta. Teu pai
quer fazer longe daqui nova taba para nossa gente. Só assim a ave da alegria
voltará a esvoaçar em teus olhos...
Depois de profundo
silêncio, Jaguarari suspirou:
— Mãe, eu a vi! Eu
a vi, mãe, boiando em flor como os nenúfares nas águas do igarapé. É linda como
a Lua nas noites mais claras. Eu a vi! Mãe! Seus cabelos têm a cor das flores
do pau d'arco e o brilho do sol; suas faces tiraram o rosado das penas da colhereira
e das flores da sapucaia. Os passarinhos que mais cantam não cantam como ela.
Mãe, ela é formosa como nenhum homem das tabas do Grande Rio jamais viu nem
verá. Ela cantava e à sua voz a própria cachoeira do Tarumã cessou de roncar e
parou, decerto por ouvi-la. Ela olhou para mim, ó mãe, e estendeu-me os braços.
Depois, repartiram-se as águas e ela desceu para sua casa, que foi esquecida lá
no fundo pelo céu, num tempo muito longe, quando o céu se entendia como embaixo
de nós a campina matizada de flores, antes de subir e de arquear sobre as
nossas cabeças a sua concha estrelada. Mãe, eu quero vê-la mais: eu quero ouvir
ainda o seu canto!
A tapuia
horrorizada clamou:
— Foge, foge
daquele lugar maldito! Nunca mais a tua igara demande a ponta do Tarumã. Foge
meu filho! Tu viste a “Iara!” O seu canto é a agonia! Foge Jaguarari! É a
“Iara!” de dentro de seus olhos verdes te espia a Morte!
E em soluços a
velha tapuia atirou-se por terra.
No dia seguinte, à
hora em que os torcazes aos casais passam alto, tendendo os ares em demanda do
pouso da noite, a igara de Jaguarari desusava célere nas águas do Rio Negro.
Os mancebos manaus
que o viram passar disseram:
— Lá vai Jaguarari
pescar tucunaré.
Mas, súbito, de um
grupo de mulheres que levavam ânforas de barro à beira do rio partiu um grito:
— Corre, gente!
corre, vem ver!
Acudiram os moços
e pararam atônitos, olhando a barra do horizonte incendiado pelo ocaso. A canoa
do filho do tuxaua, inundada de luz, fendia as águas com Jaguarari de pé,
abertos os braços, como uma grande ave selvagem prestes a desferir o voo. A
igara parecia marchar em direitura ao sol, a fim de precipitar-se no seu disco
abrasado. E ao lado do jovem guerreiro, enlaçando-o como a beijá-lo, surgia,
num halo de luz argêntea que se destacava no rubor do poente, um corpo alvo, de formas harmoniosas, coroado de longas madeixas de fios de ouro a esvoaçarem.
— A “Iara!” a
“Iara!” — conclamaram, em grito uníssono, os guerreiros e as moças dos manaus
correndo para o meio da taba.
E foi a derradeira
vez que viram o filho do tuxaua vogar nas águas escuras do rio.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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