A Flor da Tuberosa
Era uma flor como nunca vi outra. Não é que fosse maior, nem
mais nevada, nem mais perfumosa do que as suas congêneres. Mas é que, no
recorte das pétalas, no engaste dos sépalos atrofiados, e no próprio aroma,
havia alguma coisa de peculiar, de individual, que a distinguia, de todas, ao
primeiro lance de olhos.
Não pude bem explicar esse fenômeno, porém muitas vezes ele
me provocou longos cismares, demoradas cogitações. Pensei, muitas vezes, no
panteísmo e imaginei que podia bem ser aquela flor uma das válvulas poderosas
por onde a essência divina imanente no universo achava mais grato
manifestar-se. Mas se o panteísmo é um desvario religioso, podemos negar, em
absoluto, que a matéria seja animada de uma vida própria, que o hilozoísmo seja
a verdade primordial, mas intangível, a grandiosa realidade que se esconde eternamente
sob a enganosa aparência dos fatos que nos impedem de ver por traz deles a
força que os move? E, se for assim, porque se condensará maior e melhor porção
de vida na substância nervosa de nosso encéfalo do que nos tecidos delicados
duma flor?
Certa filosofia nos diz que não conhecemos das coisas senão
a feição pela qual elas nos afetam, aparências mudáveis, insubsistentes, a que
deve corresponder uma substância que nos escapa eternamente, embora a possamos
sentir palpitar sob as evolutas intermináveis das eternas metáboles do
universo. E antes que os ocidentais concebessem esse modo grandioso e profundo
de interpretar a natureza, já na índia ele se impunha à generalidade dos
espíritos pensantes, sob a denominação de Mahamaia, perpétua ilusão, fantasmagoria
irredutível que envolve e esconde a verdade inaccessível para nós, e que
somente as inteligências privilegiadas podem suspeitar. Neste pensamento
elevado e comovente se põem de acordo os sectários da religião bramânica e os
da religião budista.
E, se for assim, se esta for a verdade suprema de uma
concepção do mundo que se aproxima da realidade, que mistérios inesgotáveis e
intraduzíveis mesmo no gemer dos ventos, no cintilar dos astros, no colorido
das flores, na inconstância das nuvens que se esgarçam ou se condensam no
espaço por cima de nossas cabeças?
Tais pensamentos e muitos outros ainda agitavam-se em meu
espírito, tomavam voo, em tumulto, confundiam-se, desapareciam e depois
voltavam, como os pombos que esvoaçam em torno do pombal amigo, saindo com um
fragor de asas e voltando em seguida mais plácidos, para visitarem os ninhos
tépidos que lá ficaram.
Mas deixemos esses pensamentos e falemos da flor que os
suscitou.
Eu gostava muito de vê-la, com suas longas pétalas muito
alvas, pendida na haste esguia, numa curva tristíssima, como quem já perdeu as
esperanças e as ambições, sempre aljofrada de límpidas gotas de orvalho, que
tinham, no branco acetinado de sua corola, a profunda tristeza de uma lágrima
humana.
Nascera a planta na fenda de um rochedo escarpado, sem
vegetação, açoitado cruamente pelo sol. Aí, isolada como ela, também
desabrochara a flor, a única que jamais produzira, que lhe esgotara todas as
energias, — a branca flor que eu amara, a mimosa angélica.
Lambendo, como um cão humilde, o pé do alcantil, desusava um
tênue fio d'água cristalina e murmurosa que, aos raios do sol, tinha
cintilações metálicas, de um brilho áspero, vivíssimo.
E a meiga flor abandonada, no azedume da dor íntima que a
consumia, inclinava-se para a água, como si a dominasse um pensamento suicida.
Que fundo pesar ninaria a frágil existência daquela mísera e
bela flor? Como parecia sofredora! Por que exilada do jardim, ali viera
expandir a vida mesquinha?...
Eu a amava mais assim...
Transparecia-lhe do todo um íntimo desgosto e eu sentia que
a amava mais por vê-la infeliz.
Um dia desprendida do caule, caiu n'água a branca flor. Um
lampejo de alegria iluminou-a então... Ou talvez fosse um raio de sol que se
insinuara por entre suas pétalas. Mas é certo que elas se animaram num gozo de
vida mais alegre, e a flor desceu vagarosamente o curso do regato, boiando
venturosa à flor das águas.
Além, muito além, mimosa mão de moça a colheu.
“Vou viver feliz, dizia baixinho a flor, palpitando entre os
dedos rosados. Mais vale um momento aqui entre estes dedos cetinosos ou ao
calor do seio desta virgem tão bela do que uma vida inteira no isolamento
daquele duríssimo rochedo.”
A moça apanhou-a, mirou-a, aspirou-lhe o perfume, e, depois,
esmagou-a entre os dedos dizendo: “está murcha, é pena.” E seguiu seu caminho,
sem mais lembrar-se da mísera.
Dias depois eu fui visitar, como tinha por hábito, minha
velha amiga, a planta. Já amarelecendo as folhas, ia morrendo lentamente sem
poder soltar um queixume que eu entendesse. Deve ser dilacerantemente triste a
mágoa que se amordaça no silêncio...
Inclinada ainda sobre o pequeno arroio, olhando
insistentemente para o lugar onde caíra a flor, a única que jamais produzira,
que lhe esgotara todas as energias, parecia interrogar por ela, com a dor funda
e alucinante da mãe a quem morreu a filha.
Em torno, a natureza era muda e fria; e o regato descia
murmurando por entre as lajes, como a rir.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Imagem: Clóvis Beviláqua por Leopoldina Celli
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