A filha do Rei Mouro
Um rei mouro tinha duas
filhas. A mais nova queria aprender a religião e andava às escondidas com o
camarista, que a ensinava. A mais velha vendo-a uma vez sair do quarto do
camarista, disse-lhe:
— Deixa estar, mana, que o pai
há de saber tudo.
— Ai menina! disse o
camareiro, se o rei sabe que anda a aprender a rezar comigo, estamos perdidos.
— Não tenhas medo; alevanta-te
de madrugada, aparelha dois cavalos e vamos para a tua terra.
Assim fez; ela encheu três sacos,
um de cinza, outro de sal, e outro de carvão, e foram-se ambos por esse mundo fora.
Quando o rei soube da fugida, mandou a sua tropa para agarrarem o camarista e a
filha, e que os matassem onde quer que os encontrassem. A cavalaria correu a
toda a brida, e estava já quase a pilhá-los, quando o camarista, olhando para
traz, gritou:
— Ai menina, estamos perdidos.
— Não tenhas medo.
E a menina despejou o saco de
cinza e fez-se logo um nevoeiro tão cerrado, que a tropa não pôde dar mais um
passo, e voltaram para traz a dizer ao rei:
Armou-se tamanho nevoeiro,
Que não víamos caminho nem
carreiro.
O rei mandou-os avançar de
novo, e que lhe trouxessem a princesa e o camarista presos.
— Ai menina, estamos perdidos!
disse o camarista vendo a cavalaria quase a alcançá-los.
— Não tenhas medo.
E despejou o saco de sal, e
fez-se logo ali um grande mar, que os soldados não puderam atravessar. Voltaram
outra vez para traz e foram dizer ao rei:
Real senhor, achamos um grande
mar
Que os cavalos não puderam
passar.
O rei deu outra vez ordem de
ir agarrar a filha e o camarista:
— Ai menina, estamos perdidos.
— Não tenhas medo.
E despejou o saco do carvão, e
logo se fez uma noite muito escura, com grandes trovoadas e relâmpagos. As
tropas voltaram, e foram dizer ao rei:
Real senhor, fugimos em
debandada
Com tantos raios e tamanha
trovoada.
O camarista já estava perto da
sua terra, e a princesa disse-lhe:
— Eu salvei-te da morte; mas
agora em chegando à tua terra já te não lembras mais de mim.
Assim aconteceu. Ela com
tristeza vestiu-se de viúva, e pôs uma estalagem para poder viver. O camarista
convidou três amigos, e disse-lhes:
— Havemos ir cada um por sua
vez pernoitar àquela estalagem.
Foi o primeiro, e disse que
desejava ficar ali aquela noite. A estalajadeira disse que sim. Ele ficou muito
contente. Quando foi para o quarto, começou a despir-se e a vestir-se, a vestir-se e a despir-se e ficou nisto até de manhã, em que já estava muito cansado.
Assim que foi dia a estalajadeira, que tinha visto tudo do andar de cima,
disse-lhe que se pusesse no meio da rua, porque tinha estado a fazer zombaria
da sua casa. Veio o segundo, e também pediu para pernoitar; levou toda a noite
a despir e a vestir a camisa, sem poder parar. Pela manhã também foi posto fora
com igual descompostura. Veio o terceiro; pediu para pernoitar, e ela deu-lhe
licença. Quando se ia deitar, disse que tinha muita sede:
— Pois vá ao quintal, e tire água daquele poço.
Toda a noite o pobre do homem
esteve dando à nora, e só quando foi de dia é que apareceu a estalajadeira, que
o fez parar e o pôs fora, dizendo que tinha vindo fazer zombaria da sua casa.
Chegou o quarto amigo, e também pediu para pernoitar; ficou muito contente com
a licença, porque os outros guardaram sempre o segredo do que lhes acontecera.
Quando a estalajadeira estava deitada, disse:
— Ai que me esqueceu fechar a
porta da rua.
— Vou eu fechá-la.
E toda a noite o hóspede andou
para cá e para lá a fechar a porta da rua, até que pela manhã estava estafado,
e a estalajadeira o pôs fora, por lhe querer quebrar a porta.
Os quatro amigos reuniram-se e
contaram uns aos outros o sucedido. Mas ainda assim o camarista, que era um deles,
não se lembrava nem por nada da amante que abandonara com tanta ingratidão.
Como ele estivesse para casar na sua terra, segundo o costume, tinha de dar um
jantar três dias antes do casamento às pessoas com quem vizinhava. Foi também
convidar a estalajadeira viúva. Ela foi ao jantar. Quando estavam todos à mesa,
combinou-se que cada um contaria a sua história:
— A senhora, apesar de estar
com esse desgosto, há de também contar o seu conto.
A estalajadeira pediu que lhe
apresentassem duas tigelas. Bateu com uma na outra, e apareceram um pombo e uma
pomba. E disse a pomba:
— Não te lembras quando me
ensinavas a rezar às escondidas de meu pai?
Disse o pombo:
— Lembro-me.
— E não te lembras quando
minha irmã disse que ia contar tudo ao pai, e que disseste: Ai que estamos
perdidos?
E assim foi perguntando, e o
pombo respondendo a tudo o que se tinha passado com a filha do rei mouro. Só ao
fim de muitas perguntas é que os convidados começaram a reparar em circunstâncias
que se tinham dado com os quatro amigos, e o camarista conheceu a sua
ingratidão:
— Real senhora, eu é que sou
esse esquecido; e já desfaço aqui este casamento, para receber quem por mim
deixou pai e mãe e a sua terra.
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