A Estrela d’alva
(Conto Marítimo do Século XVI)
Nisto andava tudo, que se não poderiam
pôr os olhos em parte onde se não vissem rostos cobertos de tristes lágrimas, e
de uma amarelidão, e trespassamento de manifesta dor, e sobejo receio que a
chegada da morte causava, ouvindo-se também de quando em algumas palavras
lastimosas, sinal certo da lembrança, que ainda naquele derradeiro ponto não
faltava dos órfãos e pequenos filhos, das amadas e pobres mulheres, dos velhos
e saudosos pais que cá deixavam, etc.
(História
trágico-marítima, t. I, p. 55)
***
O
sol esmaltava as cores límpidas do horizonte com uns cambiantes de púrpura e de
azul, cujo cariz incompleto e vago reflete a melancolia suave em que a alma se
concentra nessa hora fugitiva da tarde. O horizonte fechava-se lentamente, como
o véu de um templo que se cerra. As virações travessas da noite volitavam
encrespando a face trémula das águas, que lhes respondiam às carícias
inquietas, confidenciando com um murmúrio sonoroso e confuso. O galeão soberbo
da Índia singrava ufano, buscando em proa a terra querida da pátria; levado nas
asas das monções propicias, a vela branca desfraldada aos ventos, tinha o garbo
da garça altaneira que se libra vaidosa por sobre as ondas, que ela vai roçando
de leve. A flâmula ondulante, hasteada no tope do mastro de mezena, serpeava
nos ares como em adeus silencioso às ribas odoríferas do Oriente, a despedida
ao país dos sonhos e das maravilhas. A natureza como que se absorvera nos
encantos desta hora; havia um segredo íntimo em cada toada perdida deste
concerto do declinar do dia.
Durante
muito tempo um mancebo encostado à amurada do navio, com os olhos fitos na
corrente das vagas, permanecera absorto num pensar incessante, como quem atava
na mente as aparências de um sonho mentido, como quem procurava alentar a última
esperança que prende à vida, e que é como a hera das ruínas. Conhecia-se-lhe na
respiração comprimida no peito, que ofegava de cansaço, o esforço acintoso com
que procurava afastar da lembrança um sentimento funesto.
A
palidez retinta nas faces cavadas pelas insônias longas e aflitivas, era a
expressão dos pensamentos tenebrosos, confusos, incoerentes, que vinham
povoar-lhe a ansiedade das vigílias. Quem o visse sentiria uma dor igual
aquela, uma vontade irresistível de entornar-lhe na sua alma o bálsamo das
consolações, com a prodigalidade do afeto com que a rapariga desenvolta de Magdala
vinha derramar aos pés do divino Mestre os perfumes inebriantes da sua urna de
alabastro.
Quem
o visse na mudez expressiva daquele desalento, no desamparo e soledade de todas
as alegrias da vida, sentia-se levado para ele, como por um condão fascinador,
que às vezes possuem certos olhares que ninguém pode fitar e de que se tem
medo. A brisa fresca da noite, que soprava do poente, como trazendo-lhe o
presságio do ocaso das suas esperanças, vinha volatilizar a lágrima tímida e
ingênua que tremeluzia viva na pupila cintilante.
A
este tempo apareceu sobre o convés do galeão alteroso um outro vulto, todo
armado contra a rajada aspérrima da noite, que se ia cerrando:
—
Ainda aqui, Fernão Ximenes? embebido
nesse longo sonhar em que o passado se te afigura doloroso e feio? Para que
foges do teu irmão? Bem vês que eu procuro distrair-te dessa agonia lenta que
te vai minando a essência débil da vida, desse espasmo da atonia que produz em
ti a mudez do sepulcro. O que tens tu numa vida de criança, inocente, sempre
desprevenida, para que o ocultes ao teu irmão, ao amigo que sofre com o teu
sofrimento, e que exulta com as tuas alegrias? Uma ave, quando é levada para um
país distante, longe do ninho que lhe ouviu balbuciar os primeiros trilhos de
amor, quando lhe falta a bafagem tépida das auras em que se espanejava
contente, desfalece à míngua, prisioneira, ralada pela saudade pungitiva que
lhe amofina o ser. Tu, pelo contrário, à medida que os aromas quase imperceptíveis
da terra abençoada da pátria nos vêm dar força para afrontar as tormentas
escuras, as cerrações e os cabos perigosos, perdes o ânimo perante uma dor
imaginária, e deixas-te apossar de uma anciã, que um instante só de reflexão
tranquilizaria. Vamos, serena o teu espírito; seja-te o meu coração o porto
almejado onde encontres abrigo. Que receias pois? temes encontrá-la na volta
desposada, nos braços de outro? Conta-me a verdade toda; amas?
—
Se com vinte anos apenas haverá quem não
tenha sentido ainda esse desvario divino, que acorda de súbito em nós todas as
potências da alma, que rasga brilhante a manhã de um éden terreal, dando
realidade à vida, e que a um tempo vibra o estertor e o cicio horrível dos que
se confrangem no báratro do desespero que ele gera! Eu amo, sim. É um amor que
tem purpureado de risos todas as horas que me absorvo a pensar nela. Para mim é
o resumo de todas as belezas do mundo. Onde a vista depara uma aparição
grandiosa, deslumbrante, aí sinto uma reminiscência dela; às vezes procuro em
vão formar na mente o composto do rosto engraçado, quero tela presente pela
imaginação à minha idolatria; mas a fantasia não pode reunir numa mesma auréola
de encantos tudo quanto há de mais puro no céu e na terra. Eu estou doido. É o
frenesim deste amor que me enlouquece. Eu não a vejo, nem sei mesmo já se
existe, mas sinto-a como a essência de um licor suavíssimo e volátil, que
inebria a distância os sentidos. Ela flutua-me pairando perante a vista, como um
nevoeiro da madrugada que se esvaece nos ares ao romper da claridade, e de que
o sol faz realçar a alvura esplendente. Ela nunca me disse que me amava. Quando
só em pensamentos a escuto, a dizer-me segredos intraduzíveis, parece-me a
bayadera indiana requebrando-se flácida, com uma morbidez encantadora, a
voltear brandamente às vibrações remotas das gandharvas, instrumentistas do
paraíso. Eu voo na mesma ondulação de harmonia, e sonho um gozo indefinível,
que me exacerba mais as angústias cruciantes, quando desperto à realidade. Eu
não sei mesmo se me ama. Costumado a brincar desde criança, unindo as nossas
orações infantis em noites de tormenta, quando o seu pai andava sobre as águas,
esta confiança torna impossível o mistério, que alimenta todo o amor.
—
Aldonça! repetiu desapercebidamente
Gaspar Ximenes; — a mesma, a que me
torna aguerrido, audaz para afrontar estas regiões nos términos do mundo; a que
jurou um dia ser minha e me prometeu a mão de esposa, que eu beijei e apertei
trémulo, convulsivo!
Fernão
Ximenes compreendeu estas palavras. Foram como um clarão súbito, que lampeja e
cega. Os olhos arrasaram-se-lhe de água, sem as lágrimas poderem rebentar. Era
incrível o que se passava na sua alma. A cólera, a alegria, a contrariedade das
aspirações mais ardentes da vida, o desinteresse sublime de um coração generoso
debatendo-se tudo naquela alma deserta de esperança! Gaspar Ximenes continuou,
como delirando:
—
Amas também Aldonça? Como ela é meiga e
dócil! É a rola inocente do sacrifício. Ela há de querer a tua felicidade. O
que eu disse era uma loucura. Amo-a como irmã apenas; ama-a também, mais do que
eu, e será tua.
Ao
ouvir estas palavras, proferidas com uma acentuação dolorosa, por uma abnegação
quase impossível, Fernão Ximenes não pude represar mais tempo as lágrimas, que
lhe rebentavam ferventes dos olhos. Os soluços entrecortaram-lhe a voz. Ele
jurara dar-lhe também um dia a maior prova de dedicação.
A
este tempo, ouviu-se um berro do gajeiro gritando da gávea:
—
Mestre Fernão Mendonça, um negrume
espesso se alcança no horizonte, que levamos, pois que a não ser a cerração do
cabo, mais me parece presságio de tormenta.
O
mar começava já a cavar-se. O piloto mandou logo ferrar o traquete, cassar a
escota à bujarrona, e que o homem de quarto amurasse mais para sotavento, antes
que a borrasca rebentasse de chofre. Instantes depois a marinhagem tripulava
afanosa sobre o convés; a noite estendera pela amplidão dos mares o seu manto
gélido de sombras, como um sudário de morte. O vento frigido sibilava na
enxarcia; parecia uma serpente escamosa quando assovia na floresta intrincável.
A orquestra da procela rompia sonorosa e esplêndida, como a retrata Virgílio
num incomparável hemistíquio.
—
Por Sam-Thiago, disse Fernão Ximenes,
saindo da mudez do espanto em que o deixara a longanimidade do irmão; — adivinhava-o o diabo do gajeiro, pois já as
ondas guiam os castelos de proa, e lambem a ponta do gurupés. Diabo! que se
tivesse mando no timão amurava mais para sotavento, e talvez que escapássemos à
fúria da tormenta.
Continuava
o enovelar das vagas como grandes cordilheiras sacudidas por um vulcão
subtérreo. Instantes depois, o rapaz descia para o porão, e as marés gigantes
em vagalhões, salvavam o baixel. Soltos, desencontrados dos quatro pontos, os
ventos caem de estouro sobre o galeão.
—
Que Sam-Thiago, o bom apóstolo das
Espanhas, seja connosco, murmurou o homem do leme, ao apagar-lhe uma maré a
luzinha da bitácula. Que o bom Jesus dos mareantes nos ampare nesta tribulação,
Ave Maria!
A
tempestade recrudescia surda à voz do pobre homem de quarto, que não sabia já o
rumo que levava. Pouco depois, as ondas envolveram-no no seu marulho, e o
sorveram no pélago insondável.
Sem
governo, o galeão altivo, cruzando-se sobre duas ondas que rebentaram sobre
ele, estremeceu como aluído pelo cavername e costado; o mastro grande, gemendo
sobre si, estalou, e sumiu-se na corrente das águas. Por instantes ninguém
respirou. Só o capitão Fernão de Mendonça, conhecendo que o temporal amainara,
gritou com intrepidez:
—
Salta arriba!
A
tempestade amansara consideravelmente; via-se espelhado em todos os rostos um
sorriso de esperança, iluminado ao clarão diáfano do santelmo, que reluzia no
tope dos mastros.
—
Salve! salve, oh Corpo Santo! — gritaram todos possuídos de um regozijo
expansivo.
—
Podemos agora contar com a bonança, — disse a voz animadora do padre capelão, — que o sacro fogo de Santelmo se nos mostra
risonho e mensageiro de paz. Oxalá que sem mais desgraças possamos dizer como o
mal-aventurado soldado das Índias, o bom Luiz de Camões:
Vi nos céus
claramente o lume vivo,
Que a
marítima gente tem por santo,
Em tempo de
tormenta e vento esquivo,
De tempestade
escura e triste pranto.
—
Mestre Fernão de Mendonça! — interrompeu o gajeiro, — o galeão tem um enorme rombo na proa, e daqui
a meia hora estaremos todos no fundo, se vos não apraz lançar esta lancha ao
mar. — E foi-se cantarolando aquelas
trovas do Auto da barca do Inferno, do popular Gil Vicente:
Á barca, à barca,
boa gente,
Que que
queremos dar a vela;
Chegar a ela,
chegar a ela.
O
tom frio com que dissera a ruim nova fazia julgá-lo filho da rajada, como se
cria nas encarnações da mitologia grega. Ouvida a fala do capitão, foram
saltando todos para o batel. Pouco depois a mão soberba da Índia começara a
afundar-se. Ao vê-la sumir-se, o padre capelão lançou-lhe a bênção, e proferiu
uns versículos da oração dos mortos. A mudez tornava mais sublimes estes
instantes. Era como na morte de um herói, que baqueia ferido no auge da luta.
As lágrimas borbotavam dos olhos dos velhos mareantes ao perderem para sempre
aquele companheiro das refregas. O batel não podia com a tripulação toda; o mar
estava braseiro e a cada momento entrava-lhe pela borda.
Assim
foram andando à mercê das correntes, sem que transluzisse no horizonte escuro
um clarão de esperança. O ranger dos remos fazia lembrar de hora em hora o
estertor de uma veemente agonia. O mar e a fome infundiam na alma o tédio da
vida.
O
mar continuava roleiro. A este tempo uma onda encapelada rebentou quase de
choque sobre o batel. Era preciso alijar para aliviá-lo. O capitão deitou sortes,
para ver os que iriam ao mar. Caiu a sorte sobre o intrépido gajeiro. Pero
Guterres, um velho marinheiro, atirou-se de livre vontade. Fernão Ximenes
parecia de tal modo embebido na dor funda que alentava na alma, que não sabia o
que se passava em volta de si. A sorte fatídica cairá também sobre o irmão.
Despertou da abstração dolorosa, ao abraço fraterno extremo. Repentinamente compreendeu
tudo com a lucidez de que o espírito se apossa nos momentos solenes da vida. Deteve-o
um instante:
—
Uma vez sacrificaste ao meu amor todas
as tuas esperanças! É bem que o reconheça; agora estimo a vida só para dala por
ti. — E desprendeu-se dos braços do
irmão, com a resolução do desespero, e arrojou-se à voragem.
Gaspar
Ximenes permaneceu atônito, interdito perante o estranho heroísmo. O sol ia já
alto, o céu tornava-se límpido e sereno, o horizonte abria-se imenso, como a
expansão de um pensamento de alegria. Depois de haverem remado bastante ainda,
descobriram-no a distância seguindo extenuado o batel. A energia sublime do seu
heroísmo e dedicação comovera todos os corações. Quiseram unanimes recebe-lo,
estava já sem forças, quase imóvel. O amor fraternal resplandecera com espanto.
Os membros regelados começaram de novo a sentir vida com a reação do calor.
O
mar ia amansando progressivamente, e antes do cair da noite viram com pasmo e
alegria doida alvejar uma vela. Saudaram-na com a celeuma do regozijo. Quando
passados dias chegaram a beijar a terra dos seus pais, Fernão Ximenes foi
professar, cumprir o voto num mosteiro, para não tornar o amor do irmão
impossível.
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