A Cara de Boi
Era
um rei, que tinha três filhos. Um dia disse:
—
Pois, filhos, vão correr o mundo, e aquele que trouxer a mulher mais formosa é
que há de ficar com o reino.
Partiram
todos; os dois mais velhos acharam logo duas raparigas muito formosas, com quem
se casaram. Uma era filha de uma padeira e a outra de um ferreiro. O mais novo
andou por muitas terras, sem encontrar mulher que lhe agradasse.
Indo
um dia por um escampado, cheio de fadiga, desceu do cavalo e deitou-se a uma
sombra. Deu-lhe então na vista uma casa muito alta sem porta nenhuma, e só lá
bem alto é que tinha uma janela. Esteve ali muito tempo, até que viu vir uma
velha, que chegou ao muro da casa, bateu na parede e disse:
Arcelo, arcelo,
Deita o teu
cabelo
Cá abaixo de
repente,
Quero subir
imediatamente.
Foi
então que ele viu aparecer à janela uma trança de cabelo tão comprida, que
ficou espantado com a sua beleza. A velha pegou-se a ela como se fosse uma
corda e subiu para dentro de casa. Pouco tempo depois a velha tornou a sair, e
o cavaleiro tendo desejo de ver de quem seria a trança, chegou-se à parede,
bateu, e repetiu as palavras:
Arcelo, arcelo,
Deita o teu
cabelo
Cá abaixo de
repente,
Quero subir imediatamente.
A
trança desceu pela janela abaixo, e o rapaz subiu. Ficou pasmado quando viu
diante de si a cara mais linda do mundo. A menina deu um grande ai de aflição:
—
Vá-se embora, senhor, que pode vir minha mãe, e tem artes de lhe causar todos
os males que há.
—
Não vou, sem a menina vir comigo, porque eu assim ganho o reino de meu pai. E
se não quiser vir, boto-me desta janela abaixo.
Desceram
ambos pela parede, e fugiram a toda a pressa no cavalo que estava folgado à sombra.
Ainda não iam longe, quando ouviram uma voz:
—
Para, para, filha cruel, não me deixes só no mundo.
E
como a filha fosse sempre fugindo com o príncipe, a velha disse-lhe:
—
Olha para trás ao menos, para receberes a bênção de tua mãe.
Assim
que a menina se virou para trás, ela disse-lhe:
—
Eu te fado, que essa cara linda que tens se torne em uma cara de boi.
Coitadinha,
ficou logo com cara de boi.
Assim
que o príncipe chegou à corte puseram-se todos a rir daquela figura horrenda,
sem saber como ele se tinha apaixonado por cousa tão feia, que fazia fugir. O príncipe
contou a sua desventura aos irmãos, mas quem é que se fiava? Estava quase a
chegar o dia em que os três irmãos haviam de apresentar as suas mulheres diante
de toda a corte, para se assentar qual era a mais linda, e qual deles é que
havia de ficar com o reino.
A
rainha velha tinha muita pena do filho, e lembrou-se de fazer demorar a cerimônia,
para ver se a velha com o tempo perdoava à menina e lhe restituía a sua
formosura.
Disse
a rainha, que queria que antes da cerimônia da corte cada uma das suas três
noras lhe bordasse um lenço. A filha da padeira e a do ferreiro não sabiam
bordar, e trataram de enganar a rainha, arranjando quem lhes fizesse os
bordados; a que tinha cara de boi pôs-se a chorar, e tanto chorou que lhe apareceu
a velha, e disse:
—
Não te rales mais; no dia em que tiveres de entregar o lenço à rainha eu cá to
virei trazer.
Chegou
o dia, e a velha veio entregar-lhe uma noz muito pequenina. A cara de boi foi levá-la
à rainha, dizendo que ali estava o seu lenço. A rainha quebrou a noz e ficou
pasmada com a mais fina cambraia, bordada com flores, ramos e aves.
Chegou
o dia de irem à corte para serem apresentadas as três noras do rei; a cara de
boi pôs-se a chorar, a chorar, até que lhe apareceu a velha que era mãe dela:
—
Não chores mais; trago-te aqui um vestido para a festa. – Desdobrou-o; era todo
bordado de ouro e pedrarias; a filha vestiu-o, mas quando o vestido era lindo,
tanto ela ficava mais horrenda. E pôs-se a chorar, a chorar cada vez mais.
Quando
já todos tinham entrado para a sala, faltava só ela; a velha disse-lhe:
—
Vai agora tu.
A
filha obedeceu, mais ia muito triste por ver-se tão medonha. Quando ia pelo
corredor do palácio, a mãe disse-lhe cá de longe:
—
Olha para trás. – E assim que a filha virou a cara, continuou: – Fica com a tua
formosura. Mas não te esqueças de meteres nas mangas do vestido todos os
bocadinhos de toucinho que puderes para me dar.
Então
ela entrou na sala pelo braço do marido, e todos ficaram pasmados. A corte toda
confessou que ela é que era a mais linda, e dali foram todos para a mesa do
banquete. Enquanto estiveram jantando a menina não fazia senão meter bocadinhos
de toucinho nas mangas do vestido; as outras duas, que a viam fazer aquilo,
trataram de fazer o mesmo pensando que era moda. Acabado o jantar, começaram as
danças, e a rainha ao ver o chão todo besuntado de gordura, e que a cada passo
se escorregava em bocados de toucinho, perguntou quem é que fizera aquela
porcaria. As damas disseram que o viram fazer à princesa herdeira, e por isso
fizeram o mesmo. Começou cada uma a sacudir as mangas dos vestidos, e das
mangas da menina começaram a cair aljofres e diamantes misturados com flores;
as outras envergonhadas botaram-se pelas janelas fora, pelas escadas, corridas,
e a que chamavam cara de boi é que veio a ser a rainha, porque o rei entregou a
coroa ao filho.
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“Contos Tradicionais do Povo Português”
“Contos Tradicionais do Povo Português”
Pesquisa, transcrição e adequação
ortográfica: Iba Mendes (2019)
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