A araponga e a onça
Conto do sertão
Ficai sabendo, amigas, que esta minha voz conseguiu um dia
um triunfo, qual não consta igual nos anais da nossa casta!
Assim falava uma velha e sabichona araponga de pescoço
verde, já bastante desnudado pelos anos, e plumagem de um branco metálico, a
três companheiras muito mais novas, cuja vestimenta amarela sarapintada de
preto, olhos vivos e colo coberto de ligeira felpa cinzenta, mostravam que
viviam essa ridente e feliz quadra da juventude, que o poeta apelidou de
primavera da vida.
— Deveras?! exclamaram elas zombeteiras. E, olhando de
esguelha umas para as outras, abriam a meio os largos bicos, como que
bosquejando um sorriso de dúvida.
— Assim foi, asseverou a primeira com gravidade, e quando
souberdes como se passou a história, vereis que tenho boas razões de ufania por
mim e por toda a nossa ilustre grei. Entre, muitos presentes, assistiram a esse
fato, que deve assinalar uma época gloriosa nos fastos da passaralhada, dois
sanhaçus de encontro, um hoje falecido, outro ainda frequentador destas
paragens, tanto que, há poucas semanas, o encontrei e ferramos numa boa prosa,
lembrando-nos daqueles belos tempos!...
E a pobre da velha araponga deu um suspiro cômico, embora
arrancado bem do íntimo, e caiu em ligeira meditação.
Estava, na verdade, ridícula; também as escarninhas ouvintes
a custo abafaram umas risotas, que lhes pruíam a áspera laringe.
— Mas, perguntou mofadora uma delas — a mais saidinha do
rancho, por sinal que já entretinha uns namoricos sérios e de algumas
consequências, apesar de viver ainda debaixo das vistas dos seus respeitáveis
progenitores — que diferença há entre os tempos de hoje e os de outrora?
— Que diferença? exclamou a idosa moradora daquelas selvas. Muita,
muitíssima! Tudo agora está mudado! Outrora o sol levantava-se mais cedo; as
madrugadas eram mais cheias de magia e de aromas; os céus mais rutilantes; os
dias mais quentes, muito mais divertidos—oh! lá isto eram! — as matas tinham
mais sombra, os regatos mais melodias, os chapadões mais flores!.... Vocês não
notam esta transformação toda, porque não sabem ainda comparar. Querem, porém,
uma prova real, evidente? Pois bem, há anos, bastava eu dar um grito, por fraco
que fosse, e logo retumbava longe. Hoje, faça o que fizer, mal chego a ouvir a
própria voz. Falta aqui alguma coisa, e essa coisa é o eco. Que fim levou, não
sei; mas o que é certo, é que não ajuda mais esta minha garganta que imperou em
vastas solidões, ora maviosa como o gorjear da patativa, ora estridente como o
bater do martelo na bigorna do ferreiro.
Ao dizer estas palavras, a araponga franziu a já
encarquilhada testa e compôs as asas, com o ar de importância e os meneios de
reumático guerreiro a contar a algum basbaque suas proezas num campo de
batalha.
— Coitada da velhinha, murmurou compassiva a mais jovem do
trio, já tresanda... Pensar que havemos também de ser assim!
E com modos de benévola condescendência de quem se dispõe a
aturar impreterível maçada, acrescentou:
— E a história, mãezinha?... A história que nos prometeu?...
— Ah! já querem saber?... Muito bem; como lhes ia dizendo...
uma feita... Há quanto tempo?... Não me lembro, nem me quisera lembrar... O
caso é que mais de vinte vezes já se vestiu o paratudo de amarelo, e para tanto
é preciso que muitos e muitos dias com o sol se levantem e com ele se deitem.
Uma ocasião, pois, em horas de grande calor, abriguei-me, numa viagem que fazia
por interesses de família, bem no alto da copada folhagem de um magnífico
jataí. De nível comigo ficava a coma de uma dessas agigantadas palmeiras,
chamadas auaçus, em cujas palmas prateadas se alcandorava uma chusma de
vermelhas araras e áureos canindés, sempre aos pares como bem casados que são,
ocupados, no meio de infernal guincharia, a quebrar com os aduncos e grosseiros
bicos a rija casca dos cocos que tanto apetece àquela raça estúpida e
dissonora. Incomodando-me tamanha algazarra, fui, contra os hábitos da nossa
espécie, aos poucos descendo das ramas mais altas para as mais baixas, pulando
aqui, volitando acolá, filosofando, estudando o jogo da luz no recorte das
folhas, observando o contraste e o esbatido das sombras, desfrutando o frescor
dos cantinhos mais encobertos, picando ora algum inseto descuidado, ora a goma
açucarada que distila daquela formosa árvore, e a cada instante topando com uma
multidão de curiosos serezinhos e pássaros que mais ou menos faziam o que eu
estava fazendo; isto é, gozavam em cheio esses vasqueiros momentos de completa
despreocupação, em que a gente se sente verdadeiramente feliz. Aquele madeiro
era um mundo e mundo de maravilhas. Nem falemos nos bichinhos de toda sorte,
feitio e colorido, que pululavam e por todos os lados zumbiam, levantando
avolumado murmúrio, que já tinha seus visos de cantares. Em abelhas, lá vi a
negra mandaçaia, a pardacenta mombuca, a gentil e arruivada jati, a cacheta,
cujo mel os filhos de Mato Grosso antepõem a qualquer outro, a manduri que
afeiçoa os rubros troncos do resistente vinhático...
— Isto está cheirando a formidável seca, observou a meia voz
e bocejando distraidamente uma das três arapongas que compunham o auditório.
— A miúda tubim, continuou imperturbável a narradora em sua
enumeração homérica, a azeda borá, a tataíra, a valente cabatã, a curuara, e a
laboriosa enxu que, apesar de maribondo, constrói favos tão saborosos e gratos
ao paladar do homem, quais os frescos e rúbidos lábios da mulher que ele
estremeça.
Andavam todas em grande azáfama e, como que a rezingarem de
fadiga, levando as patinhas de detrás abarrotadas de fiozinhos da goma mais
mole que podiam encontrar. A meia dúzia mais atarefada fui dando termo a
tamanhas canseiras, sepultando-as condignamente no interior do meu estômago. No
que diz respeito a aves, havia enorme quantidade. Em ziguezagues subiam pelos
troncos os topetudos pica-paus, que os índios chamam uapicus, sondando com
valentes bicadas e olhar penetrante os pontos em que apodrecera a madeira, ao
passo que as almas de gato se esgueiravam silenciosas, desconfiadas de tudo e
medrosas da mesma sombra; umas, acinzentadas no ventre e cor de barro nas
costas, desde a ponta da cauda até ao alto da cabeça, outras, de todo verdes,
mas tão ricas de penas acatassoladas e tão fantásticas, que paredão fugidas do
paraíso de Adão e Eva. Na ramada chilreavam, com mil gorjeios e jovial
garrulice, corriam, espanejavam-se, pulavam, brincavam, saracoteavam,
aparecendo e desaparecendo, perseguindo-se uns aos outros, erguendo repentino
voo e logo após pousando com grande alarido, centenas e centenas de inocentes
voláteis; araçaris que, embora pequeninos, querem passar por tucanos, mas ficam
na intenção; mimosos currais, tiés, vermelhos como se saíssem de um banho de
sangue, e saís de todas as pintas e tamanhos, desde o saí-roxo até ao
saí-sete-cores, cuja plumagem variegada, verde, azul, negra e amarela, lembra
os esplendores do guainumbi, ainda que lhe faltem as refulgentes centelhas
furta-cores, que, no corpo daquele admirável brinco do Criador, tão de súbito
casam os ardentes reflexos do rubi, da esmeralda, da safira e do topázio, assim
cambiam, se apagam, rebrilham e fogem, transmudando-se, ora em vivas chispas de
fogo, ora em laminazinhas de ouro esverdeado, prata, cobre ou coruscante aço,
como se fora metal polido.
Ligeiro murmúrio de aplauso acolheu esta breve descrição do
microscópico colibri.
— Para aumentar, continuou a araponga com a serenidade de
orador acostumado à aura pública, o alegre alvoroto, abatera-se no alto das franças
numeroso bando de violáceas graúnas, o qual, antes de partir com destino aos campos
da Vacaria, lá para as bandas do rio Paraná, dava um descante aquele
hospitaleiro lugar e respondia aos guinchos das araras com um chuveiro de
cristalinas e afinadas notas. Era mesmo um céu aberto. Vim ainda descendo,
prosseguindo nas minhas explorações e já achando nos galhos mais grossos maior
silêncio e solidão, mas nem por isto menos encantos, pois as harmonias
desfiadas de cima combinavam-se em velada sinfonia com os múltiplos ruídos, que
da terra subiam. O calor apertava, entorpecendo-me as forças e predispondo-me a
gostosa sonolência. Sem tentar resistir a tão insinuante convite, entrei a
dormitar por baixo de umas folhas que me serviam de caramanchel, continuando,
entretanto, por trás do meu véu palpebral corrido, a dar, mais ou menos
distintamente, acordo de tudo quanto em torno de mim se passava.
— Estou quase fazendo o mesmo, murmurou com impaciência
aquela que mais vezes interrompera a lengalenga da velha.
— Ouçam-me, aconselhou esta sem se mostrar ofendida, agora é
que chegamos ao ponto interessante. Estava, pois, durmo, não durmo, quando, de
repente, arregalei os olhos.... e dei um pulo para trás. Que vira? Bem por
baixo de mim, no encontro de dois possantes galhos, estendida a fio comprido,
uma enorme onça pintada muito a gosto e,
com a cabeça a descansar nas massudas patas, preguiçosamente me fixando.
De terror foi o primeiro ímpeto; mas, como sempre dispus de sangue-frio,
refleti logo que, a cavaleiro como estava, e podendo contar com boas azas, nada
tinha que recear. À vontade, então, e por largos instantes, contemplei o
monstro. Era um magnífico jaguaretê, cujas malhas, umas, cheias e negras,
formavam na cauda anéis e nas costas duas compridas linhas, outras, alternadas
de branco e preto e mais salteadas, sarapintavam o pelo fulvo, que a cada
instante elétrica corrente crispava de um extremo a outro. Distraiu-me, porém,
daquela vista, que tinha o seu tanto de aterrador, o cochicho animado dos dois
sanhaçus a que me referi em princípio, e que, pouco adiante de mim, no mesmo
plano, conversavam bastante alto, comunicando-se as reciprocas impressões.
— Que lhe parece o bicho? perguntou-me um deles com o
desembaraço próprio daquela espécie.
— Assim de longe... bonito. De perto, outro havia de ser o
meu pensar.
— Bem respondido! É boa!
E com umas risadinhas de aprovação, foram-se chegando para mim e procedendo a
sumaria apresentação:
—_ Minha companheira, disse-me o mais cheio de corpo com um
pio carinhoso e uma olhadela de atoleimada ternura.
— Meu marido, arrulou a outra abemolando afetadamente a voz.
Cumprimentei-os.
— Muito gosto em conhecê-los.
—_ Somos casados de fresco, prosseguiu o primeiro com
volubilidade. Há quatro meses éramos estranhos um ao outro... quando encontrei
a senhora na margem esquerda do Paranaíba...
— Direita, amorzinho, emendou a fêmea.
— Esquerda, meu anjo.
— Ora, bembém, direita... não me contraries... por
contrariar.
— Não tenho tal intenção... só peço que te lembres...
Ah! meus pais! choramingou a sanhaçu arrepiando logo as
penas com uns esgares de fundo sofrimento moral, ainda há tão pouco que vos
deixei!
Hão de concordar que esta cena era inconveniente na presença
de um indiferente como eu, e com uma onça de observação, meio sobrado abaixo.
— Direita ou esquerda, intervim, não vem nada ao caso.
Sou bem infeliz! soluçou a sanhaçu.
— Pois bem, cedeu o macho que me pareceu boa criatura, mas
avassalado pela noiva, concordo que fosse a margem direita... Estás satisfeita?
E para ressalvar a sua dignidade de marido, explicou-me em tom mais baixo.
— Preciso condescender sempre... porque este delicado
entezinho é vítima dos nervos... Nem imagina a sua sensibilidade... Há pouco
desmaiou de medo, ao avistar subitamente aquela onça... Se não fora o abrigo do
meu seio; ter-se-ia despenhado destas enormes alturas... Ainda estou todo
trêmulo...
— Combinaram-se então dois sustos, chasqueei.
A fêmea ouviu estas palavras e, voltando-se para mim,
interpelou-me com voz azeda:
— Também o seu não foi pequeno... Ora, confesse; daqui
presenciamos alguma coisa.
Senti-me picada.
— Meu? Quais nada! Tive assim certo sobressalto... muito
natural, mas passageiro... Olhem, querem ver o caso que faço daquele tipo?
E, arrancando com o bico um pedacinho de casca, atirei-o com
jeito entre os olhos da fera, que continuava a fitar-nos com ar sonolento.
Flagrante era o insulto; mas o bicharoco, ou por disposição
de espírito naquele momento, ou por longanimidade, pareceu não dar por ele.
Quebrei, então, uma ponta de ramo seco e ia novamente
jogá-la no focinho da onça, quando a sanhaçu pôs-se a soltar gritos de terror e
a fingir espasmos nervosos:
Bembém!... Bembém!... Impede uma desgraça!... Se aquele
monstro urra, morro de terror!... Que imprudência!... Sinto-me já fria...
— Meu bom amigo, implorou o alarmado esposo, por quem é! Não
assanhe as iras daquele colosso!... Veja a aflição da minha esposa... E ela que
não pode ter impressões fortes no seu estado!... Aqui lhe digo em particular...
vai ser mãe...
Uma gargalhada de mofa interrompeu as frases entrecortadas
daquele toleirão que, a saltitar todo esbaforido de um lado para outro,
abaixando ora a cabeça, ora a cauda, como um anu, tinha deveras aspeto cômico,
quanto possível.
Era a onça que a dera.
— Cala-te, desfrutável sanhaçu. Cuidas então que esta mísera
araponga é capaz de merecer outra coisa que não o meu desprezo?
E deitando-me esverdeados olhares de desdém, em que já
luziam umas faíscas de cólera:
— Vil pássaro, roncou ela, se não fora a confiança nas tuas
asas, não te animarias a encarar-me de frente e ainda menos a provocar-me sem
motivo... Voa para longe... senão...
— Senão o quê? perguntei com altivez. Quando se tem umas
garras como as tuas, não há mérito em ser temida. Sou pequena à tua vista, mas
não desprezível! Não faço mal a ninguém... passo os meus dias a cantar...
alegrando os bosques e dando vida à imensa obra de Deus! E tu?... És o símbolo
da destruição! Só vives de carnificina e matanças; ameaças a existência de
todos...
Aí senti certo peso no estômago. Eram as abelhas de há pouco
que me não faziam bom cômodo.
Prossegui entretanto com veemência:
— Não sabes por ventura o que se diz sobre atua índole,
caráter, insídias e covardia?
— Ora, uns patetas...
— Nunca fiz garbo de valentia, mas assim como sou, não se me
dá de pregar-te, a ti —o terror das matas — um susto, como ainda não tiveste
igual em tua existência de canibalismo e ferocidade...
— A mim?... Um quê? Eu que com um Simples rugido faço fugir
a muitas e muitas léguas os mais valentes animais!...
— Pois só com um grito?... Ora bem, já que estamos ambos de
bom humor, façamos uma aposta... Tu rugirás... eu gritarei. Aquele que assustar
o outro será vencedor... Simples questão de capricho, queres?... Quem perder,
deixará in continente esta árvore, confessando-se derrotado...
Os sanhaçus, fazendo logo passo e corte por esse espírito de
bajulação aos poderosos que tanto acalcanha as índoles fracas, puseram-se
sem" mais nem menos do lado da onça.
— A muito se arrisca o amigo, observou o macho.
— Que pretensões! segundou a outra com um estalado muxoxo de
pouco caso.
— Pois bem, concordou a fera levantando-se e aos poucos se
espreguiçando toda, se não conseguires fazer o que tão imprudentemente
prometes, hás de sujeitar-te com toda a humildade, sem te defenderes e até que
eu diga basta, a uma boa sova de bicadas daqueles dois ajuizados sanhaçus.
— E no caso contrário?
— Trocar-se-ão os papéis... Malharás neles a teu gosto...
— Alto lá! Ora esta! protestou assustado o macho.
— Cala-te, tolo, segredou a outra puxando-o pela cauda, deixa-me
o gostinho de castigar aquela presumida.
— E descerás logo desta árvore, exigi com império.
— No mesmo instante... Palavra de onça!
— Que remédio senão aceitá-la.
— Atrevido!...
— Desculpa-me... mas conheço o meu tanto de história
natural... Não nos agastemos, porém, e vamos tratar de desempenhar o
compromisso... Começa lá e olha-me bem fixo, para teres a certeza de que me não
altero com os teus uivos.
Houve uns instantes de silêncio.
Não pude, nesse solene momento, deixar de sentir-me comovida,
embora me distraíssem um pouco os pios chorosos da sanhaçu, que ocultara a
cabeça por baixo de uma das asas do marido.
— Que duelo medonho! murmurava ela. Que vai haver?
— Se queres... raspemo-nos, propôs o macho.
— Nada... agora vejamos o resto, gaguejou ela levada da
ardente curiosidade que domina os animais do seu sexo.
Neste ponto acocorou-se a onça nas patas traseiras e,
escancarando umas fauces enormes, arrancou das profundas cavernas do peito e
com todas as forças um urro tão forte que, parecendo abalar o jataí desde as
raízes até às grimpas, estourou como um raio, ribombou, ecoou e a custo se
perdeu.
Naquela árvore, momentos antes tão prazenteira, e nas
vizinhanças, deu-se curiosa revolução. Eram saís, pica-paus, araras, abelhas,
insetos, almas de gato, canindés, que, atropeladamente e com uníssona grita de
alarma, disparavam por toda parte, partindo como flechas multicores, desferidas
a um tempo de encantados arcos pelos espaços além.
Os dois sanhaçus, embora prevenidos, não puderam ter mão em
si e levantarão também assustado voo.
Quanto a mim, nem pestanejei; mas agora, muito em particular
lhes confesso, não pouco me custou o esforço. Esperava de certo por um ronco
pasmoso, insólito, mas nunca pelo que deu aquele bicharrão estimulado em seus
brios. Era coisa de mais.
Passados os primeiros momentos de certa tontura que
jeitosamente fui às pressas disfarçando, perguntei com ar ganjento ao meu
contendor:
— Então, que me dizes? Notou em mim alguma perturbação? Nem
sequer estremeci...
— Com efeito, concordou o jaguaretê, és valente... Não
supus, na passarinhada, ninguém capaz de semelhante proeza.
— Perdeu, pois, a aposta...
— Não, de certo. Falta agora que o teu grito me assuste...
— Então... prepara-te...
— Temos bobagem, anunciou a sanhaçu que sem demora voltara a
assistir ao resto da peleja.
Talvez imaginam vocês que com todo o ímpeto puxei logo da
garganta as nossas notas lá! agudo e sol duas oitavas abaixo, que
caem uma em cima da outra como aldrabas de ferro a se chocarem.
Tão tola não era eu.
Comecei muito de mansinho, assim como quem não quer não, a
limar, limar, tremelhicando a voz sol, si, si; sol, si, si; com
intervalos de dois segundos; sol, si, si; sol, si, si; e isto por um
tempão.
A onça, que estava com a atenção presa em mim, esperando a
cada instante pelo que viria, depressa se cansou.
— Olá, araponga do diabo! disse ela com enfado, então não ó
senão isto?
— Espera, espera um pouco, estou preparando o meu grito.
E continuei sol, si, si; sol, si, si; lima, que lima;
lima, que lima, rein, rein, rein.
—_ Se isto dura mais, pego no sono.
— Podes pegar, tens tempo de sobra.
E como o calor ajudava as minhas intenções, vi que a onça
começava a dormitar. Fui quebrando cada vez mais a voz, botando-a doce, doce,
que nem um torrão de rapadura.
O bichão quase que se derretia de gosto: estava já passando
ao sono.
Fui então espaçando, mais e mais, as minhas notas. Às vezes
era mesmo que nem um sino de freguesia lá muito ao longe, seguido de longa
pausa.
Aí é que eu queria chegar. Repentinamente, no meio daquele
silêncio todo, deixei cair o martelo na bigorna, pã! pã! com uma força
de que eu própria não me supunha capaz... Um só choque!
Minhas amigas, não lhes conto mais nada. Eu mesma saltei sem
querer. Quanto à onça, deu tamanho pulo, estremunhada e tonta, que se não
fossem as unhas com que se atracou ao tronco, levava horroroso trambolhão do
jataí abaixo.
Que foi? Que foi? bradavam os sanhaçus.
— Ganhei ou não? exclamei triunfante.
O gatarrão portou-se, quiçá pela primeira vez em sua vida,
com singular lealdade.
— Ganhou, disse ele ainda fora de si, nunca cuidei chupar
tamanho susto.
— Então mosca-te já daqui...
— Não há remédio... Dá por mim uma surra mestra naqueles
dois estonteados.
E, dizendo estas palavras, desceu com ligeireza da árvore,
deixando-me os louros de imensa e incontestada vitória.
— E os dois sanhaçus? perguntou uma das arapongas.
Ora, perdoei-lhes a petulância. Comecei atacando umas
bicadas na fêmea; mas, vendo o cavalheirismo do companheiro, que se interpôs
com toda a nobreza oferecendo o corpo aos golpes, mandei-os em paz, com a
condição de proclamarem por todos os cantos dó mundo o meu triunfo. Também lhes
rogo, concluiu a narradora interpelando com orgulho o seu auditório, façam o
mesmo para maior honra minha, perpetuando em longínquas eras este sucesso
portentoso, digno sem dúvida de ser recolhido pela história imparcial.
As ouvintes, depois de prometerem satisfazer tão justo
pedido, separaram-se amigavelmente, e cada qual buscou o seu rumo. Desde esse
dia começou, com efeito, a espalhar-se pelos alongados sertões do interior do
Brasil a notícia do interessante episódio que deixamos bosquejado, mas ao mesmo
tempo se deu um fato curioso; cada indivíduo que o repete, nos meses de verão
desde; a madrugada até quase ao pôr do sol, apresenta-se invariavelmente como
protagonista de tão memorável feito e, chamando a si as glórias de haver nele
figurado, esquece relembrar o nome daquela, que primeira deu tamanho realce à
importante tribo das arapongas.
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Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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