A Adega de Funck
(Conto fundado nas notas de Hoffmann)
A
ironia, quando não é despertada pela luta incessante de contrariedades
imprevistas, que cercam o espírito de dúvidas e desesperos, e o deixam na
prostração da indiferença e do cinismo, é uma doença, uma febre lenta, que vai
devorando a existência, depois de a ter despido de todas as alegrias. Observa-se
no pessimismo do poeta. O riso com que a ironia se traduz, que é a expressão
que mais de pronto lhe acode no acesso do frenesi suscitado pela vista
repentina de um contraste, para quem o compreende, é uma visagem infernal, um
esgar que gela, um arremedilho de cadáver sacudido por uma pilha galvânica. É
uma descarga nervosa pela via muscular, como uma compensação, como notaram os
fisiologistas.
A
gargalhada é também a linguagem das grandes agonias; é esta polaridade
misteriosa da nossa natureza dupla, constituída já em aforismo: os extremos
tocam-se. A ironia, derivada do mesmo princípio supremo, é a impressão abrupta
de uma ideia infinita que se compara com outra finita, cuja disparidade intuitiva
desperta em nós todas as vibrações do sentimento cômico. A primeira
manifestação do cômico na vida foi por certo o grotesco; Susárion e Téspis caracterizavam os seus personagens com
borras de vinho. Ele aparece-nos no mundo moderno como uma arma da burguesia
contra a pressão do clero e as extorsões dos senhores feudais, na Festa do Asno, nos serviços, nos fabliaux,
nos baixos relevos e goteiras das catedrais. O pico, a agudeza do pensamento
estão completamente materializadas na imagem; eis o cômico pela sua parte
visível ou objetiva, tanto da simpatia popular.
O
humor é um grão elevado; no contraste que se funda na antítese da ação e o
pensamento, a forma não corresponde, contraria mesmo a expressão da ideia,
donde resulta uma monotonia triste; o esforço do que procura alegrar-se infunde
nos que o contemplam uma melancolia indefinida, como na Viagem de Sterne.
A
ironia é a impossibilidade de conciliar os elementos da antítese, ou o
contraste mental que gera todo o sentimento cômico: tal é o desespero de Hamlet
propondo ao seu espírito o problema insolúvel e eterno:
To be or not
to be that is the question.
A
imaginação de Hoffmann semilha um caleidoscópio onde estas três cambiantes do
sentimento se refletem, confundem, se cruzam em direções infinitas, formando um
espectro a que chamamos o fantástico.
A ironia, o humorismo e o grotesco sucedem-se, como fases da sua inspiração.
Quando ele sente estas inversões do sistema nervoso, anúncio da tabes dorsalis que progride de um modo
irremissível, o pensamento então dá forma a todas as vertigens; a dor torna a
criação pessoal, caprichosa; os retratos que ele faz são quase sempre
caricaturas, a encarnação de um riso de desespero. As bebidas e o seu cachimbo
de Kumer vêm distrai-lo da consumpção que ele observa a cada instante em si. O
fumo que se enovela em formas extravagantes no ar, e se dissipa como uma
quimera fugitiva, representa-lhe os tipos que reproduz nos seus contos. Ao
fogão, na concentração íntima da família, o cachimbo povoa-lhe o aposento de
silfos e gnomos, que embalam a fantasia enlevada em sonhos incríveis, com
músicas estranhas que o deliciam no egoísmo do sofrimento que o corrói. Ele tem
uma afeição particular às pessoas espirituosas, porque lhes supõe talvez a veia
sarcástica proveniente de algum estado mórbido. Quando se retrata
caricaturara-se.
Muitas
vezes aceita-se uma criação cômica, rimo-nos, sem saber que a inspiração que a
produziu foi a doença que arrebatou Molière, o desalento de Gil Vicente, a
resignação de Scarron. Por que não procuraria Hoffmann distrair-se com o vinho,
afogar nele a preocupação do mal irremediável, que lhe atacava a espinha
dorsal?
O
seu editor Funck, homem estimável de caráter, a quem a especulação não pôs em
guerra com os que têm a infelicidade de precisar escrever, convidou-o para
passar alguns dias na sua residência em Bamberga. Funck tinha uma magnífica
adega e lembrava-se perfeitamente daquelas expressões de Hoffmann: “Fala-se
muito do entusiasmo que procuram os artistas no uso das bebidas fortes;
citam-se músicos, poetas que não podem trabalhar senão assim; eu não sei, mas é certo que com esta
feliz disposição, direi, quase sob a constelação favorável, em que se está
quando o espírito passa da concepção à realização, as bebidas espirituosas
aceleram a torrente das ideias.”
Funck
tinha o mais excelente de todos os vinhos, como lhe chamava Hoffmann, o Porto, que no seu nome traz o segredo da
sua força. O escritor original era esperado com ansiedade em Bamberga. Chegou
por uma tarde fria. O céu estava escuro, carregado de nuvens; relampejava a
espaços, como o prelúdio de uma grande trovoada noturna. Quando a natureza é
triste sentimos uma vontade de nos reconcentrarmos; o lar doméstico é a grande
poesia do norte. Um dos maiores castigos no antigo direito germânico era a pena
severa expressa naquela fórmula romana interdito
tecti; o banido é comparado ao lobo solitário; a casa era arrasada, tapado
o poço, extinto para sempre o fogo do lar.
Hoffmann
esquecia todas as dores ao abraçar aquele amigo; com toda a liberdade de uma
confiança íntima sentou-se logo ao piano. O frenesi da inspiração fazia-o
percorrer desesperadamente o teclado. Era a sua última composição, meio
improvisada com o júbilo que sentia. Começou um canto com uma voz desentoada,
que fazia arrepiar os nervos; parecia que estava em delírio. Nisto um trovão
rebentou com um estampido soturno.
—
A natureza, disse ele para Funck, escarnece-se de mim, parodia-me a voz
roufenha. Há bastantes dias que tenho sentido humor para o romântico religioso.
Jovis omnia plena! Hoje, não sei se é
o excesso da alegria, predomina em mim uma exaltação humorística levada até à
ideia da aberração.
Funck
continuava silencioso. Hoffmann permaneceu alheado alguns instantes, como
levado por uma série de deduções, que absorvem fatalmente toda a contenção do espírito.
Estava a diagnosticar-se; a prolongada doença dera-lhe um certo conhecimento do
seu estado. Depois prosseguiu:
—
É notável! Que diversidade de sensações agora. Disposições humorísticas,
coléricas, com um humor musical exaltado, e sentimento de um bem estar com
indiferença. Como conciliar tudo isto? O sistema nervoso inverte-se-me de dia
para dia.
Restrugia
um aguaceiro espesso. Há no cair da água uma magia, que adormece.
—
Vamos, disse Funck, interrompendo aquela reflexão penosa, eu tenho um excelente
remédio. Vejo-te tiritar com frio, de um modo que me tira a satisfação do
agasalho que presto a um amigo. O seio de Abraão deve estar com uma temperatura
suave; refugiemo-nos lá.
—
Como isso era bom! mas infelizmente as asas da poesia não nos desprendem da
terra; a realidade é pior do que o sol para as asas de Ícaro; ela toca-nos o
corpo com mais aspereza do que o velho Satã quando experimentava o desgraçado
varão da terra de Hus. Agora acho-me divorciado com a poesia, com a música, com
a pintura; são as três fúrias que sob uma aparência sedutora surgiram das
sombras do paganismo para atribularem-me o espírito.
—
E por que não havemos de refugiar-nos, numa tarde destas, no seio de Abraão? — disse
Funck procurando interromper a corrente das ideias aflitivas. — Não é tão
difícil como pensas. Nem são precisas asas para ir lá. Para descermos basta
obedecer à lei eterna da gravidade, que sobre nós pesa. Não sabias ainda que a
gravidade é o nosso pecado original?
Hoffmann
sorriu-se; o seu amigo tomou um tom humorístico para se adequar ao caráter dele
nesse dia.
—
Apesar da facilidade que apresentas ainda não resolvi o problema. Como iremos
nós procurar conforto ao seio de Abraão?
—
Segue-me.
Funck
caminhava adiante com um ar vitorioso. Hoffmann sorria-se com um modo duvidoso,
para que o riso o defendesse do logro que esperava.
Desceram
uma escadaria escura; uns ferrolhos pesados gemeram, como se se abaixasse uma
ponte levadiça. Entraram. Era um subterrâneo fundo, iluminado por um lampadário
de bronze. Depois de afeito à sombra, Hoffmann pôde discriminar grandes toneis
dispostos, como uma longa fila de cachaci-pansudos cônegos.
Era
a adega do seu amigo Funck. De fato havia ali uma temperatura tépida, de
fermentação. Nenhum olhar importuno através da abóbada calada.
—
Se os velhos patriarcas, principalmente o nosso pai Noé, não trocariam de boa
vontade a tua adega pelo seio de Abraão! — Hoffmann estava animado de uma
alegria indizível; era um homem de extremos; a sensibilidade excessiva
deixava-lhe apreciar os mais desapercebidos contrastes, era por isto que ele
possuía mais do que ninguém o genus
irritabile vatum.
Mal
acabava de proferir aquelas palavras, quando se atirou de um salto, com uma
loucura de criança, e se escarranchou num tonel.
Funck
seguiu o exemplo.
—
A vida é um grande mar, que estua em convulsões intermináveis; felizes os que
caindo na voragem encontram destes delfins, que os tomam sobre si e os levam a
porto seguro.
—
Foste feliz na imagem, principalmente, porque o vinho desperta-me o humor
erótico-musical, e os delfins, se dermos crédito a antigos fabuladores, eram
levados pela magia da música.
E
começou a cantar alguns trechos da sua opera a Ondina, que só interrompeu para levar à boca o sifão de lata que
estava mergulhado na pipa. Hoffmann tocava a realidade dos seus contos.
—
Este não dá pelos calcanhares do teu dileto Porto?
— acudiu Funck; o vinho de Nuits é dos melhores de Borgonha, e, graças ao
céu, podemos nadar em mar de rosas.
A
noite corria tempestuosa e tétrica: os trovões rebentavam com uma detonação
tremenda. Nos ares, coriscou um relâmpago repentino e veio iluminar com um
clarão pálido o rosto dos dois amigos, que tocavam neste momento os copos
espumantes. Era um quadro com toda a verdade e simplicidade de Teniers, como o
próprio Funck, numa nota de uma edição do seu amigo, confessa com aquela
ingenuidade alemã.
Hoffmann
ficou deslumbrado com o fulgor instantâneo; tinha a mudez do terror.
—
Em que pensas?
—
Um conto, um conto horrível!
—
Mais uma saúde, e narra-me essa história ponto por ponto.
—
História? dizes bem; por que tem muita verdade, ao menos a verdade da arte.
Nunca te falaram nisso? Admira! Foi tão notório. Quem a não conheceu! Bela,
como era, ninguém podia fitá-la sem experimentar o pasmo da admiração. As
linhas do rosto tinham uma irradiação etérea, perdiam-se no ar. Era uma visão
suspensa, a encarnação de um sonho indizível de amor.
A
tristeza realçava-lhe a candura angélica. Para ela, a vida era um desterro no
mundo. Passava, alheia de tudo, distraída, sem saber que levava após si todas
as aspirações que um olhar de relance, fortuito, gerava na alma. Um dia vi-a
pelo braço de um homem feio, que a conduzia com burlesca familiaridade!
Disseram-me que era o marido.
Perscrutei
o segredo de uma união para mim impossível, inexplicável. Não tinha sido
arrojada a hipótese: viviam com uma certa paz artificial, um acordo de
convenção perante a sociedade. O marido bem conhecia, que a família da
engraçada criança a forçara aquela união desigual; a consciência da riqueza não
conseguira persuadi-lo de que a merecesse; e espreitava, espiava-lhe todos os
olhares, interpretava-lhe cada gesto insensível.
O
que não idearia o ciúme? O ciúme que não tem a franqueza selvagem de Otelo é vil,
infame. Um dia, a infeliz senhora, começou a sentir-se indisposta; não faltavam
carinhos da parte do esposo, não poupava esforços para consolá-la, com uma
solicitude hipócrita. O mal progredia, convulsões violentas a acometiam,
vertigens assombrosas, dores intensas, como se lhe retalhassem as entranhas. O
marido escutava os gemidos com um pungimento afetado.
Conhecera
que morria: — “Sabes, disse ela tomando-lhe uma das mãos, eu deixo a vida, mas
custa-me baixar à frieza do sepulcro sem te dizer uma palavra. Oh! nem sei como
revelar-te esse segredo, esse desvario de uma paixão infantil. Não soube
guardar a fidelidade do tálamo.” O marido ouviu a confidência solene com um ar
estúpido de imbecilidade: — És neste momento tão generosa e grande! A verdade
nos teus lábios vibra-me de um modo que tudo te perdoo. Choras? escuta. Deixa
também fazer-te uma revelação tremenda: envenenei-te.
Hoffmann
não pôde tirar do conto a moralidade que se espera, e caiu, esquecido do mundo,
entre os toneis do seu amigo.
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