50 anos de ditadura musical!
Estava
finalizando este artigo quando descobri o interessante texto de Marcos
Napolitano “A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços
de vigilância política (1968-1981)”, do qual extraí a parte abaixo, que bem
cabe como citação:
“O
campo social da vigilância e do controle, dentro da lógica da segurança
nacional implantada pelo golpe militar de 1964, era enorme: entidades da
sociedade civil, espaços de sociabilidade e cultura, atuação pública de
personalidades críticas, todo o tecido social e os espaços públicos eram
virtualmente vigiados (...) a vigilância sobre a sociedade civil era
constante”.
“Um
outro caso de suspeita muito peculiar foi o de Caetano Veloso. As posições
políticas de Caetano, sempre críticas em relação à arte engajada de esquerda,
já conhecidas no final dos anos 60, acabaram gerando uma série de conflitos
entre sua personalidade pública e o público de esquerda, que o qualificava como
“alienado”.
[Marcos
Napolitano - Departamento de História - UFPR - A MPB sob suspeita: a censura
musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981) -
Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 47, p.103-126 – 2004]
Cinquenta
anos que começaram nos famosos festivais da canção da TV Record e depois da TV
Globo. Esses festivais que mobilizaram a população cultural da época foram bem
canalizados pela mídia, rádio, jornais, TV e revistas se uniram num só grupo
empresarial para explorar a mina de ouro em que se transformaram. Quando a
míngua chegou – era de se esperar – sobreviveram apenas àqueles mais cruéis, os
predadores, apoiados pelos mais frios e calculistas empresários, caçadores de
sucesso, fabricantes de mais vendidos, donos ou representantes de gravadoras
internacionais, que abocanharam também as rádios, as revistas ‘especializadas’,
os jornais.
Por
trás dessa cruel ditadura musical ficou o rasto de terra arrasada, jovens
cadáveres, dizimados pelas drogas, pela depressão, pelo álcool, abandonados
pelo simples desprezo, o esquecimento conveniente, as traições. Todos os que
estavam bem ali, ao lado, dando o apoio, trabalhando duro nos anos difíceis,
nos atropelos do começo de carreira, da sacrificada luta pela sobrevivência, se
viram um dia defenestrados, atropelados pela máquina cruel da ambição, destrambelhados
pela ausência de princípios morais, éticos, de amizade e até de religiosidade,
inexistentes no meio em que viviam.
Em
sequência, alguns muitos vieram a mamar nas tetas do dinheiro público, seja por
meio de amizade, seja por meio da aderência ao sistema, usando o poder de
governos – ditatoriais e democráticos (a ambição não tem ideologia) –
elegeram-se deputados, senadores, assumiram secretarias, ministérios, outros
ocuparam cargos praticamente invisíveis, mas sempre com salários altíssimos,
tudo remunerado e sustentado com nosso dinheiro, o dinheiro público, quer
dizer, com a miséria de muitos.
50
anos de ditadura musical – demorada, mas rentável – mais, muito mais, do que
durou a ditadura militar; mais, muito mais, do que demoraram os governos de milicos
africanos, dos quais todos nós reclamamos e lutamos para extinguir.
Todos
os chefes desse implacável assenhoramento da nossa música são hoje dignos,
ricos e eloquentes septuagenários – além do ganho com a ditadura musical
abocanharam também grandes bocados das ‘indenizações’ com que o governo brindou
os perseguidos pela redentora – mesmo sabendo de que todos nós fomos
perseguidos, vigiados, doentes de depressão, de diarreia, de dengue, dor de
cabeça, sofremos desemprego – as causas e os efeitos da ditadura atingiram a
todos, sem distinção.
Quem
não se enturmou ficou à margem, foi vender água de coco na praia, foi vender
livros nos bares e boates da noite, enrustidos com medo do pau de arara. Ah,
sim, eles também infernizaram os nossos pobres ouvidos com algumas músicas bem
podres, além de deixar de fora, com o conluio de produtores, gravadoras e
rádios e tevês, os novos sons que apareciam em nosso rico país, porque talento
nós temos de sobra. Os sons novos e experimentais, que deveriam nos levar ao
futuro da música, ficaram para alegrar os anjos no paraíso.
Charlatães
do labirinto das palavras, letra e música, dos sons repetidos à exaustão,
mágicos, ilusionistas, nos fizeram de bobos, nos fizeram acreditar que era
música a cantilena monocórdia que hipnotizou por mais de 50 anos toda a
população brasileira, num casamento infernal contratado como núpcias
interioranas: com a declaração formal “até que a morte nos separe”. Ah sim,
eles infernizaram milhões de ouvidos, deixando de fora os novos compositores que
traziam a esperança de salvação de nossas almas penalizadas.
Aproveitando-se da fama de
‘perseguido pela ditadura’, erigiram e solidificaram a carreira com base nesse
renome, posando de vítimas ad-æternum, subterfúgio inventado pela mídia
por interesse financeiro, apenas pra faturar, apenas pra fazer o
pé-de-meia crescer e crescer e crescer.
Ao
mandar para a câmara de gás, para o limbo do purgatório, aquelas vozes que
realmente traziam algo de novo, ideal como idealizamos o som novo, a música do
tempo hoje, enterrando para sempre a ilusão da palavra e do som mexido como
flautas indianas que enfeitiçam serpentes, atraparam o modernismo da MPB que
foi preterido sempre, sempre com a anuência dos donos de nossos destinos, como
uma repetição saatiana, enterrando-nos na pré-história da música do século XX,
porque de lá eles nunca saíram.
Muitos irão me repudiar,
lembrando que eles nos legaram belas canções – é verdade. Mas a que custo? E o
quanto essas canções se transformaram em canto de sereia? As sereias eram entidades
capazes de encantar qualquer um com o seu canto. Diz a lenda que os marinheiros
que ouviam seu mavioso e hipnótico canto, perdiam o rumo, o tino e assim
descuidados naufragavam. O sábio Homero afirmou que elas podiam prever o
futuro, o que condiz com a minha indignação.
Nós nos deixamos
enfeitiçar? Nós sucumbimos ao canto das sereias? Então tudo aquilo era
fingimento? Isso porque, quando o futuro chegou, nos demos conta de que também
nossos cantores e compositores ‘perseguidos’ pela ditadura, como as sereias,
anteciparam de maneira sábia o que viria ocorrer: mesmo que a maioria deles não
precisasse, porque vinda de berço de ouro, o futuro lhes trouxe muita e muita
grana...
Para o resto, os demais, os
jovens descendentes, as “entidades da sociedade civil, espaços de
sociabilidade e cultura, atuação pública de personalidades críticas, todo o
tecido social e os espaços públicos [que] eram virtualmente vigiados, [pois] a
vigilância sobre a sociedade civil era constante”, ficou a estranha sensação
de que serviu apenas de pano de fundo para essa tragicomédia sem fim que os
governos militares legaram ao teatro de nossa existência.
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