Rogério, O Rude
E um velho apareceu. Muito velho;
os cabelos brancos, encacheada coma desciam-lhe aos ombros, tão brancos, tão
realmente prata, que todo o ouro do dia nascente não conseguia dourar.
Perdia-se sobre aquele inverno, todo o esforço de um sol pujante de primavera.
— Vens, talvez ao meu apelo?
Ninguém me pode valer. Queixo-me do passado irrevogável que me preparou esta
vida de amarguras. Não há remédio.
— Nada desejo, entretanto, para
mim; meu filho são as minhas aspirações e o infeliz, tão moço, é já um condenado.
Eu o quisera iluminado e a escola o repeliu. Cresceu-lhe pelos à beira da testa
como orelhas de onagro e eu lhe quisera um perfil de medalha. Indico-lhe a
cidade, o caminho largo do sucesso e o selvagem reclama o campo, o campo.
Quisera vê-lo calcando aos pés o galanteio das princesas, tapete de
corações!... e vou surpreendê-lo a desabotoar amor às virtudes campônias
cheirando a estrume e a feno...
— Tranquiliza-te. Teu filho está
grande. Mas é preciso que me ouças. Deixa cair a foice; o trabalho é a
escravidão. Míseros, aqueles que se escravizam à gleba. O pedreiro acumula a
alvenaria, sobrepondo custosamente as lascas de rocha; edifica o fundamento e o
esqueleto da muralha. Vem o pintor e encobre a valia de todo aquele trabalho
com a ligeira camada das tintas. E o arquiteto vem e debuxa a linha
aristocrática do arabesco, que é como uma inscrição em que se recomenda ao
futuro e à glória. E o estatuário sobre o monumento do pintor e do arquiteto apoia
uma grande estátua, asas de bronze abertas para o céu, como um anjo insolente
de gênio, presto a escapar-se para a apoteose. Quem vai lembrar-se, diante
desta grandeza, do obscuro operário da muralha? O pedreiro trabalha; é o servo;
os outros triunfam. Triunfar é fabricar aparências. O melhor pedestal da nossa
vitória é o despeito da concorrência. A evidência fere o despeito com um
deslumbramento. Fabrica a evidência e verás.
"Nada me perguntes. Bem sei
do que digo. Sou muito velho. Chamam-me zombando o Experiência, e eu me chamo Século. Sou filho do Tempo e vou... meu
destino é ir. Os dias são os meus irmãos; passam por mim, conheço-lhes o
sorriso. Toma. Este é o cofre dos meus recursos. Retira a mão, cheia quanto
precisares. Tudo terás para teu filho. O condão misterioso da caixa guarda
expedientes contados pelos teus desejos. Tudo terá teu filho. Será grande,
iluminado, poderoso. Vencerá distâncias sociais e altitudes de prestígio.
Fidalgo? É pouco. Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Ele será Papa!
Chamar-se-á - Leão."
E o velho extinguiu-se numa evasão
de sonho, desfeito em névoa, em nada, como uma forma de vapores no espaço,
deixando apenas por momentos a impressão lúcida das alvas barbas, como a
lembrança de um meteoro.
"Fabrica a evidência e
verás, dissera o velho, fabrica e evidencia. Mas é incrível! A alma latente do
mundo não se revela assim... mas este cofre é real, é positivo. Uma ilusão
palpável?! E o que será então a realidade? Abramo-lo e ensaiemos."
Aberto o cofre, foi como um
derramamento de Paraíso. Expandiu-se no ambiente uma sensação de ventura que
chegou até às flores. Os pedúnculos dobraram-se vencidos, ternos da morbidez
langue do ar.
— Que meu filho apareça.
E mal fora este desejo enunciado,
que surgiu em pessoa Rogério, o rude, olhos oblíquos de selvagem, pelos fartos
à beira da testa, como orelhas de onagro:
— Que me quereis, pai?
— Que sejas nutrido...
E ali mesmo, a olhos vistos
Rogério inchou como um balão, arredondou-se de plástica; exibiu-se às ambições
paternas, bochechudo como um sopro de Éolo, alteadas as protuberâncias da carne
em polpas de ádipe, avançando e ostensivo o umbigo em próspero ventre de Sileno
jovem.
— Que sejas belo.
E no mesmo instante, sobre a
gorda prosperidade de Rogério, abriram-se as rosas da formosura. Esvaíram-se os
pelos do onagro; o olhar oblíquo do selvagem endireitou-se em franca
perpendicular, temperada de atrevimento. Fossem lá reconhecê-lo dentro daquela
frescura macia de cores e de carnes, esgaravatar-lhe a minguadíssima parcela de
boçalidade agreste que lhe servia de alma, nos interstícios da Ironia daquele
sorriso de bailarina petulante.
— Que detestes convictamente o
campo e todas as suas tentações.
E no coração de Rogério nasceu de
súbito estranho mal-estar, a febre dos predestinados; espécie de saudade
absurda de coisas desconhecidas, grandes ruas, vastas praças, tumulto e
movimento durante o dia, luz e festas durante a noite; sede de viagens e fome
de aventuras, avidez intensa por grandes tentativas e maiores êxitos. Apagou-se
a memória dos primeiros anos, a meninice de poldro, a adolescência de bode
farto. Fugiu-lhe de vez o aferradíssimo apego aos idílios do estrume e dos
fenos.
"Parte, meu filho, e vai
pelo mundo. Grande hás de ser, iluminado e poderoso. Fidalgo? É pouco.
Príncipe? Pouco. Monarca? Ainda pouco. Tu serás Papa! Chamar-te-ás Leão.
Parte!"
E tantas vezes abriu-se o cofre
dos recursos que, Rogério o rude subiu ao trono pontifical.
Mordei-vos, despeitados!
Invejosos, imitadores e plagiários, basbaques das honrarias que levais a vida
olhando para o alto, impotentes de todas as categorias, e de todas as ambições,
mordei-vos! Ele triunfou. Entronizou-se no superlativo da pose. Tudo que se
arma na terra de brocardo e ouro, tudo ele foi; hoje, é Papa e chama-se Leão.
Dobrai o joelho; beijai-lhe as pegadas, que cada prego de seu calçado grava no
chão um selo de santidade. O favor de um só dos seus olhares exalta-nos e nos
enche com a munificência de Assuerus. Que se há de fazer ao homem a quem el-rei
quer honrar? Ele olha e basta. Aquele olhar veste-nos do linho real, e, sobre
opulentos jaezes de um corcel altivo, passeia-nos através dos aplausos de uma capital
em delírio.
Roma é o cenário do seu triunfo,
a herdeira universal do esplendor artístico das idades, do aparato ostentoso da
humana vaidade no passado, metrópole arrogante de todas as ênfases do
catolicismo, orgulhosa da glória dinástica das próprias tradições.
Lá está.
Diante, rojam-se os cardeais,
fazendo agitar-se em mar de sangue a multidão dos ombros em cabeções vermelhos.
Mais baixo, no escuro, a massa miserável de uma população prostrada. Dessa
humilhação e dessa sombra, eleva-se apenas, medroso ainda assim de se elevar,
um murmúrio de prece. Ao redor do trono, sob o dossel, vistosa homenagem da
Arte, imagens que passam com a expressão celestial dos rostos de Fra-Angélico,
visões da capela Sixtina, academias funambulescas que se contorcem, acrobatas
do terror, que se despenham de toda a altura do céu e da Fé - povoando o espaço
de aspectos contraditórios em grandiosa desordem, enquanto vibra e avulta,
solene na cúpula enorme, a música dos êxtases de Santa Cecília.
E ele no centro, Rogério, hoje
Leão, nutrido e belo, em seda branca da cor das transfigurações, sob a tiara de
ouro, pasmado de se ver tão grande, mal avistando ao longe, na multidão, o pai
que o adora de baixo, acaçapado e satisfeito!
Até que um dia, notando-se-lhe
espantosa imobilidade, como se pela magia transformadora das grandezas,
acabasse por se consubstanciar o entronizado com o trono, alguém ousado subiu
até a eminência a verificar...
Levantaram-lhe a tiara como uma
tampa, e viram, maravilha! e viram, no fundo, seco, mirrado e reduzido...
Rogério, o rude, morrera havia
muito, dentro daquela armadura de esplendor e de aparência, da nostalgia dos
seus campos, represália terrível da boçalidade ludibriada.
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