Reflexões
sobre Camilo Castelo Branco
Quando levantei os olhos dos livros de Camilo, nos quais durante anos a minha alma chorou quantas lágrimas neles se desfiam, e vi, projetada já no espaço de mais de duas décadas, decorridas sobre a tragédia de Seide, a sombra gigantesca deste extraordinário espírito, sem uma coluna de granito ao menos, a sobrepujar os horizontes, com o seu nome esculpido a letras de ouro, a refulgir ao sol da nossa terra e a apontá-lo às almas de todas as gerações, senti-me envergonhado da vergonha que pesava sobre a minha Pátria!
Foi
no referver dessa revolta contra tanta miséria moral e intelectual desta terra,
oficialmente representada por uma fauna de medíocres, onde só raramente tem
reflexo o vigor e a claridade mental da raça, escrevi em 1913:
"Para
não acamaradarmos com todos os nacionalíssimos parvos e maus, teremos de lavrar
um protesto fervoroso contra o indiferentismo indigno e pelintra... É preciso
cavar na injustiça inconsciente do maior número, e aplicar a férula aqueles que,
apegados no comum de seus ódios e soberbas, pretendem desluzir a grandeza
imponente da obra do mestre. É preciso quebrar o silêncio, descondensar o
escuro indiferentismo que tombou sobre a campa de Camilo. É preciso que os
malévolos não vinguem cobrir de ingrato esquecimento a sua memória...
Os
ossos de Camilo, para deslustre de nós todos, ainda estão num cemitério do
Porto, deixados ali para o canto de um jazigo, emprestado à família pela
família de Urbino de Freitas!... Camilo Castelo Branco... não tem encontrado
nos portugueses, salvo uma ou outra exceção, isolada ou desaparecida, quem se
levante a reclamar, por amor da dignidade nacional, o que de justiça pertence
ao lustre imarcescível do seu nome."
Era
justificada a minha indignação, tanto referindo-me a Camilo, como a muitos
outros, dos grandes, dos maiores!
A
nossa história quase que tem em cada página um nome, que, só por si, é uma
epopeia.
Pois,
excetuando o infante D. Henrique; o Afonso de Albuquerque, que ficou uma
espécie de manecas, vestido de Vasco
da Gama, no alto da coluna; o Camões,
que parece um enjeitado, enconchado nas ombreiras de uma escada; o Eça, que por exceção revive em obra
perfeita, mas que, por mais pequena que seja, é sempre grande demais para a
estreiteza do Quintela; excetuando o senhor D.
Pedro IV e o V, mais o Duque de Saldanha e a Morgadinha de Val Flor, que não se sabe
porque pararam assim... em estátuas... pelo mundo... até o que tão prodigamente
se dá hoje a qualquer rabiscador de pensamentos livres, tem sido negado ao
Herculano, ao Garrett, ao Fernão de Magalhães, a D. João de Castro, ao Antero,
ao Padre Antônio Vieira, ao Bernardes, ao Fernão Lopes... a Camilo Castelo
Branco!
E,
todavia, tinha-se dito e escrito muito a respeito de Camilo, e muito se tem
dito e escrito, depois do que eu escrevi em 1913!
Mas
não passava tudo de palavras fugazes, apesar de nos discursos aquecidos se
chegar no louvor a exageros condenáveis!
E
eu, que sempre tenho sabido respeitar o valor que os vivos me merecem, e
considerar e venerar as cinzas dos mortos que deixaram aumentada a grandeza
espiritual da nossa terra, com o propósito de arrancar ao abandono desolante o
rasto que deixou na terra essa brilhante estrela das letras portuguesas,
procurei definir a mim próprio, tendo ouvido e lido quanto se dizia e escrevia,
o motivo da homenagem da nação a Camilo Castelo Branco.
As
reflexões que, na intimidade do pensamento, apresentei a mim próprio, vou agora
dizê-las ao público.
É
feitio dos portugueses, em geral, não se especializarem e, por isso, adejarem,
simplesmente, por todos os assuntos, produzindo obra de superficialidade, que
se banaliza em si, e causa não poucas perdas e danos, como sementeira de falsas
aparências feita na ignorância comum, por se tornar seara bravia, donde toda a
gente tira farta colheita de erros.
Por
serem superficiais, também os portugueses se lançam de repente, entontecidos,
nos entusiasmos exagerados, porque a aragem, soprada pelas primeiras
impressões, se torna logo em tumultuoso vendaval. E, como esse tumulto, sem
base de raciocínio, sem corpo de crítica mental, é paixão momentânea, que,
arrefecido o primeiro impulso, esmorece, passado ele, quedam fatigados,
indiferentes, quase arrependidos, a bocejar de tédio, como sucede aos
borrachos, delidos os fumos da bebedice.
Ora
eu queria que a nação se erguesse em peso, e, numa só voz, como uma enorme
potência espiritual, entoasse a sua oração de amor e de glória ao espírito vivo
de Camilo.l Mas queria que a nação, orando assim no Templo da Pátria, tirasse
da própria consciência a força e a luz do seu exaltado louvor!
Já
que é impossível, porém, ter o gozo inefável de sentir a harmonia dessa voz
excelsa de um povo ascendido a tão alta per feição, que ao menos aqueles que
são, ou pretendem ser, consciência na triste obscuridade da alma do maior
número, não ensinem mal os outros, apregoando absurdos motivos de homenagem,
nem sejam desleais a todos, a si próprios, e à pureza em que deve manter-se o
espírito dessa homenagem, manchando-se com intuitos de deprimir alguém à custa
da exaltação de Camilo!
Que
saia puro, pelo cérebro e pelo coração, o culto que as nossas almas dão à
memória do Mestre.
A
pureza pelo coração consiste em conservar no culto a serenidade do sentimento,
não lhe pondo mancha de ruim paixão; quer dizer, não escurecendo a luminosidade
natural e própria do espírito que se venera, com a intenção de,
engrandecendo-o, diminuir a luz própria de outros espíritos.
Cada
espírito tem a sua área de ação radia numa determinada esfera; e no circuito em
que a sua luz revoluciona, constitui uma personalidade, revela uma grandeza
espiritual, una e inconfundível.
Quem
fosse, por exemplo, alentar louvores a Camilo, com a preocupação de depreciar a
grandeza do Eça, cometeria um erro intelectual tão grande, que só podia ter
explicação na cegueira de uma paixão baixa; pois que, nem diminuindo o Eça se
aumenta a grandeza de Camilo, nem vice-versa. O Camilo e o Eça são dois grandes
espíritos, distintos, inconfundíveis, não precisando, para serem grandes, que
nós nos tornemos indignos deles e de nós próprios, procurando, aos olhos dos
ignorantes, diminuir um em proveito do outro.
A
pureza do cérebro será não ultrapassar os limites da grandeza aonde queremos
que ascendam nossos louvores.
Cuidemos
de Camilo no que ele foi grande entre os grandes, e, não exorbitando aí da sua
grandeza, tenhamos ainda mais cautela em não nos desviarmos da razão,
apregoando e sugestionando falsos motivos à homenagem pública!
Se
para interessar a sensibilidade nacional no culto de Camilo, é preciso mentir à
nossa consciência e dar mau ensinamento, que fique circunscrita a homenagem,
mas não se falte ao respeito devido à Verdade.
A
cada passo se fala e se escreve da dor na vida de Camilo... Chama-se-lhe O Desgraçado... O Torturado, chegando quase a considerar-se, senão a impor-se, a dor na vida de Camilo, como uma
faculdade suprema do seu espírito, como uma manifestação do seu gênio, e, como
tal, na órbita formidável da sua grandeza, e objeto da admiração, da adoração,
do louvor, da homenagem de uma nação inteira!
Pois
eu, que ouso afirmar, que Camilo, no que foi verdadeiramente grande, no que foi
mil vezes maior do que mestre da língua, não pertence a Portugal, porque é da
humanidade toda, revolto-me contra a confusão da dor na vida de Camilo com a
sua obra enorme — único objetivo das honras nacionais e do culto eterno da
Pátria!
Desgraças...
torturas... dores!!
Se
houvéssemos de erguer um monumento a todos os desgraçados e torturados, tinham
de ser tantos, que, perante o manifesto absurdo de tão vária e vasta
consagração, acabaríamos por erigir um só monumento à Dor Humana! Mas esse
ninguém o faria mais perfeito que o próprio Camilo; mas esse é a própria obra
de Camilo— que foi o estatuário sublime do corpo vivo da Dor!
Mas
ha mais ainda.
Quando
aqueles que chegam à loucura de fazer de Camilo um herói de revólver em punho,
desfechando contra a dor própria, julgam que lhe acrescentam à grandeza,
confundindo o espírito, que imortalizou, numa obra, a sua humanidade, com o
homem vulgar, que se atirou da própria obra abaixo, diminuem-no,
amesquinham-no; e quem sabe se o desgraçam ainda mais, se lhe fazem ainda mais
torturante a tortura que o atormentou!
Pois
quê! Esse espírito, que levou as suas inúmeras criações, a subir os calvários
da Dor, e as elevou aos mais altos e acerados picos da mesma Dor,
purificando-as, salvando-as na resignação sublime, para lhes abrir, lá no mais
alto, o mais belo dos sorrisos sobre asas de anjos a roçar no Céu, é grande por
ter sucumbido?!
Onde
está a heroicidade, a grandeza do suicida?!
Em
renunciar à vida?!
Mas
qual é, em definitiva, o fim que almeja o homem nessa renúncia? Por que é que
se mata?
Por
que lhe falha o entendimento? Por que se lhe perturbam as funções do sistema
fisiológico? Por que se torna um anormal? Mas, nesse caso, o suicídio é um ato
de loucura, e o homem que se mata é um louco; não é um herói.
Se
admitimos no suicida o funcionamento normal do sistema fisiológico, que busca o
homem que se mata? Qualquer que seja a sua filosofia ou qualquer que seja a sua
crença, enche-lhe o coração a esperança de sofrer menos, matando-se, ou até de
não sofrer nada. Foge à dor que está sofrendo, em busca de uma dor menor, ou, e
principalmente, em busca da ausência da dor, que ele se habituou a localizar no
corpo contra o qual atenta! Mas isto não é ser herói; é ser cobarde.
A
alma de Camilo fraquejou; e, por isso, sucumbiu a uma adversidade vulgar. E se
essa adversidade vulgar tomou aos olhos de si próprio maior vulto, porque ele
era dotado de faculdades superiores, maior devia ter sido a resistência...
Quem
quer que seja, o suicida é um defectista...
Aquele
que, num súbito momento, ao desabar do infortúnio sobre si, se mata, como quem,
empurrado, sem contar, à borda de um precipício, se despenha no abismo, tem
desculpa perante nós, porque o seu ato não foi senão a consequência de uma
perturbação momentânea do sistema de relação, de um estado súbito de loucura.
Mas
ninguém lhe poderá chamar herói. Aquele que premedita a fuga, com intenção de
não sofrer os embates da vida, comete uma defecção, perante todas as filosofias
do mundo e todas as religiões da terra.
E
quanto mais absoluto for o critério materialista que presida ao julgamento do
fato, mais ressaltará a cobardia do suicida; porque, segundo esse absurdo
critério, o refratário, ao fugir à dor, mais esperança terá em mergulhar na
inconsciência, na cinza da personalidade, na ausência do sofrimento, no nada,
no sossego eterno!
E
é isto heroicidade?! E é isto grandeza?!
Deixemos
Camilo, em paz, no mistério do seu drama, que é, afinal, o mistério do drama
humano.
Não
pretendamos fazer das fraquezas atos heroicos. Não confundamos a vida do homem
com a obra do escritor; porque a grandeza e a excelência desta estão nela
própria e não nas circunstâncias que levaram Camilo a fugir à dor que o
torturava.
De
mais a mais, a razão da sua dor estava nele próprio... era a razão da sua vida.
Não ajuntemos, com as nossas leviandades de pensamento e de crítica, maior mal
ao mal imenso que ele a si próprio fez. Não há na literatura portuguesa
romancista que, de longe ou de perto, se possa comparar a Camilo!
Camilo
é uma das maiores glórias literárias destes últimos séculos!
É
quanto basta e é tudo; porque está nisso a sua grandeza, e podemos proclamá-la,
sem ofensas à Razão, sem prejuízo de ideias, sem dano aos homens e... sem
lisonjas à sua memória.
---
CARLOS BABO
CARLOS BABO
"À beira do centenário de Camilo". Portugália
Editora. Lisboa, 1920.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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