Lima Barreto, o biógrafo da alma carioca
Naquele tempo eu trabalhava num
jornal, era apenas revisor, e ainda não me interessava por literatura. Levava o
meu tempo, quando não havia provas para corrigir, a olhar os tipógrafos juntar
aquelas minúsculas letras, de uma a uma, numa agilidade incrível. José Barbosa,
um rapaz baixinho e muito inteligente, era o mais ágil, não havia em toda
Aracaju quem o igualasse. Distraía-me a olhar os movimentos dos seus dedos, no
vai-e-vem infatigável, a formar nomes, linhas, períodos, colunas inteiras do jornal.
Simpatizamo-nos mutuamente, aos domingos e feriados, ele levava-me para à sede do clube
de que era presidente, um clube suburbano, dono de uma história muito cômica. Na
sede do clube havia uma estante cheia de livros, posta ali para encher mais um
pouco a sala, por sinal um tanto vasta. Pertencia a um vizinho, o professor Santos
Melo, que por uma bela partida de futebol abandonava os seus alunos nas situações mais críticas.
De tudo havia na estante. Stevenson já estava para levar aos mares do sul, em companhia de Somerseth Maughan. Conheci a
China misteriosa, entrei em contato com a gente da velha China, com Pearl Buck
servindo-me de cicerone.
Conrad me fez amante do mar,
fez-me encontrar-me com o seu vizinho, na estante, Dostoievski, o Dostoievski
dos "Irmãos Karamazov", também do "Crime e Castigo" e do
"Príncipe Idiota". Machado de Assis revelou-me um mundo diferente,
apresentou-me personagens casadoiras, e já muito tarde, descobri Lima Barreto.
Aquele Balzac mestiço, que Grieco afirmou ter escrito a "comédia
suburbana", ensinou-me a amar a cidade do Rio de Janeiro. O Rio dos bondes
de burro e dos boêmios ruidosos perdidos nas madrugadas frígidas, pelos becos
engordurados. O Rio dos começos do século, que já não distante vai, parecia-me ali
no salão de honra do clube que Barbosa era presidente. Admiravelmente fixado,
em páginas vibrantes, nas quais estavam retratadas as figuras mais
representativas. Lima Barreto, o romancista típico e apaixonado de uma época,
dali por diante, iria exercer em mim uma
influência muito grande. Se há mesmo biógrafo de paisagem, e da alma de uma
cidade, Lima Barreto foi o biógrafo da alma e da paisagem do Rio dos princípios
do século. Sofrendo a injustiça dos preconceitos, o homem que traçava criaturas
e enredos sempre tangíveis, levava uma vida amargurada, sob um destino
impiedoso. As suas histórias são singulares depoimentos de uma chamada
filosofia torturada. Escreveu a história de um idealista, Policarpo Quaresma.
As memórias de Isaías Caminha, na qual encerra uma lição profunda da verdade
acerca das perdições humanas. Morreu Lima Barreto dolorosamente decadente,
esquecido. Hoje, os que se dão ao nome de evocadores de sua vida, de estudiosos
de sua obra, só têm mesmo nos revelado um Lima Barreto mergulhado numa
inveterada boemia, como um esbanjador de talento. Enfim, um Lima Barreto
diferente do que eu, como sempre, imaginei na província, impecável, vivendo
exclusivamente para moldar as suas histórias e os seus personagens.
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RAIMUNDO SOUZA DANTAS
Revista "Carioca", 9 de março de 1946.
RAIMUNDO SOUZA DANTAS
Revista "Carioca", 9 de março de 1946.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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