Jesus
Assim que agora nenhuma condenação há
para os
que estão em Cristo Jesus,
que não andam segundo a carne,
mas segundo o espírito.
São Paulo, Epístola aos Romanos
***
Depois
de acalmar a irada tempestade das águas, Jesus voltou novamente de rumo à Galileia
que deixara para ir à terra dos Gadarenos. Mas agora as águas eram tranquilas,
quietas como a pureza macia do céu azul, refulgentes e meigas como as pupilas
do Nazareno.
Pela
região se sabia que na outra banda, logo ao pisar terra firme, Cristo fizera
milagres, porque afugentara os maus espíritos de um louco, prisioneiro de
sepulturas onde o recolhiam algemado e agrilhoado; mas o doido partia as correntes,
subia aos montes, descia às covas onde nas duras e pontudas pedras, rasgava a
fragilidade de sua carne. Cristo o curara; em sujos porcos prendera os imundos
espíritos, que com a manada se afogaram nas águas inquietas; e o louco levou a
fama do Mestre a sua terra em Decápolis. Todas as multidões perguntavam quem era
aquele homem que com tanta mansidão acalmava as procelas, dava vista aos cegos,
curava corpo e espírito, dizia tão eloquentes parábolas, — e através de todos
esses milagres era o Mestre perfeito? A sua gloriosa fama chegou até Jairo,
Príncipe da Sinagoga. E logo sabendo este do regresso de Jesus, foi ao seu
encontro, e assim lhe falou:
—
Oh! Mestre, ouve a minha palavra porque a minha boca é um sepulcro de dor. Há
doze anos pela graça do céu, de minha mulher nasceu uma filha a quem amo e
estremeço pelos encantos da sua pessoa e pela afetiva bondade do seu coração. É
minha filha; se tu a visses certamente a amarias! Quando ela saía aos campos, vinham
as ovelhas e os cordeiros comer as ervas à palma de sua mão, — fresca como um lírio
dos montes, rosada como a aurora em Belém; e as andorinhas revoavam em tomo de
sua cabecinha loira, e as abelhas esvoaçavam ao redor de sua boca vermelha, — doce
como uma colmeia em que se fabricam favos de beijos. Pairava sobre ela a graça
do Senhor, e tinham descido sobre ela todas as bênçãos do céu. Pôs-se a
coitadinha de repente a definhar; mais frágil do que a onda que se quebra na
praia a saúde de minha filha foi fanando. Flor que ela era ainda hoje o é, mas
tão emurchecida que só de vê-la os olhos se enchem de lágrimas como neblina de
inverno. Seus bracinhos estão agora como hastes suportando o doce peso de duas
rosas brancas. Oh! Mestre, tu que és, infinitamente misericordioso e bom; tu
que geras milagres com a mesma facilidade com que o céu se recobre de estrelas;
tu que esconjuras os demônios; ah! tu bem podes salvar um anjinho do Senhor!
Jesus,
erguendo o braço de dentro da ampla manga da túnica, pousou de leve a mão no ombro
de Jairo, que todo se recobriu de uma refulgente luz; e descerrando os lábios,
disse em palavras mais doces do que beijos:
—
Um homem opulentamente rico, que todas as coisas da terra podia com dinheiro
comprar, cultivava com apurado esmero um jardim; tinha ele terra fecunda e boa,
e descia de uma fonte a água maviosa e tranquila; sem falar na água do céu que
era muita. Mas nem a chuva benéfica, nem o orvalho da noite puderam fazer que no
jardim surgisse mais de uma roseira; e a roseira só deu uma rosa. E o rico
homem que ao princípio ficou triste, consolou-se pensando que a planta vicejava
e que a flor era sempre purpurina e cheirosa. Uma vez a roseira começou a
definhar, e a rosa começou a emurchecer; o homem tudo fez para salvá-las, e
todos os conselhos ouviu. E estes eram muitos: uns achavam que eram espinhos;
outros achavam que só das lagartas vinha o mal. Enquanto isso, roseira e rosa
morriam. Foi então que apareceu um jardineiro, e deu-lhes outra vez a virtude
que de Deus trouxera. Tu talvez sejas o homem rico; a rosa é a tua filha; a
roseira é a vida; mas eu sou o jardineiro de Deus. Vai, e tem fé! Salvarei a
tua filha.
Jairo
partiu cheio de esperança e de fé, porque, à sua vista, uma mulher doente que
se roçou no manto de Jesus logo sarou da enfermidade. Em verdade, em verdade!
Que homem prodigioso era aquele?
Passaram-se
algumas horas, e viu o Príncipe da Sinagoga que o Mestre Perfeito não chegava:
foi outra vez em sua busca, com marcha vacilante e palavras que hesitavam:
—
Mestre! Se tardas em ir, bem receio que só encontrarás em minha casa um cadáver!
Minha filhinha bate às portas da morte; já os homens de saber afirmam que é
tarde e ela se não salvará. Tem pena de mim! Vai salvar a minha filha!
Jesus
moveu para o pai aflito a refulgência luminosa dos seus olhos tranquilos:
—
Não temas, homem! Eu te disse que tua filha se salvará; guarda mais a confiança
e acrescenta a tua fé! Por mais que te digam de perigos insensatos; por mais
que te aflijam a esperança, por mais que te deitem veneno no sofrimento;
lembra-te da minha promessa, e crê na salvação de tua filha! Antes que
desesperes terceira vez, eu lá irei e a curarei.
De
novo partiu Jairo, e ao voltar-se uma vez viu Jesus em pé e sereno, com a face
angélica voltada para o céu azul. Mas ai de Jairo, que ao chegar à casa teve
tempo apenas de beijar a filha que parecia morta. Voltou acompanhado de muitos
dos seus à procura de Cristo que em caminho encontrou.
—
Mestre, vem depressa! Tarde chegarás para salvar a minha filha! E como Jesus se
apressasse disseram em torno:
—
Oh! Jairo, por que atormentas o Mestre, se tua filha já está morta?...
Mas
Jesus, estendendo a branca mão sobre o Príncipe da Sinagoga:
—
Não temas! Crê na minha palavra que é a palavra de Deus!
Então,
todos aqueles incréus, em alvoroço do milagre prometido, quiseram acompanhar
Jesus e Jairo; mas por ordem do Mestre, foram apenas Pedro, Tiago e João, irmão
de Tiago.
A
tarde ia alta, e começava a cair o crepúsculo...
Quando
os cinco homens entraram, mais desencontrado ia o alvoroço em casa de Jairo.
Elevavam-se preces como voos de asas, pedindo misericórdia ao Senhor; depois as
promessas cessaram e eram apenas surdas lamentações sobre o corpinho da criança
morta. Jesus, à porta, perguntou:
—
Por que vos alvoroçais? Por que tanto gemido e tanto pranto? Serenai os vossos
corações, guardai as vossas lágrimas, que a menina não está morta, e apenas
dorme...
Isso
ouvindo todos riram como às insensatas palavras de um visionário; e o Mestre,
diante da falta de fé daquela gente, expulsou a todos dizendo:
—
Aqui só permanecerão os que têm fé e amor — porque a misericórdia não é feita
nem de pedras nem de cardos.
Depois,
acompanhado dos que com ele tinham vindo, e mais também da esposa de Jairo,
entrou no quarto da menina.
Branca
e imóvel a formosa criança jazia com os olhos cerrados, a fronte muito pálida,
envolta na auréola dos seus cabelos loiros. Jesus achou que os olhos fechados
eram como um céu azul dentro das nuvens negras de uma tempestade; a mãe aflita
— que, apenas no quarto, se debruçara chorando sobre o leito da filha morta — ergueu-se
de repente, grande, trágica, dolorosa, indo cair ajoelhada aos pés do Rabi, que
tinham o pó das estradas:
—
Jesus de Nazaré, olha para a minha dor e salva esta criança, única filha das
minhas entranhas!
Rabi
Ieshua sorriu, e disse num outro sorriso:
—
Tem fé, mulher!
Houve
um longo silêncio; nesse minuto de espanto, Jesus dirigiu-se para o leito.
Todas aquelas pessoas eram como estátuas petrificadas: a mãe do anjinho ainda
ajoelhada, os cabelos soltos como a cólera do oceano, com os olhos em êxtase
fitava Jesus e a menina; Jairo pálido e imóvel segurava a cabeça entre as mãos.
Pedro, Tiago e João, a um canto da sala, ajoelhados rezavam. Jesus sorriu outra
vez, — e tomando a mão da menina, murmurou como uma carícia:
—
Vem, minha filhinha, levanta-te!
E
logo a menina, como se as palavras divinas lhe dessem asas, levantou-se
sorrindo, e foi cair nos braços paternos...
Depois
abraçou Jesus que a estreitou ao peito longamente, amorosamente, cobrindo-a de
beijos, diante da derramada alegria de Jairo e de sua esposa, diante do
assombrado espanto dos companheiros.
Mas
aos pais do anjinho parecia, vendo Jesus abraçar e beijar a filha ressuscitada,
que um milagre também nele se operara, — e que aquele Deus pela primeira vez
era um Homem...
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Pesquisa, transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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