Camilo Pessanha: o poeta sem arte
poética
O senhor
Camilo Pessanha é um lírico intacto, sem complicação, sem mistura, sábio na aparente
ignorância das regras, oferecendo-nos uma poesia vaga, ingênua, quase inconsciente,
que lhe flui da alma gota a gota, exatamente como a água de uma clepsidra.
Assim ele ouve...
...as arcadas
Convulsionadas
Dos violoncelos.
E lembra...
Trêmulos astros,
Soldões lacustres,
Lemes e mastros
E os alabastros
Dos balaustres...
Não
há aí uma ponta, uma suspeita de Verlaine, algo como uma recordação das árias
das “Festas Galantes?” Em tudo o que nos diz o senhor Camilo Pessanha sente-se
qualquer coisa de distante, de observado num país perdido nas brumas da lenda. Pouco
importa certas cadências irregulares, certos versos claudicantes, certa falta de
articulação nos ritmos, certas graças desajeitadas de sua Musa. Tem a rima
pobre, tem a dicção pecável, mas que poeta! Seus desfalecimentos de memória,
ainda mais sugestivo o tornam e as suas ressonâncias longínquas como que se
prolongam em nós, enchendo-nos de um langor inebriante. Não é dos que cinzelam
estrofes como taças, e na sua música de palavras há uma espécie de sonho escrito.
Senão, ouçam:
Se andava no
jardim,
Que cheiro de
jasmim!
Tão branca do
luar!
.......................................................
Eis tenho-a
junto a mim.
Vencida, é
minha, enfim,
Após tanto a
sonhar…
Porque
entristeço assim?…
Não era ela,
mas sim
(O que eu quis
abraçar),
A hora do
jardim…
O aroma de
jasmim…
A onda do
luar…
Apesar
da modéstia do autor da “Clepsidra”, encontramos aqui beleza verbal, beleza
cantante. Esse contemplativo que vive no Oriente, longe dos civilizados, a
fumar ópio, a beber chá e a vagar em barcos floridos, tudo numa leve
embriaguez, numa alucinação meio fantasiosa, é simples como um fauno ou como um
pastor, é um bárbaro e é uma criança. Admirem-lhe estes versos a um amigo:
De sob o cômoro
quadrangular
Da terra
fresca que me há de inumar,
E depois de já
muito ter chovido,
Quando a erva
alastrar com o olvido,
Ainda, amigo,
o mesmo meu olhar
Há de ir
humilde, atravessando o mar,
Envolver-te de
preito enternecido,
Como o de um
pobre cão agradecido.
O senhor
Camilo Pessanha, é a um tempo ingênuo e complicado, caricioso e desdenhoso, e,
se tem vozes ásperas que nos fustigam, tem outras que são doces na sua
tristeza, dando-nos a impressão de uma sombra feminina que nos sussurre uma confidência
ao ouvido ou nos beije a boca no escuro. Às vezes, ocultando-lhe a ternura ou a
melancolia, notamos-lhe certo "humour" fantasista, de um satírico
sentimental, de um romântico que não quer parecer romântico, de um romântico por
assim dizer comprimido. Tal nos versos em que indica o assunto sem insistir,
sem submergir o leitor em metáforas vãs, tudo obtendo através de meias
palavras.
Desigual
mas sincero, o poeta da "Clepsidra" é dos que têm o direito de
cultivar seus defeitos com orgulho, como um canteiro de flores raras. É
original até nas suas imperfeições. Em suma: com sua indiferença pelos
preceitos técnicos, com suas frases bruscas, sem ligação aparente, que acabam
obtendo — não se sabe como — uma espécie de melodia contínua; sem receitas de
cozinha poética, sem estreita disciplina de escola, alheio à prosódia parnasiana
e a qualquer outra, desejoso unicamente de obter lindos efeitos de canção popular,
de "lied" germânico; não fazendo do soneto uma indústria e expulsando
a retórica dos seus versos, é ele um poeta quase sem arte poética, um artista que
não dá muita importância à estética dos manuais, e, entanto, seus versos são,
não raro, doces como aquele pássaro de que nos fala Renan e cujo canto parece serrar
os corações com uma serra de diamante.
---
AGRIPINO GRIECO
O Jornal, 2 de dezembro de 1923.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...