4/25/2019

Camilo Pessanha: o poeta sem arte poética


Camilo Pessanha: o poeta sem arte poética

O senhor Camilo Pessanha é um lírico intacto, sem complicação, sem mistura, sábio na aparente ignorância das regras, oferecendo-nos uma poesia vaga, ingênua, quase inconsciente, que lhe flui da alma gota a gota, exatamente como a água de uma clepsidra. Assim ele ouve...

...as arcadas
Convulsionadas
Dos violoncelos.

E lembra...

Trêmulos astros,
Soldões lacustres,
Lemes e mastros
E os alabastros
Dos balaustres...

Não há aí uma ponta, uma suspeita de Verlaine, algo como uma recordação das árias das “Festas Galantes?” Em tudo o que nos diz o senhor Camilo Pessanha sente-se qualquer coisa de distante, de observado num país perdido nas brumas da lenda. Pouco importa certas cadências irregulares, certos versos claudicantes, certa falta de articulação nos ritmos, certas graças desajeitadas de sua Musa. Tem a rima pobre, tem a dicção pecável, mas que poeta! Seus desfalecimentos de memória, ainda mais sugestivo o tornam e as suas ressonâncias longínquas como que se prolongam em nós, enchendo-nos de um langor inebriante. Não é dos que cinzelam estrofes como taças, e na sua música de palavras há uma espécie de sonho escrito. Senão, ouçam:

Se andava no jardim,
Que cheiro de jasmim!
Tão branca do luar!
.......................................................

Eis tenho-a junto a mim.
Vencida, é minha, enfim,
Após tanto a sonhar…

Porque entristeço assim?…
Não era ela, mas sim
(O que eu quis abraçar),

A hora do jardim…
O aroma de jasmim…
A onda do luar…

Apesar da modéstia do autor da “Clepsidra”, encontramos aqui beleza verbal, beleza cantante. Esse contemplativo que vive no Oriente, longe dos civilizados, a fumar ópio, a beber chá e a vagar em barcos floridos, tudo numa leve embriaguez, numa alucinação meio fantasiosa, é simples como um fauno ou como um pastor, é um bárbaro e é uma criança. Admirem-lhe estes versos a um amigo:

De sob o cômoro quadrangular
Da terra fresca que me há de inumar,

E depois de já muito ter chovido,
Quando a erva alastrar com o olvido,

Ainda, amigo, o mesmo meu olhar
Há de ir humilde, atravessando o mar,

Envolver-te de preito enternecido,
Como o de um pobre cão agradecido.

O senhor Camilo Pessanha, é a um tempo ingênuo e complicado, caricioso e desdenhoso, e, se tem vozes ásperas que nos fustigam, tem outras que são doces na sua tristeza, dando-nos a impressão de uma sombra feminina que nos sussurre uma confidência ao ouvido ou nos beije a boca no escuro. Às vezes, ocultando-lhe a ternura ou a melancolia, notamos-lhe certo "humour" fantasista, de um satírico sentimental, de um romântico que não quer parecer romântico, de um romântico por assim dizer comprimido. Tal nos versos em que indica o assunto sem insistir, sem submergir o leitor em metáforas vãs, tudo obtendo através de meias palavras.

Desigual mas sincero, o poeta da "Clepsidra" é dos que têm o direito de cultivar seus defeitos com orgulho, como um canteiro de flores raras. É original até nas suas imperfeições. Em suma: com sua indiferença pelos preceitos técnicos, com suas frases bruscas, sem ligação aparente, que acabam obtendo — não se sabe como — uma espécie de melodia contínua; sem receitas de cozinha poética, sem estreita disciplina de escola, alheio à prosódia parnasiana e a qualquer outra, desejoso unicamente de obter lindos efeitos de canção popular, de "lied" germânico; não fazendo do soneto uma indústria e expulsando a retórica dos seus versos, é ele um poeta quase sem arte poética, um artista que não dá muita importância à estética dos manuais, e, entanto, seus versos são, não raro, doces como aquele pássaro de que nos fala Renan e cujo canto parece serrar os corações com uma serra de diamante.

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AGRIPINO GRIECO
O Jornal, 2 de dezembro de 1923.
Pesquisa e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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