Um aspecto do pensamento de Raul Proença
"A
primeira verdade a pôr em evidência — escreve em algum parte, com alguma
precisão, o pensador — é que é no direito individual e não no direito da número
que reside a essência da Democracia”.
Com
efeito, toda a filosofia política de Raul Proença se funda no princípio de que
a forma de Estado mais inelegível e aceitável à luz do seu espírito — a
Democracia — se define substancialmente como o regime de convívio em que a
liberdade pessoal é reconhecida como o maior dos bens, tanto no ponto de vista
jurídico objetivo como subjetivo.
Afastando-se
de muitos democratas impulsivos e pouco seguros, o pensador sistematicamente
recusa nos seus escritos a legitimidade da imposição majoritária no campo das
opiniões pessoais. As únicas divergências por ele reconhecidas como sujeitas a
legítimas restrições são as relativas a atos materiais ou forenses, de natureza
secundária, tais como: o fumar, o vestir, o andar deste ou daquele modo, nesta
ou aquela circunstância.
“...para
mim (escreve Raul Proença) uma noção fundamental é a da hierarquia dos
direitos, pois julgo absurdo colocar no mesmo plano o direito que possuo de
seguir por um lado da rua e o que tenho ou devo ter de defender nos meus
ideais. Um grau mais elevado, dentro dessa hierarquia, deve, pois, ser
reconhecido desde logo aos direitos espirituais (religiosos, filosóficos,
científicos etc.) que importam infinitamente mais, tanto sob o ponto de vista
de dignidade do homem como do valor social que qualquer direito de natureza
material."
"Ocupa
ainda um grau superior nessa hierarquia o direito de falar e de escrever
livremente sobre as coisas públicas. É um direito, este, que se deixasse de ser
exercido, viciaria o mecanismo mesmo da vida política, o funcionamento normal
do Estado.”
A
não ser nos atos que poderão se, com relativa legitimidade, objeto de
regulamentação, digamos urbana, o homem que vive na cidade tem jus a exigir que
a mesma cidade não amordace a sua opinião (se tal opinião se exprime com
dignidade e intelectual decência), por mais discordante que o seu modo de ver
ou de julgar seja relativamente ao daqueles, muitos ou poucos, que
transitoriamente elaboram e defendem as normas da vida em comum.
Tanto
acerca dos negócios de administração pública como dos assuntos meramente
especulativos, toda a pessoa deveria poder falar ou escrever sem a menor sombra
de apreensão. Isto é, apenas com a preocupação íntima relativa à legitimidade
dos seus juízos. “Serei justo no que vou ou estou a dizer a favor disto ou contra
aquilo? neste aplauso ou protesto?" — eis a única voz apreensiva que cada
pessoa deveria escutar na véspera ou no ato de intervir no julgamento de
qualquer ato ou homem público. Se em lugar dessa voz discreta e simples se faz
ouvir, na lividez do modo, no ímpeto da decisão colérica, na perturbação
visceral do ódio, outras formas espúrias de inibições ou impulsos, é porque não
existe verdadeiro espírito de contrato na sociedade a que lamentavelmente
pertence a pessoa política, ambas vítimas de tais sentimentos e ressentimentos.
Em
uma boa atmosfera de respeito mútuo, de governantes e governados, o primeiro
preceito de deontologia das suas relações consiste no reconhecimento da
elementar possibilidade, garantida pelas leis, de cada pessoa abrangida por uma
certa ordem jurídica apontar os vícios existentes, ou que julga existentes,
nessa ordem jurídica. Recusar ou limitar essa possibilidade de intervenção, em
uma só pessoa que fosse, era, aos olhos do pensador, pôr em causa os
fundamentos do acordo em que se baseia aquela melindrosa e inestimável forma de
convivência a que se dá por vezes o nome simbólico de "cidade".
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Tribuna da Imprensa, 1 de julho de 1950.
Tribuna da Imprensa, 1 de julho de 1950.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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