O Reino da Estupidez
Imitando
Erasmo no Elogio da Loucura, um
anônimo acertou, em 1784, o seu golpe satírico na velha Coimbra, com o poema O Reino da Estupidez.
Soube-se,
depois de inúteis pesquisas e atribuições gratuitas (e quando já carecia de
interesse a revelação), que fora a vingança do estudante de medicina Francisco
de Melo Franco, natural de Paracatu, contra a "reação" escolar. Nem
apenas deste disse-se também — pois outro brasileiro o ajudara a compor, copiar
e distribuir a obra-prima de insolência e insurreição: o paulista José
Bonifácio de Andrada e Silva, àquele tempo estudante de ciências físicas e
matemática.
Até
hoje o problema desafia a história literária, porque, em verdade, nenhum deles,
o que foi médico famoso e o Patriarca da Independência, esclareceu, ou sequer
insinuou, a parceria nesses versos flamejantes. Qual a contribuição que lhes
deu o jovem Andrada? Nutriam ambos as ideias ali traçadas, conspirando,
racionalistas e inconformados, nos conventilhos da mocidade afrancesada, em que
já se urdia a revolução liberal? Perpassará, enfim, pelo poema o espírito
rebelde de José Bonifácio, como o pintam e retratam as odes da primeira fase
recolhidas (em 1825) nas Poesias de
Américo Elísio — ou nada tem a ver com elas O
Reino da Estupidez?
Faz
luz no caso uma certidão de batizado
(divulgada por Augusto
da Silva Carvalho, o venerando
historiador da medicina portuguesa).
Em
dezembro de 1784, isto é, no ano em que estremeceu a Lusa Atenas com a
irreverência de tais estrofes ali, na igreja de São Cristóvão, José Bonifácio
levou a pia batismal o primogênito do colega Francisco de Melo Franco e de sua
mulher, Rita Doroteia Umbelina de Castro.
Romance
de estudante, precedera ao casamento a perquirição tenaz do Santo Ofício, que
não perdoava ao rapaz de Paracatu, "herege, e naturalista
dogmatista", a licenciosa opinião acerca da família: "negou o
Decálogo e o sacramento do matrimonio!" Na correspondência do cavaleiro de
Pollon (Lisboa, 2 de maio de 1780) informa-se que Rita Doroteia respondera por
iguais desatinos. "Que há três dias houvera em Coimbra um auto-de-fé
público em que a Inquisição desta cidade apresentou onze penitentes, entre eles
uma rapariga (une jeune fille) que,
como os demais, impava de materialista, desprezando todos os dogmas da Religião
Cristã!"
Não
deviam ser profundas as suas convicções, ou arrefeceram nas bênçãos do amor,
porque, mal se libertaram da alçada eclesiástica, um pároco os juntou em
casamento, e outro lhes batizou o filho, Justiniano de Melo Franco, o afilhado
de José Bonifácio. Estamos a vê-los, passando de confrades a compadres, no
tempestuoso começo da vida, a permutarem as suas angústias, sócios de
esperanças e amarguras, em guerra íntima com a intolerância. Implantara-se na
Universidade, desde que a autoridade sutil de D. Francisco de Lemos fora
substituída pelo regime retrógrado do Principal Mendonça, suspiravam pelo Marquês
de Pombal, os que escondidamente liam Voltaire; acusavam as ilustres
congregações do pecado considerável do atraso, da rotina, do isolamento; e na
primeira oportunidade — ao insurgir-se o lente José Monteiro da Rocha contra o
mesquinho sistema — saíram à liça com a sua funda de Davi; e as quatro pedras
do poema.
O
inimigo, no "Reino da Estupidez", é o fanatismo. Foragido e pérfido,
expulso pela "reta razão" de França ("Galica, nação
ligeira") e Inglaterra ("Britânica gente"), viera hospedar-se
com os "ilustres e sábios Acadêmicos"... Exatamente este é o sentido
da poesia de José Bonifácio "A Criação":
...Laços que
Natura
Forjou para os
viventes, meigos
laços que em
vão intenta férreo Fanatismo
Quebrar dentre
os humanos. Deus piedoso!
A
Ode de 1785, — inspirada no "gênio da inculta Pátria", repete e
consagra a objurgatória:
A frente
levantar não se atrevia
O Fanatismo
férreo,
No
"Reino da Estupidez":
As sublimes
ciências da Natura
Como podeis
tratar com tal desprezo?
A
comparação dos textos mostra-nos a equivalência das imagens, mesmo vigor dos adjetivos,
até a preocupação ''americana", conforme o preceito, ou antes, o
preconceito, de uma civilização atroz impondo-se aos selvagens, mais feroz do
que eles...
O
poeta da "Estupidez" filosoficamente chora a sorte do índio.
Aquele matador
e fero gênio
Que os duros
castelhanos animava
A regar de indiano
sangue um dia
México e Peru,
entre este povo
Agora mesmo eu
incitar podia.
Um inglês, um
gentio, um maometano,
Se as leis
civis o não vedassem tanto...
E
José Bonifácio (ou Américo Elísio):
Imbeles povos,
índios inocentes!
Do armado
Espanhol provam as iras.
Que Deus
fizera um Mundo creem os Tigres
Para ser presa
sua. Em toda parte
"Americano
sangue", inda fumando,
A terra
ensopa, e amolenta as patas
Dos soberbos
ginetes Andaluzes.
....................................................
Que queria o autor anônimo do libelo?
"Ver
um lente de imensos estudantes rodeado", colhendo pelos campos "uma
ervinha, uma flor, um gafanhoto", ou "com o fuzil ferindo as
pedras", isto é (na língua montanística), fazendo a sua botânica ou a sua
mineralogia, pelas serras, à procura de metais finos... O seu ideal era do
naturalista, contrariado na escola insensível às correntes modernas da ciência,
ansiando pelos novos métodos, que, depois de bacharelado e doutorado, foi o
moço santista aprender no estrangeiro, durante dez longos anos.
Essa
passagem do poema é uma indiscreta confissão de autoria.
Alterna-se,
porém, com a alusão às decepções dos médicos, em que reencontramos — com a sua
fogosa liberdade — Francisco de Melo Franco.
Em
lugar da anatomia, o "grande Lopes', pelo Natal "em um carneiro".
O bofe, o
coração, as tripas
todas a teus
hábeis discípulos mostravas.
Lopes,
é preciso que se diga, o Dr. Francisco Lopes Teixeira, encartara-se na cadeira
de anatomia por ocasião da "nova fundação da Universidade", em 1772,
e pertencia portanto à Geração purificada pelos Estatutos pombalinos.
Nisto
o vate era tremendamente injusto: mas a graça absolvia-o. E afinal, não julgava,
apupava; e com o tom clamoroso de chalaça e riso ia cantando a rebelião de
primavera. O mineiro ou o paulista? Os dois, já o dissemos. Porém, não se pode,
com o simples cotejo dos versos, tirar do Reino
da Estupidez a eloquência revolucionária de José Bonifácio. É dele o
estilo, e sobretudo a doutrina, feita de ternuras bucólicas, de ousadas
apóstrofes, de altivez bravia, essa doutrina juvenil de emancipação, luta e
beleza, quase um autorretrato!
Em
1831, na Imperial Academia de Medicina, ouviu o venerando Andrada sem desmentir
a referência que fez Cruz Jobim à sua colaboração no poema que sacudira a
Universidade de Coimbra.
Não
confirmou; mas o silêncio, em tal assembleia, e na idade das reminiscências
melancólicas, era uma concessão.
Aos
21 anos, a sua fúria demolidora lembra uma tempestade tropical, imprevisto formidável:
devastou alegoricamente a resistência e a incompreensão do século XVIII. Na
verdade correspondia ao desencadeamento das novas forças de um mundo e de uma
época em que previamente fixava o seu lugar: se não fosse um chefe, seria um
profeta; de qualquer modo, o homem do Destino.
Trinta
e oito anos antes de despedaçar o "Reino Unido", o estadista da
Independência poeticamente destruía o... Reino
da Estupidez.
---
PEDRO CALMON
Revista
"O Cruzeiro", 31 de agosto de 1963.
Pesquisa,
transcrição e atualização ortográfica: Iba Mendes (2019)
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