Ratinha de esgoto
— Dá-me um cigarro, Timóteo.
— Um Abdula?
— Oh! não me atrevia a tanto.
— É que eu não fumo Abdula. Eu uso fumo Veado, de pacotinho amarelo, e mortalhas de Gaston d'Argy.
— Que ignomínia, Timóteo!
— Talvez tenhas razão, meu caro
Ramalho. Realmente...
— Parece-me que te aborreci.
Garanto que não tive intenção...
— Realmente!
— Estava brincando...
— Olha, queres tomar um café?
— Vamos lá, Timóteo.
(No café, a uma das mesinhas do fundo)
— Garçom, café para dois.
— Então, o amigo Ramalho acha que
é uma ignomínia fumar do Veado, de
pacotinho amarelo... Entretanto, este pacotinho é tão cômodo! Olhe, tiro uma
porção de fumo, maior ou menor, conforme a hora, conforme o apetite; puxo por
esta mortalha, arranco-a como quem arranca uma pequenina página inútil do livro
da vida, enrolo nela este punhadinho de tabaco desfiado, ponho-lhe fogo... e...
fuuu!... fico a olhar a fumaça que sobe e que se dispersa...
— Quanto a isso de soltar fumaça
e ficar olhando, não é só com o Veado
que se pode fazer.
— De fato. Mas há uma diferença:
É que eu o faço unicamente para isso, ao passo que tu fumas os teus Abdulas, Sakelarides etc., só por
fumares Abdulas e Sakelarides, para teres entre os dedos
um cigarro fino, adocicado, caro, e da moda. Acresce que, a mim, o único
cigarro que vejo queimar com prazer, é esse. Tirem-me o Veado, e tiram-me o vício.
— Não há outro. Nenhum outro.
— Ora, esta... Vejo que estás
comovido, Timóteo! Ora esta... Mas que diabo disto é aquilo, ó seu Timóteo?
— Não há outro...
— Mas...
— Quer que eu lhe conte? Eu tinha
dezoito anos (porque posso garantir-lhe que já tive dezoito anos), morava no
Rio, frequentava uma roda horrível de boêmios machos e fêmeas. Um dia, conheci
uma menina, uma criatura ordinaríssima, uma ratinha de esgoto, uma vesícula
vanólica da cidade. Eu era um bruto, um palhaço, um bicho sem alma. A boêmia, a
minha roda de boêmios, todas as rodas de boêmios da Terra me aclamavam o mais
feroz, o mais divertido e mais grotesco dos boêmios.
— Isso é conto.
— Não crês? É o mesmo.
Encontrei-me um dia, ao acaso das troças e distúrbios, com essa menina sem
graça, sem beleza e sem coração. Uma bebedeira, um capricho, uma luta a copos e
garrafas num botequim de marinheiro, de contrabandistas e de rufiões — e, no
fim, eu, na rua, sozinho, às três da madrugada, a rebocar a minha pobre amiga,
que eu não amava, nem queria. Simpatizou comigo. Não sei se gostou do meu
cinismo, ou da minha fachada, que naquele tempo era menos má. Depois,
encontrei-a outras vezes, na mesma zona. Quando dei acordo, tinha-se-me
agarrado, com um carrapicho que se leva na roupa de passagem pela macega.
Protestei contra o seu desmazelo: tratou de se alindar... e começou a
procurar-me com maior insistência. Reclamei contra as suas maneiras
desconjuntadas e reles: tratou de se emendar, emendou-se... e entrou a
procurar-me todos os dias.
— Uma paixão, enfim.
— Da graúda. Para encurtar: a
páginas tantas, adoeceu. Coisa do peito. Levei-lhe o médico. Dei-lhe todos os
remédios. Para arranjar os meios, acabei por me empregar. Isso durou meses.
Afinal, morreu. E, quando morreu, morreu quase bonita, — parecia impossível! — morreu
bonita, muito branda, muito leve, muito fina, com um sorriso delgado e virginal
de criatura renascida. Era outra. E eu, também, era outro. Completamente outro.
Pela primeira vez conheci a gravidade, o recolhimento e a ternura.
— ... Mas, isso é sério, Timóteo?
— Como tudo quanto há de sério.
— Mas, agora, que é que tem tudo
isso com o fumo Veado?
— Por enquanto, nada. Escuta.
Larguei o Rio, larguei a boêmia, larguei a vadiação e a troça, vim para esta
nossa terra, tratei de encaminhar-me na vida... e cheguei a esta pacífica
posição que estás vendo, — pequeno proprietário e empregado público. Meu pai,
que morreu há dezoito anos, fez tudo para que me casasse. Minha mãe, que morreu
há cinco, punha-me no caminho todos os laços e arapucas matrimoniais que podia.
Minhas irmãs indicavam-me cada semana um partido inexcedível. Levaram-me a
bailes, introduziram-me na sociedade. Fizeram-me até viajar, para conhecer
meninas e viúvas. Fui requestado por duas ou três damizelas bonitas e
graciosas, — uma clara e breve, uma trigueira e forte, uma pálida e
sentimental... Não pude. Não pude de todo. Nunca encontrei uma carinha que
tivesse o sorriso dolorido e reconhecido de Amanda, aquele sorriso de meiguice
enlaçante e magoada, aquele sorriso-flor, aquele sorriso-gota d'água, aquele
sorriso-recompensa, inconfundível, indefinível, indescritível, que me entrou na
alma durante seis meses, que a perfumou, a amoleceu, a revolveu, a tocou em
todas as suas obras, que me deu a conhecer, com a doçura da lágrima e a ânsia
do desespero, a volúpia da minha primeira e única obra de arte.
— Mas, o fumo?
— Muito simples. Nesse tempo eu,
pobre boêmio sem mesada, sem emprego e sem vergonha, fumava Veado, porque era muito barato e saía
ainda mais barato do que custava, pois eu podia regular à vontade a grossura do
cigarro. Muitas vezes, reparti com ela o meu pacotinho. Muitas vezes. Nos meus
dias amargos de boêmio sem vintém, almocei e jantei cigarros de fumo Veado. Toda a minha história com Amanda
correu entre nevoeiros de fumo Veado.
Contraí com isso o meu hábito mais tenaz, — um hábito feito, hoje, de saudades,
de remorsos, de obsessões doces e dilacerantes, da infinita tristeza de um
nunca-mais que me purifica e me aniquila... A minha vida inteira teve o seu
pináculo na hora em que a minha ratinha de esgoto morreu sorrindo nos meus
braços. Tudo o mais que se seguir são ondulações que se prendem, num ritmo
decrescente, a essa altitude remota... Impossível esquecer.
— Mas, que diabo! isso tudo é
verdade?... Estás chorando, Timóteo?
— Alto lá! Bem vê que não estou
chorando. Então eu sou homem que chore! Garçom, outro café; mas bem quente!
(Uma pausa. Sorve-se o café em silêncio. Timóteo saca do seu pacotinho
de fumo)
— Portanto, o amigo Ramalho já
sabe porque é que eu prefiro fumar desta ignominiosa maneira.
— Mas, ainda não voltei do meu
espanto, Timóteo! Então, isso tudo é mesmo verdade?...
— Veja lá como eu estou mestre em
fazer os meus cigarros. Sou capaz de os enrolar com uma só mão. Aqui está o
fumo, vê? Agora, arranco a mortalha, — mais uma pequenina página inútil do
livro da minha vida — ponho-lhe o fumo, estendo-o, enrolo... Está vendo?
Pronto... Dá cá o fogo... fuuu!... Olha essa espiral que se esgueira por cima
de todo esse burburinho, de todas essas cabeças... Olha, olha, lá vai ela...
Acabou-se. — Moço, cobre aqui quatro cafés. Jesus, estou na horinha do meu
bonde! Ande com isso, ó funcionário!
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