3/26/2019

Ratinha de esgoto (Conto), de Amadeu Amaral


Ratinha de esgoto

— Dá-me um cigarro, Timóteo.

— Um Abdula?

— Oh! não me atrevia a tanto.

— É que eu não fumo Abdula. Eu uso fumo Veado, de pacotinho amarelo, e mortalhas de Gaston d'Argy.

— Que ignomínia, Timóteo!

— Talvez tenhas razão, meu caro Ramalho. Realmente...

— Parece-me que te aborreci. Garanto que não tive intenção...

— Realmente!

— Estava brincando...

— Olha, queres tomar um café?

— Vamos lá, Timóteo.

(No café, a uma das mesinhas do fundo)

— Garçom, café para dois.

— Então, o amigo Ramalho acha que é uma ignomínia fumar do Veado, de pacotinho amarelo... Entretanto, este pacotinho é tão cômodo! Olhe, tiro uma porção de fumo, maior ou menor, conforme a hora, conforme o apetite; puxo por esta mortalha, arranco-a como quem arranca uma pequenina página inútil do livro da vida, enrolo nela este punhadinho de tabaco desfiado, ponho-lhe fogo... e... fuuu!... fico a olhar a fumaça que sobe e que se dispersa...

— Quanto a isso de soltar fumaça e ficar olhando, não é só com o Veado que se pode fazer.

— De fato. Mas há uma diferença: É que eu o faço unicamente para isso, ao passo que tu fumas os teus Abdulas, Sakelarides etc., só por fumares Abdulas e Sakelarides, para teres entre os dedos um cigarro fino, adocicado, caro, e da moda. Acresce que, a mim, o único cigarro que vejo queimar com prazer, é esse. Tirem-me o Veado, e tiram-me o vício.

— Não há outro. Nenhum outro.

— Ora, esta... Vejo que estás comovido, Timóteo! Ora esta... Mas que diabo disto é aquilo, ó seu Timóteo?

— Não há outro...

— Mas...

— Quer que eu lhe conte? Eu tinha dezoito anos (porque posso garantir-lhe que já tive dezoito anos), morava no Rio, frequentava uma roda horrível de boêmios machos e fêmeas. Um dia, conheci uma menina, uma criatura ordinaríssima, uma ratinha de esgoto, uma vesícula vanólica da cidade. Eu era um bruto, um palhaço, um bicho sem alma. A boêmia, a minha roda de boêmios, todas as rodas de boêmios da Terra me aclamavam o mais feroz, o mais divertido e mais grotesco dos boêmios.

— Isso é conto.

— Não crês? É o mesmo. Encontrei-me um dia, ao acaso das troças e distúrbios, com essa menina sem graça, sem beleza e sem coração. Uma bebedeira, um capricho, uma luta a copos e garrafas num botequim de marinheiro, de contrabandistas e de rufiões — e, no fim, eu, na rua, sozinho, às três da madrugada, a rebocar a minha pobre amiga, que eu não amava, nem queria. Simpatizou comigo. Não sei se gostou do meu cinismo, ou da minha fachada, que naquele tempo era menos má. Depois, encontrei-a outras vezes, na mesma zona. Quando dei acordo, tinha-se-me agarrado, com um carrapicho que se leva na roupa de passagem pela macega. Protestei contra o seu desmazelo: tratou de se alindar... e começou a procurar-me com maior insistência. Reclamei contra as suas maneiras desconjuntadas e reles: tratou de se emendar, emendou-se... e entrou a procurar-me todos os dias.

— Uma paixão, enfim.

— Da graúda. Para encurtar: a páginas tantas, adoeceu. Coisa do peito. Levei-lhe o médico. Dei-lhe todos os remédios. Para arranjar os meios, acabei por me empregar. Isso durou meses. Afinal, morreu. E, quando morreu, morreu quase bonita, — parecia impossível! — morreu bonita, muito branda, muito leve, muito fina, com um sorriso delgado e virginal de criatura renascida. Era outra. E eu, também, era outro. Completamente outro. Pela primeira vez conheci a gravidade, o recolhimento e a ternura.

— ... Mas, isso é sério, Timóteo?

— Como tudo quanto há de sério.

— Mas, agora, que é que tem tudo isso com o fumo Veado?

— Por enquanto, nada. Escuta. Larguei o Rio, larguei a boêmia, larguei a vadiação e a troça, vim para esta nossa terra, tratei de encaminhar-me na vida... e cheguei a esta pacífica posição que estás vendo, — pequeno proprietário e empregado público. Meu pai, que morreu há dezoito anos, fez tudo para que me casasse. Minha mãe, que morreu há cinco, punha-me no caminho todos os laços e arapucas matrimoniais que podia. Minhas irmãs indicavam-me cada semana um partido inexcedível. Levaram-me a bailes, introduziram-me na sociedade. Fizeram-me até viajar, para conhecer meninas e viúvas. Fui requestado por duas ou três damizelas bonitas e graciosas, — uma clara e breve, uma trigueira e forte, uma pálida e sentimental... Não pude. Não pude de todo. Nunca encontrei uma carinha que tivesse o sorriso dolorido e reconhecido de Amanda, aquele sorriso de meiguice enlaçante e magoada, aquele sorriso-flor, aquele sorriso-gota d'água, aquele sorriso-recompensa, inconfundível, indefinível, indescritível, que me entrou na alma durante seis meses, que a perfumou, a amoleceu, a revolveu, a tocou em todas as suas obras, que me deu a conhecer, com a doçura da lágrima e a ânsia do desespero, a volúpia da minha primeira e única obra de arte.

— Mas, o fumo?

— Muito simples. Nesse tempo eu, pobre boêmio sem mesada, sem emprego e sem vergonha, fumava Veado, porque era muito barato e saía ainda mais barato do que custava, pois eu podia regular à vontade a grossura do cigarro. Muitas vezes, reparti com ela o meu pacotinho. Muitas vezes. Nos meus dias amargos de boêmio sem vintém, almocei e jantei cigarros de fumo Veado. Toda a minha história com Amanda correu entre nevoeiros de fumo Veado. Contraí com isso o meu hábito mais tenaz, — um hábito feito, hoje, de saudades, de remorsos, de obsessões doces e dilacerantes, da infinita tristeza de um nunca-mais que me purifica e me aniquila... A minha vida inteira teve o seu pináculo na hora em que a minha ratinha de esgoto morreu sorrindo nos meus braços. Tudo o mais que se seguir são ondulações que se prendem, num ritmo decrescente, a essa altitude remota... Impossível esquecer.

— Mas, que diabo! isso tudo é verdade?... Estás chorando, Timóteo?

— Alto lá! Bem vê que não estou chorando. Então eu sou homem que chore! Garçom, outro café; mas bem quente!

(Uma pausa. Sorve-se o café em silêncio. Timóteo saca do seu pacotinho de fumo)

— Portanto, o amigo Ramalho já sabe porque é que eu prefiro fumar desta ignominiosa maneira.

— Mas, ainda não voltei do meu espanto, Timóteo! Então, isso tudo é mesmo verdade?...

— Veja lá como eu estou mestre em fazer os meus cigarros. Sou capaz de os enrolar com uma só mão. Aqui está o fumo, vê? Agora, arranco a mortalha, — mais uma pequenina página inútil do livro da minha vida — ponho-lhe o fumo, estendo-o, enrolo... Está vendo? Pronto... Dá cá o fogo... fuuu!... Olha essa espiral que se esgueira por cima de todo esse burburinho, de todas essas cabeças... Olha, olha, lá vai ela... Acabou-se. — Moço, cobre aqui quatro cafés. Jesus, estou na horinha do meu bonde! Ande com isso, ó funcionário!

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