Monteiro Lobato, o "bicho de goiaba"
Ouvi falar pela primeira vez em Monteiro
Lobato quando em menino ainda tive notícia de seu noivado com minha prima
Purezinha. Comentava-se, na família, como tão bela moça fora gostar de José
Bento, caladão, feio e pobre, que acabava de se formar em Direito e fora nomeado
promotor público, no município de Areias, próximo da Cidade de Taubaté.
Lembro-me bem do dia de seu
casamento. A noiva, mais radiosa e linda do que nunca, dançara o "cake-walk"
com seu irmão Enéas, sob as palmas presentes.
Já então o José Bento havia
conquistado toda a parentela, pois atravessada a couraça com que se defendia
dos indiferentes, ninguém como ele tão puro de sentimentos, tão generoso em
seus afetos. O casal Lobato parecia destinado à vida anônima dos muitos pares
que se unem para a aventura de ''constituir família" no interior do
Brasil.
Mas havia uma chama a arder
dentro dele, que desafiou a rotina e fez irromper o escritor e o artista. Lá
está na correspondência com seu amigo Godofredo Rangel: "Somos vítimas do
um destino. Nascemos para perseguir a borboleta de asas de fogo. Se a não
pegamos seremos infelizes; e se a pegamos, lá se nos queimam as mãos".
Suas grandes preocupações foram
de ordem artística e literária, mas sempre condicionadas à sua forte personalidade:
"Somos nós mesmos ou não somos coisa nenhuma".
Monteiro Lobato foi tão inteiramente
ele mesmo, que sua literatura leva sempre a marca do momento vivido. Ele é o
próprio instrumento que "sabe ver, sabe sentir, sabe dizer". O que
escreveu está impregnado de verdade, porque foi sentido por ele, antes de
passar para o papel. Suas próprias expressões estão carregadas de vida, nada é
artificial ou preparado em seus livros.
Poderia ter ficado na Fazenda de Buquira,
''vivendo uma bela vida mental, tendo à sua disposição maravilhosos livros e
passarinhos, perfeita companheira e flores, porcos que engordam gostosamente na
ceva, e dos filhinhos viçosos''.
Chegou, porém, o dia em que nada
mais contribuía para sua paz interior. O Jeca Tatu viera à tona, seguido de
toda a fauna e flora que o rodeava. Era preciso partir. Para ele, o "supremo
programa da vida era viver a sua vida". Repetir-se seria parar no caminho.
Sua alma era a de um rebelde, a do eterno e romântico rebelde que se bate pelas
causas difíceis.
Vendeu sua fazenda e instalou-se novamente
em São Paulo. A glória literária que não procurara entra-lhe pela casa adentro.
"O grande sonho realizou-se, e mais completo do que jamais me atrevi a
desejar", confessou em outra carta a Godofredo Rangel.
Mas a glória tem o seu preço.
Quer agora isolar-se para produzir, mas é impossível. Trava uma verdadeira
batalha pelo livro. Envereda pela edição das obras dos novos escritores, monta
oficinas, desdobra-se em atividades comerciais. Faz fortuna, mas logo depois
abre falência. Muda-se para o Rio, parte para os Estados Unidos. Fica maravilhado
com a civilização americana. Tudo ali tão perfeito e o Brasil parado, com suas
possibilidades adormecidas. Era preciso varar o bosque espesso da ignorância e
atraso. Dar-lhe petróleo e dar-lhe feno. Todos sabem como seus planos falharam,
após muitas lutas que só lhe trouxeram decepções e amarguras, terminando pela
prisão, no período mais triste da Ditadura.
***
A literatura é o seu porto como
sempre. Volta-se para ela, principalmente a infantil. Em 1943, as tiragens de
suas edições de livros para crianças haviam ultrapassado o primeiro milhão.
"Esse número demonstra que meu caminho é esse, e é o caminho da salvação.
Estou condenado a ser o Anderson desta terra, talvez da América Latina."
Debalde lutou pelos homens. A criança será um campo mais propício. "As crianças
sei que não mudam. São em todos os tempos e em todas as pátrias as
mesmas."
Partiu para a Argentina decidido
a ficar, a fim de esquecer os desgostos que tivera no Brasil, e escrever
tranquilamente seus livros infantis. Estive com ele em Buenos Aires, em 1946,
durante um mês e pude testemunhar o prestígio de sua glória literária.
Mas não se viveu impunemente,
entranhado no amor de sua terra, compreendendo sua gente, sofrendo por suas
limitações, lutando por ela. O apelo que o foi buscar, foi mais forte que sua
vontade. Capitulou e voltou.
Logo depois do regresso, em 18 de
maio de 1947, escreveu-me: "Meu querido Leonídio. Voltei à Pátria, forçado
pelas saudades da língua, dos bate-papos intermináveis, das conversas para boi dormir
e outros "caldos de goiaba, que temos aqui. Comparo o homem a bichos de goiaba;
a pátria é a goiaba, e quanto mais podre melhor. Quem sai de sua terra é bicho
que sai da goiaba; pode ir para um lugar lindo, mas passado certo tempo começa
a debater-se de saudades daquele caldo de goiaba cor-de-rosa em que nasceu, em
que se desenvolveu, e biologicamente é o sou "habitat" ou borralho.
Estou aqui, desde o dia 8, a
rebolar-me no caldo da goiaba podre, como um bichinho que esteve fora dele um
ano. Tudo isso por quê? Velhice. Velhice é covardia. Um moço sai da goiaba, dá
uma banana para o caldinho cor-de-rosa e vai viver nos mais estranhos países:
Alaska, Patagônia, Tibete, o Inferno. O velho vai ficando jururu e acaba voltando
para a goiaba podre, como eu. Sessenta e cinco anos! Adeus, "darling."
Do Monteiro Lobato."
---
LEONÍDIO RIBEIRO
Ilustração Brasileira, outubro de 1950.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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