Não é fácil escrever-se sobre um homem como Mário de Andrade, muitos dias depois de sua morte. Não porque falte o que dizer sobre esse homem extraordinário, esse artista luminoso, esse amante enternecido de todas as coisas da vida, mas exatamente porque todos sabiam o que ele era e tudo quanto ele era já ficou dito. Sua vida, que foi um exemplo de luta pela recuperação e estabilização de todos os valores humanos — estéticos e emocionais — , despertos ou desprezados, e que foi, ao mesmo tempo, uma perpétua interrogação, uma perpétua pesquisa, incontida procura, representou, durante de um quarto de século, o espetáculo edificante de existência construtiva, a ser mostrado à sua geração e à geração que teve a felicidade e o orgulho de conhecê-lo.
Numa
hora em que tanta coisa se perde, em que tantas coisas destruídas precisam ser
restauradas, a morte de Mário de Andrade aparece-nos como uma espécie de
sabotagem do destino aos esforços desesperados de todos nós. Porque ele não foi
apenas o escritor, o pensador, o artista, de imaculada pureza intelectual: foi
o mestre, o guia, o amigo que esclarecia, acolhia e plantava — com a magnífica
generosidade do apóstolo e a serena magnificência do semeador. E foi,
sobretudo, um homem que sabia coisas — até mesmo essa coisa dificílima que é a
arte de ser amigo.
Para
uma ideia às futuras gerações do que Mário de Andrade representou como cultura
e inteligência, falarão, melhor do que qualquer louvação crítica, suas obras
que abrangem quase todas as formas da atividade intelectual e que o colocam
entre os que contribuíram, em vida, para a perpetuidade do espírito sobre a
Terra. É preciso, porém, que essas mesmas gerações não ignorem a expressão
afetiva de sua passagem, a significação fraterna de sua presença — e disso
diria tudo uma antologia em que ficasse reunido todo o material necrológico com
que o país inteiro chora a sua partida.
Nessas
crônicas de jornal, curtas ou longas e todas elas sinceras, ao lado do escritor
Mário de Andrade, avulta a figura do homem Mário de Andrade — acolhedor,
compreensivo e fraterno. E é esse homem que precisa ficar nítido, para os
outros homens que hão de vir.
Creio
que todos nós havíamos recebido um dia antes, dois dias antes, três dias antes
de sua morte (e houve até quem recebesse um dia depois) uma carta amiga desse
homem prodigiosamente epistolar e afetivo. Sem o saber, despedia-se de todos
nós e a todos deixava clareado um caminho, no estímulo de um encorajamento ou
no esclarecimento de uma restrição.
Não
mentia aos jovens, porque não meneia a si próprio — e ele era a perpétua
juventude do espírito, uma força ativa da vida em luta contra a morte da alma.
Não mentia à crença dos que criam nele — porque foi ele próprio uma expressão
viva de fé, dentro do conformismo e da mole indiferença de uma parcela grande
de seus contemporâneos. Não mentia à vida, à verdade e à beleza invencíveis da
vida, porque foi, acima de tudo, o paladino da beleza e da verdade — seu mestre
e seu discípulo, seu animador e seu soldado.
Não
passou. Ficou nas letras e nas artes de seu povo, ficou no coração de seus
amigos — vivo, generosamente vivo. Recebeu para partilhar; sempre esteve a
serviço de "um resultado humano". E na hora da prestação de contas,
na hora final de sua vida transitória, após essa sucessão de vidas que o levará
à vida definitiva, cuja primeira etapa tão bem soube marcar aqui e a que todos
atingiremos, mais tarde ou mais cedo, poderá dizer na serena dignidade de sua
grande conquista: "Minha vida terrena não foi uma inutilidade. Não foi um
traço apagado no conjunto. Teve sentido".
Sim.
Sua vida teve sentido. Sentido humano e sentido estético. E é essa a sua maior
glória.
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MARIA JACINTHA
MARIA JACINTHA
Revista
Walkyrias, junho de 1945.
Pesquisa,
transcrição e adequação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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