Antero de Quental — Síntese Biográfica
Bem conhecida é esta alta
individualidade, que se manifestou entre a moderna geração com um
extraordinário temperamento de lutador, e que de repente caiu em uma apatia
invencível, em um desalento moral progressivo, em uma decadência física
precoce, e por último no desespero, que em 11 de setembro de 1891 determinou o
suicídio. Quando em tão breve espaço vemos essas belas organizações literárias,
como Camilo Castelo Branco, Júlio Cesar Machado e Antero de Quental truncarem a
sua carreira pelo suicídio, não pode deixar de explicar-se essa fatalidade pela
nevrose que neles era o estímulo do seu talento e o motor das suas desgraças. E
essa mesma nevrose, que se manifestava brilhantemente pela invenção imaginosa,
pela graça delicada ou pela inspiração poética, nunca lhes deixara adquirir uma
disciplina mental que os levasse à análise de si mesmos, nem uma subordinação
moral que os fortificasse contra o seu espontâneo pessimismo. A crítica da ação
literária de Antero de Quental está implícita nesta característica do seu
organismo.
Antero de Quental nasceu
na Ilha de São Miguel em 1842, em uma família de morgados; naquela pequena ilha
a falta de cruzamentos nas famílias aristocráticas tem determinado uma terrível
degenerescência, que se manifesta pela idiotia e pela loucura. Na família de
Antero de Quental existem casos desta terrível tare hereditaire. A
frequência na Universidade de Coimbra, desorientadora para as mais fortes
organizações, não deixou de atuar profundamente no espírito de Antero de
Quental, lançando-o em uma dissolvente anarquia mental pelos hábitos das
arruaças escolares e pelas leituras radicalistas que o levavam a uma grande
sobre-excitação. Foi nesta crise da adolescência que em Antero de Quental
desabrochou o talento poético e a paixão revolucionária, que deu origem a uma
liga de espíritos emancipados de todo o supernaturalismo e de toda a autoridade
temporal, que se denominou a Sociedade do Raio. Este título
provinha das imprecações que lançavam ao espaço em ocasião de trovoadas,
provocando o raio para que os fulminasse, como expressão de uma vontade
individual no universo. As perseguições contra a Polônia e as lutas pela
libertação e unificação da Itália, também acordaram o interesse de Antero para
as questões políticas. As suas leituras favoritas eram os livros de Proudhon,
de Feuerbach, de Quinet e Michelet, e isso rapidamente, vivendo em uma
atmosfera de discussão permanente, de uma dialética de sofismas, agravada por
uma irregularidade de vida, que veio mais tarde a determinar a doença que o
embaraçou na sua atividade. Antero de Quental vivia entre um grupo de
estudantes que o divinizara, considerando-o como um apóstolo, um iniciador da
humanidade. E ele próprio chegou a acreditar naquela missão, e passados anos,
em uma carta autobiográfica, definia-se como o porta-estandarte das ideias
modernas em Portugal.
Neste período da vida de
Antero era ele dominado por um condiscípulo natural de Penafiel, chamado
Germano Vieira de Meireles, a quem dedicou a primeira edição das Odes
modernas. Este Germano Meireles era um tipo raquítico e aleijado, dotado de
um sarcasmo maligno, resultado da sua imperfeição física; exerceu no espírito
de Antero uma ação corrosiva, privando-o de todos os entusiasmos, e levando-o
quase à apatia mental. Quando Germano Meireles morreu miseravelmente, deixando
duas crianças filhas naturais, Antero tomou conta delas e educou-as em sua
companhia, deixando-lhes o remanescente da sua herança.
O talento de Antero
revelou-se pela poesia no jornal O Acadêmico; em 1861, levado pela
admiração do lirismo de João de Deus, cultivou a forma do Soneto, que estava
longe ainda da beleza que atingiu na sua última fase pessimista.
As ideias políticas
revolucionárias e negativistas de que se deixara possuir determinaram a
primeira alteração nas suas concepções poéticas. Em 1865 publicou em Coimbra a
coleção de poesias desta fase revolucionária com o título de Odes
modernas; mas os produtos da sua atividade poética, transição para as Odes
modernas e Sonetos, são totalmente desconhecidos, porque
Antero de Quental rasgou todas as composições que não se harmonizavam com o seu
novo ideal revolucionário. Um dos adoradores de Antero de Quental, que o
acompanhava nas tropelias noturnas, e que também morreu doido em 1872, Eduardo
Xavier, coligira em volume essas poesias da fase romântica; é essa coleção que
possuíamos que hoje publicamos, da existência da qual o próprio Antero nem
suspeitava.
A crise moral de Antero
começou propriamente em 1865, quando se achou sozinho em Coimbra; o curso
jurídico a que ele pertencia acabara a formatura em 1863; Antero teve de
repetir um ano, e ao terminar a formatura em 1864, achou-se sem estímulos que o
obrigassem a sair de Coimbra. Vivia então solitário, meditabundo,
desenfadando-se em digressões noturnas. Foi nesse ano de 1865, que irrompeu a
celebre Questão de Coimbra; eu é que o estimulei a sair à estacada,
dando réplica às insídias de Castilho.
Antero publicou nesse ano
a carta Bom senso e bom gosto, que o revelara ao país um polemista
ardente, um estilista vigoroso, um espírito possuído de uma alta inspiração.
Antero de Quental contraíra perante o país e a geração moderna o compromisso de
pôr em obra essas generosas aspirações. De dia a dia tornava-se mais reparável
o seu silêncio, mais censurável a falta de atividade literária. Antero sofria
um profundo mal-estar, que o não deixava entregar-se ao remanso do estudo; saiu
de Coimbra para ir viver em Penafiel com o seu amigo Germano; depois foi para
Guimarães para ao pé de Alberto Sampaio; foi para o Algarve para o seu amigo
Negrão; foi à América, a Paris, aos Açores, e por último fixara-se mais algum
tempo em Vila do Conde. Não estava bem em parte alguma.
Os trabalhos literários
não o seduziam; em Lisboa achou-se com José
Fontana, que se aproveitou do seu prestígio moral para a organização do partido socialista, e junto com outros rapazes, Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, inaugurou em 1871 as Conferências democráticas do Cassino, mandadas encerrar pelo ministro marquês de Ávila.
Fontana, que se aproveitou do seu prestígio moral para a organização do partido socialista, e junto com outros rapazes, Eça de Queirós, Jaime Batalha Reis, inaugurou em 1871 as Conferências democráticas do Cassino, mandadas encerrar pelo ministro marquês de Ávila.
Nestes dois atos Antero
foi impelido, caindo outra vez na apatia de onde nunca mais saiu, prometendo
apesar de tudo vir a publicar um Programa para os trabalhos da Geração
moderna. Por ocasião da encíclica de Pio IX proclamando o Silabus, e por ocasião da revolução de
Espanha em 1868, Antero de Quental publicou dois opúsculos, mais para mostrar
as suas aptidões de foliculário do que a vista clara e o seguro juízo dos
acontecimentos. A sua doença moral tornava-se uma lesão física, acentuando-se a
sua doença nervosa em 1874.
Na impossibilidade de toda
a ordem de trabalho, mas carecendo de ocupar a imaginação no meio dos seus
sofrimentos, Antero de Quental ia dia a dia burilando um ou outro soneto, em
que dava expressão ao estado moral em que se achava; os amigos foram coligindo
estes sonetos, vindo ao fim de algum tempo Oliveira Martins a formar um
precioso volume de que ele mesmo foi o editor carinhoso. Fez a esse livro uma
introdução vaga sobre intenções búdicas e intuições nirvânicas, mas não nos deu
a nota viva do poeta. Os Sonetos de Antero produziram uma
forte impressão, não só pela profundidade dos sentimentos como principalmente
pela perfeição esmeradíssima da forma; porque os versos das Odes
modernas, na expressão das paixões revolucionárias, eram pouco plásticos, e
revelavam mais o filosofo do que o artista.
Nos Sonetos Antero
transfigurara-se. O Dr. Storck, que acabava de traduzir em belos versos para a
língua alemã a obra completa de Camões, ao receber um exemplar dos Sonetos de
Antero fez a alta consagração de os traduzir para essa língua eminentemente
filosófica. Para acompanhar a sua tradução pediu o Dr. Storck a Antero algumas
notas biográficas; em carta de 14 de maio de 1887 escreveu o poeta uma espécie
de Autobiografia que vem junto dos Sonetos. É um documento
importante, não pelos dados biográficos, que são vagos e exagerados, mas pelo
alcance psicológico, porque pelas frases com que Antero se glorifica dando-se
como o estilista dotado com o dom da prosa portuguesa e
o porta-estandarte das ideias em Portugal, vê-se que obedecia
a uma certa vesânia mental, que lhe motivava fundas decepções e terríveis
desalentos. Nesta fase de espírito, Antero caiu debaixo da influência de
Oliveira Martins, que não foi mais saudável do que a de Germano Meireles.
Oliveira Martins tinha sido um dos seus colaboradores na organização
democrática e socialista em Lisboa, quando publicava a Republica e
o Pensamento social; mas um dia abandona o seu ideal, e filia-se em
um esgotado partido monárquico a que pretendeu ir levar vida nova. Foi esta
apostasia uma desilusão para Antero; sofreu-a caladamente, pedindo aos amigos
que lhe não falassem nisso. Vivia então em absoluto isolamento em Vila do
Conde, onde era visitado como um pontífice. Em janeiro de 1890 deu-se o fato
brutal do Ultimatum do governo inglês sobre a questão
africana; da natural reação do sentimento nacional contra este ato de
selvagismo diplomático, nasceu no Porto o movimento de agremiação da Liga
patriótica do Norte.
Para dar aos espíritos uma
certa unificação moral, lembraram-se do nome de Antero de Quental; foram
buscá-lo a vila do Conde, e conseguiram interessá-lo pelo movimento nacional.
Presidiu a alguns comícios e a sessões preparatórias da Liga patriótica
do Norte; mas o poeta não conhecia a mecânica das assembleias
parlamentares, foi facilmente envolvido por todos aqueles que procuravam
desnaturar um movimento tão saudável, e por fim quando a Liga
patriótica se dissolveu com o mais escandaloso fiasco, Antero de
Quental retirou-se à sua impotência, ferido com um desalento mortal. A data do
seu testamento em 9 de setembro de 1890 revela que ele já pensava em acabar com
a existência. A dissolução dos caracteres dos seus contemporâneos de Coimbra
mais o desalentava; partira para a ilha de São Miguel em julho de 1891, e a
falta de interesse e o tédio de aquela solidão aumentada pela mesquinhez da
vida de Ponta Delgada, determinou a fatal resolução de 11 de setembro, em que
se suicidou com dois tiros de revólver na boca. Foi uma existência
verdadeiramente desgraçada; não se revelou com a pujança que possuía. Herdeiro
de uma terrível nevrose, não teve a ventura de deparar uma doutrina moral, uma
filosofia que lhe fortificasse o espírito; pelo contrário, as suas leituras de
Schopenhauer, e a cultura do ideal pessimista em que se enlevava
artisticamente, incutiram no seu espírito a ideia do suicídio que
involuntariamente se tornou efetiva. A sua obra é mais um documento psicológico
do que um produto estético; e neste sentido será estudada e confrontada com a
de outros gênios igualmente desgraçados.
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In: "Raios de Extinta Luz" - Antero de Quental
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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