Carta Autobiográfica
Excelentíssimo Senhor:
Só agora me chegou às mãos
a sua estimada carta de 23 de abril último, pelo fato de me encontrar, há dois
meses, nesta ilha (que é a minha pátria) trazido aqui por urgentes negócios de
família. A demora das comunicações com o continente explica este atraso.
Agradeço a vossa
excelência as amáveis e para mim tão honrosas expressões de sua carta, e nada
me pôde ser, como poeta e como homem, mais grato do que o apreço que um tal
mestre e crítico manifesta pelas minhas composições, ao ponto de querer ser meu
interprete e introdutor junto do público o mais culto do mundo e que mais
direito tem a ser exigente. Discípulo da Alemanha filosófica e poética, oxalá
que ela receba com benignidade essas pobres flores, que uma semente sua, trazida
pelo vento do século, faz desabrochar neste solo pouco preparado. Qualquer que
seja a sua fortuna, toda a minha gratidão é devida ao bom e gentil espírito,
que generosamente me toma pela mão, para me apresentar.
As informações biográficas
e bibliográficas que vossa excelência me pede, podem reduzir-se ao seguinte:
nasci nesta ilha de São Miguel, descendente de uma das mais antigas famílias
dos seus colonizadores, em abril de 1842, tendo por conseguinte perfeito 45
anos. Cursei, entre 1856 e 1864, a Universidade de Coimbra, sendo por ela
bacharel formado em Direito. Confesso, porém, que não foi o estudo do Direito
que me interessou e absorveu durante aqueles anos, tendo sido e ficando um
insignificante legista.
O fato importante da minha
vida, durante aqueles anos, e provavelmente o mais decisivo dela, foi a espécie
de revolução intelectual e moral que em mim se deu, ao sair, pobre criança
arrancada do viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no seu
plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um
centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do
espírito moderno. Varrida num instante toda a minha educação católica e
tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto,
espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e
obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direção, estado
terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha
geração, a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da
velha estrada da tradição.
Se a isto se juntar a
imaginação ardente, com que em excesso me dotara a natureza, o acordar das
paixões amorosas próprias da primeira mocidade, a turbulência e a petulância,
os fogachos e os abatimentos de um temperamento meridional, muito boa fé e boa
vontade, mas muita falta de paciência e método, ficará feito o quadro das
qualidades e defeitos com que, aos 18 anos, penetrei no grande mundo do
pensamento e da poesia.
No meio das caóticas
leituras a que então me entregava, devorando com igual voracidade romances e
livros de ciências naturais, poetas e publicistas e até teólogos, a leitura
do Fausto de Goethe (na tradução francesa de Blaze de Bury) e
o livro de Rémusat sobre a nova filosofia alemã exerceram todavia sobre o meu
espírito uma impressão profunda e duradoura: fiquei definitivamente conquistado
para o Germanismo; e, se entre os franceses, preferi a todos
Proudhon e Michelet, foi sem dúvida por serem estes dois os que mais se
ressentem do espírito de Além-Reno. Li depois muito de Hegel, nas traduções
francesas de Vera (pois só mais tarde é que aprendi alemão); não sei se o
entendi bem, nem a independência do meu espírito me consentia ser discípulo:
mas é certo que me seduziam as tendências grandiosas daquela estupenda síntese.
Em todo o caso o Hegelianismo foi o ponto de partida das minhas especulações
filosóficas, e posso dizer que foi dentro dele que se deu a minha evolução
intelectual.
Como acomodava eu este
culto pelas doutrinas do apologista do Estado prussiano, com o radicalismo e o
socialismo de Michelet, Quinet e Proudhon? Mistérios da incoerência da
mocidade! O que é certo é que, revestido com esta armadura mais brilhante do
que solida, desci confiado para a arena: queria reformar tudo, eu que nem
sequer estava ainda a meio caminho da formação de mim mesmo! Consumi muita
atividade e algum talento, merecedor de melhor emprego, em artigos de jornais,
em folhetos, em proclamações, em conferências revolucionárias: ao mesmo tempo
que conspirava a favor da União Ibérica, fundava com a outra mão sociedades
operárias e introduzia, adepto de Marx e Engels, em Portugal a Associação
Internacional dos Trabalhadores. Fui durante uns 7 ou 8 anos uma espécie de
pequeno Lassalle, e tive a minha hora de vã popularidade.
Do que publiquei por esse
tempo, aí vai o que ainda posso lembrar. O meu primeiro folheto é do ano de
1864. Intitula-se: Defesa da Carta Encíclica de Sua Santidade Pio IX
contra a chamada opinião liberal. É um protesto contra a falta de lógica
com que as folhas liberais atacavam o Silabus, declarando-se ao
mesmo tempo fiéis católicos. O autor, glorificando o Pontífice pela beleza da
sua altitude intransigente em face do século, via nessa intransigência uma lei
histórica, rezava respeitosamente um De profundis sobre a
igreja condenada pela mesma grandeza da sua instituição a cair inteira mas não
a render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais liberais.
O meu último folheto é de
1871. Intitula-se: Carta ao excelentíssimo marquês de Ávila e Bolama,
sobre a Portaria que mandou fechar as Conferências do Casino lisbonense. As
Conferências Democráticas tinham sido fundadas por mim com o concurso de homens
moços (que quase todos têm hoje nome na política) e eram muito frequentadas
pelo escol da classe operária. Pareceram perigosas ao governo, que
arbitrariamente as mandou fechar. O meu folheto parece que concorreu, segundo
se disse, para a queda do ministério, que, de resto, não podia durar muito,
sendo dos chamados de transição. É uma diatribe, mas eloquente.
Entre esses dois extremos,
coloca-se a famosa Questão Literária ou a Questão de
Coimbra, que durante mais de seis meses agitou o nosso pequeno mundo
literário, e foi o ponto de partida da atual evolução da literatura portuguesa.
Os novos datam todos de então. O Hegeltanismo dos Coimbrões
fez explosão.
O velho Castilho, o árcade
póstumo, como então lhe chamaram, viu a geração nova insurgir-se contra a sua
chefatura anacrônica. Houve em tudo isto muita irreverência e muito excesso;
mas é certo que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituído de ideia,
não podia presidir, como pretendia, a uma geração ardente, que surgia, e antes
de tudo aspirava a uma nova direção, a orientar-se como depois
se disse, nas correntes do espírito da época. Havia na mocidade uma grande
fermentação intelectual, confusa, desordenada, mas fecunda: Castilho, que a não
compreendia, julgou poder suprimi-la com processos de velho pedagogo. Inde
irae. Rompi eu o fogo com o folheto Bom senso e Bom gosto, carta ao
excelentíssimo A. F. de Castilho. Seguiu-se Teófilo Braga, seguiram-se
depois muitos outros, la melée devint génerale. Todo o inverno de
1865 a 66 se passou neste batalhar. Quando o fumo se dissipou, o que se viu
mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 a 20 rapazes, que não
queriam saber da Academia nem dos acadêmicos, que já não eram católicos nem
monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham falado de
Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os outros de Guizot e
Bastiat; que citavam nomes bárbaros e ciências desconhecidas, como glótica,
filologia etc., que inspiravam talvez pouca confiança pela petulância e
irreverência, mas que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa fé e
que, em suma, havia a esperar deles alguma coisa, quando assentassem.
Os fatos confirmaram esta
impressão: os 10 ou 12 primeiros nomes da literatura de hoje saíram todos
(salvos 2 ou 3) da Escola Coimbrã ou da influência dela. O Germanismo tomara pé
em Portugal. Abrira-se uma nova era para o pensamento português. O velho
Portugal ainda conservado artificialmente por uma literatura de convenção
morrera definitivamente. Desta espécie de revolução fui eu o porta estandarte,
com o que me não desvaneço sobre maneira, mas também não me arrependo. Se a uma
ordem artificial se seguia uma espécie de anarquia, é isso ainda assim
preferível, porque uma contém germens de vida, e da outra nada havia a esperar.
Pertence ainda a essa época o folheto: Dignidade das Letras e Literaturas
oficiais.
Durante o ano de 1867 e
parte de 68 viajei em França e Espanha e visitei os Estados Unidos da América.
No fim desse ano de 68 publiquei o folheto: Portugal perante a
Revolução de Espanha. Advogava aí a União Ibérica por meio da República
Federal, então representada em Espanha por Castelar, Pi y Margall e a maioria
das Cortes Constituintes. Era uma grande ilusão, da qual porém só desisti (como
de muitas outras desse tempo) à força de golpes brutais e repetidos da
experiência. Tanto custa a corrigir um certo falso idealismo nas coisas da
sociedade!
O meu Discurso
sobre as causas da decadência dos Povos peninsulares nos séculos XVII e XVIII,
embora pisasse um terreno mais sólido, o terreno da história, ressente-se ainda
muito da influência das ideias políticas preconcebidas, da crítica histórica
com tendências. É do ano de 1871.
Nesse ano e no seguinte
tomei parte ativa no movimento socialista, que se iniciava em Lisboa, e tanto
nessa cidade como no Porto escrevi bastante nos jornais políticos.
Incidentemente publiquei num pequeno volume, uma série de estudos com o título
de Considerações sobre a Filosofia da História literária portuguesa.
Creio que é, ainda assim, o que fiz de melhor, ou pelo menos, de mais razoável
em prosa. Confesso sinceramente que dou muita pouca importância a todos esses
meus escritozinhos de ocasião, e até, às vezes, preciso de certa força de
reflexão para me não envergonhar de ter publicado tanta coisa pouco pensada. E
todavia era aplaudido! Por quê? Em primeiro lugar, creio eu, porque os que me
aplaudiam não pensavam, ainda assim, mais nem melhor do que eu. Em segundo
lugar, porque me concedeu a natureza o dom da prosa portuguesa, não da prosa de
convenção, arremedando o estilo dos séculos XVI e XVII mas de uma prosa que tem
o seu tipo na língua viva e falada hoje, analítica já nos movimentos da frase,
mas na linguagem ainda e sempre portuguesa. Isso agradou, porque era o que
convinha e, em suma, acabei por ser citado como modelo da prosa moderna! É
certo porém que tudo aquilo são escritinhos de ocasião e que, em prosa, não
produzi ainda o que se chama uma obra, isto é, uma coisa original,
pessoal e aprofundada. Há muito tempo que sei escrever, mas foi necessário
chegar aos 45 anos para ter que escrever. Por isso, deixemos toda essa farragem
que não cito senão para corresponder ao desejo de vossa excelência na matéria
bibliográfica. E passemos aos versos.
Além da coleção de sonetos
que vossa excelência conhece, publiquei ainda mais dois volumes. Um, de 1872,
com o titulo de Primaveras Românticas contêm os meus Juvenilia,
as poesias de amor e fantasia, compostas na sua quase totalidade, entre 1860 e
65, que andavam dispersas por várias publicações periódicas, e que só em 72
reuni em volume, juntamente com mais alguma coisa posterior, do mesmo caráter e
estilo. Talvez a melhor maneira de caracterizar esse volume será dizer em
francês que é du Heine de deuxième qualité. Como muitas pessoas,
por cá, têm achado essa semelhança, por isso a indico. A 2ª seção dos Sonetos
completos que não contêm senão composições desse período dará a vossa
excelência uma ideia suficiente do fundo e do estilo daquela poesia; assim como
a 3ª seção lhe dará ideia das Odes modernas, cuja 1ª edição
apareceu em 1865. Não sei bem como caracterizar este livro: não é certamente
medíocre; há nele paixão sincera e elevação de pensamento; mas além de
declamatória e abstrata, por vezes aquela poesia é indistinta, e não define bem
e tipicamente o estado de espírito que a produziu. O que ela representa
perfeitamente é a singular aliança, a que atrás me referi já, do naturalismo
hegeliano e do humanitarismo radical francês. Acima de tudo é, como dizem os
franceses, poesia de combate: o panfletário divisa-se muitas vezes
por detrás do poeta, e a igreja, a monarquia, os grandes do mundo, são o alvo
das suas apóstrofes de nivelador idealista. Noutras composições, é verdade, o
tom é mais calmo e patenteia-se nelas a intenção filosófica do livro, vaga sim,
mas humana e elevada. A novidade, o arrojo, talvez a mesma indeterminação do
pensamento, apenas vagamente idealista e humanitária, fizeram a fortuna do
livro, junto da geração nova, o que prova pelo menos que veio no seu
momento: é tudo quanto poderei dizer. Correspondem a este ciclo os sonetos
compreendidos na 3ª seção dos Sonetos completos, muitos dos quais
já entraram nas Odes modernas. Em 1874 teve este livro uma 2ª
edição muito correta e contendo várias composições novas que considero, tal
como é e com todos os defeitos inerente à própria essência do gênero, como definitiva.
Nesse mesmo ano de 1874
adoeci gravissimamente, com uma doença nervosa de que nunca mais pude
restabelecer-me completamente. A forçada inação, a perspectiva da morte
vizinha, a ruína de muitos projetos ambiciosos e uma certa acuidade de
sentimentos, própria da nevrose, puseram-me novamente e mais imperiosamente do
que nunca, em face do grande problema da existência. A minha antiga vida
pareceu-me vã e a existência em geral incompreensível. Da luta que então
combati, durante ou 5 ou 6 anos, com o meu próprio pensamento o meu próprio
sentimento que me arrastavam para um pessimismo vácuo e para o desespero, dão
testemunha, além de muitas poesias, que depois destruí (subsistindo apenas as
que o Oliveira Martins publicou na sua introdução aos Sonetos) as composições
que perfazem a seção 4ª (de 1874 a 80) do meu livrinho. Conhece-as vossa
excelência, não preciso comentá-las. Direi somente que esta evolução de
sentimento correspondia a uma evolução de pensamento. O naturalismo, ainda o
mais elevado e mais harmônico, ainda o de um Goethe ou de um Hegel, não tem
soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o sentimento, no que ele
tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, e só
aparente; no fundo não é mais do que um paganismo intelectual e requintado. Ora
eu debatia-me desesperadamente, sem poder sair do naturalismo, dentro do qual
nascera para a inteligência e me desenvolvera. Era a minha atmosfera, e todavia
sentia-me asfixiar dentro dela. O Naturalismo, na sua forma empírica e cientifica,
é o struggle for life, o horror de uma luta universal no meio da
cegueira universal; na sua forma transcendente é uma dialética gelada e inerte,
ou um epicurismo egoistamente contemplativo. Eram estas as consequências que eu
via sair da doutrina com que me criara, da minha alma mater, agora
que a interrogava com a seriedade e a energia de quem, antes de morrer, quer ao
menos saber para que veio ao mundo.
A reação forças morais e
um novo esforço do pensamento salvaram-me do desespero. Ao mesmo tempo que
percebia que a voz da consciência moral não pode ser a única voz sem
significação no meio das vozes inúmeras do Universo, refundindo a minha
educação filosófica, achava, quer nas doutrinas, quer na história, a
confirmação deste ponto de vista. Voltei a ler muito os filósofos, Hartmann,
Lange, Du Bois-Raymond e, indo às origens do pensamento alemão, Leibnitz e
Kant. Li ainda mais os moralistas e místicos antigos e modernos, entre todos
a Teologia Germânica e os livros budistas. Achei que o misticismo,
sendo o desenvolvimento psicológico, deve corresponder, a não ser a consciência
humana extravagância no meio do Universo, à essência mais funda das coisas.
O naturalismo apareceu-me,
não já como a explicação última das coisas, mas apenas como o sistema exterior,
a lei das aparências e a fenomenologia do Ser. No Psiquismo, isto
é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a explicação última e
verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos
seus momentos físicos elementares. A monadologia de Leibnitz,
convenientemente reformada, presta-se perfeitamente a esta interpretação do
mundo, ao mesmo tempo naturalista e espiritualista. O espírito é que é o tipo
da realidade: a natureza não é mais do que uma longínqua imitação, um vago arremedo,
um símbolo obscuro e imperfeito do espírito. O Universo tem pois como lei
suprema o bem, essência do espírito. A liberdade, em despeito do determinismo
inflexível da natureza, não é uma palavra vã: ela é possível e realiza-se na
santidade. Para o santo, o mundo cessou de ser um cárcere: ele é pelo contrário
o senhor do mundo, porque é o seu supremo interprete. Só por ele é que o
Universo sabe para que existe: só ele realiza o fim do Universo.
Estes pensamentos e muitos
outros, mas concatenados sistematicamente, formam o que eu chamarei, embora
ambiciosamente, a minha filosofia. O meu amigo Oliveira Martins apresentou-me
como um budista. Há, com efeito, muita coisa comum entre as minhas doutrinas e
o Budismo, mas creio que há nelas mais alguma coisa do que isso. Parece-me que
é esta a tendência do espírito moderno que, dada a sua direção e os seus pontos
de partida, não pode sair do naturalismo, cada vez em maior estado de banca
rota, senão por esta porta do psicodinamismo ou pampsiquismo. Creio que é este
o ponto nodal e o centro de atração da grande nebulose do pensamento moderno,
em via de condensação. Por toda a parte, mas sobretudo na Alemanha,
encontram-se claros sintomas desta tendência. O ocidente produzirá pois, por
seu turno, o seu Budismo, a sua doutrina mística definitiva, mas com mais
sólidos alicerces e, por todos os lados, em melhores condições do que o
Oriente.
Não sei se poderei
realizar, como tenho desejo, a exposição dogmática das minhas ideias
filosóficas. Quisera concentrar nessa obra suprema toda a atividade dos anos
que me restam a viver. Desconfio, porém, que não o conseguirei; a doença que me
ataca os centros nervosos, não me permite esforço tão grande e tão aturado como
fora indispensável para levar a cabo tão grande empresa. Morrerei, porém, com a
satisfação de ter entrevisto a direção definitiva do pensamento europeu, o
Norte para onde se inclina a divina bússola do espírito humano. Morrerei
também, depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na placidez de
pensamentos tão irmãos das mais íntimas aspirações da alma humana e, como
diziam os antigos, na paz do Senhor! — Assim o espero.
Os últimos 21 Sonetos do
meu livrinho dão um reflexo desta fase final do meu espírito e representam
simbólica e sentimentalmente as minhas atuais ideias sobre o mundo e a vida
humana. É bem pouco para tão vasto assunto, mas não estava na minha mão fazer
mais, nem melhor. Fazer versos foi sempre em mim coisa perfeitamente
involuntária; pelo menos ganhei com isso fazê-los sempre perfeitamente
sinceros. Estimo este livrinho dos Sonetos por acompanhar,
como a notação de um diário íntimo e sem mais preocupações do que a exatidão
das notas de um diário, as fases sucessivas da minha vida intelectual e
sentimental. Ele forma uma espécie de autobiografia de um pensamento e como que
as memórias de uma consciência.
Se entrei em tão largos
desenvolvimentos biográficos, foi por entender que, sem eles, se havia de
perder a maior parte do interesse que a leitura dos meus Sonetos pode
inspirar. Os críticos alemães acharão talvez interessante observar as reações
provocadas pela inoculação do Germanismo, no espírito não preparado de um
meridional, descendente dos navegadores católicos do século XVI. Poderá essa
ser mais uma página, embora tênue, na história do Germanismo na Europa, e
porventura parecerá curiosa aos que se ocupam de psicologia comparada dos
povos.
Ao bom e amável espírito
que me introduz, a mim neófito, nesses grandes círculos do pensamento e do
saber, tributo, além de muita simpatia, indelével gratidão.
E sou de vossa excelência
com a máxima consideração
criado
muito obrigado
Antero
de Quental.
---
In: "Raios de Extinta Luz" - Antero de Quental, 1892.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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