Amadeu Amaral na Política
Ao tempo das famosas campanhas
eleitorais do Partido Democrático, uma ou outra vez fui destacado para as
caravanas de catequese que da Capital de São Paulo se irradiavam por todo o
populoso Estado. Tive oportunidade assim de conhecer muitas características
cidades paulistas.
Impressionaram-me algumas
indelevelmente. Por exemplo, Socorro, já cinquentenária, encastoada nos
contrafortes das montanhas virentes de Minas, seu município tangenciando a
linde do município em que nasci e contendo ainda muitas pessoas das antigas
relações dos meus parentes mineiros; Itatiba, cidade mais idosa ainda,
conquanto de maioria perrepista, notável pela educação política, cheia de
tolerância e deferências para com a ilustre equipe democrática que lá dentro
defendia as cores de nossa bandeira; Dois Córregos, rica e fértil, com uma
pujante organização democrática que rebatia energicamente as terríveis
compressões dos adversários. Assim mais algumas, com outras particularidades
interessantes. Entre elas, Capivari.
Os caros amigos desse antigo e
culto torrão sorocabano foram receber-me festivamente à estação. Conduziram-me
a um hotel, no alto da localidade. Enquanto aguardava o momento do comício, no
teatro, interessei-me pelos traços da cidade. Chamou-me logo a atenção, ali na
praça retangular, debaixo de minha janela, uma igreja pomposa. O que mais me
despertou a curiosidade foi a localização do templo assentado esconsamente no terreno.
Explicou-me logo um solícito companheiro aquela esquisitice.
— Capivari foi fundada por
ituanos, de que os meus conterrâneos sentem grande orgulho. Quiseram os antigos
habitantes de minha terra venerar por todo o sempre a velho Itu, voltando a
fachada desta igreja para a fachada da matriz daquela tradicional cidade. De
tal forma a levantaram que se postam ambos os templos, não obstante a distância
respeitável que os separa — talvez 70 quilômetros — rigorosamente vis-à-vis um
do outro. Mas para chegar a esse resultado tiveram que enviesar, como está
vendo, esta igreja na praça retangular.
— Expressiva homenagem para tão
justo orgulho — secundei.
— Realmente — continuou o
minucioso informante — mas Capivari cultiva outro orgulho tão grande quanto
esse — o de haver sido Monte Mor, de sua comarca, o berço de Amadeu Amaral.
Repare, sob aquele velho telhado que se avista acolá da igreja, naquela rua de
trás, viveu a família de meu grande conterrâneo.
Conversando depois com outras
várias pessoas do partido contrário, verifiquei de como todos invariavelmente
se comprariam dessa glória.
Desde esse dia inesquecível,
comecei a admirar mais o insigne poeta e exímio manejador da nossa cara língua.
Quando um espírito solitário como ele foi, considerado mesmo um ensimesmado,
que detestou a mediocridade e combateu o elogio mútuo, chega assim a ser
estimado, em vida, na própria terra, é porque de fato ele vale muitíssimo. Juízo
universal favorável a alguém, ou seja a consagração de alguém, só tenho visto
postumamente.
Camilo Castelo Branco,
considerado hoje o gênio da língua portuguesa mereceu em
vida, principalmente para Vila Real,
terra que por assim dizer foi a
sua — ele nasceu em Lisboa — a pecha, para muitos, dum refinado cretino, ou dum
grosseiro desrespeitador da vida alheia.
Jamais tive intimidades com
Amadeu Amaral. Raros o tiveram. Dificilmente o via e pouco ou nunca falei
consigo.
Certo dia, entretanto, encontrei-o
na sede do Partido Democrático, quando ele morava no prédio da esquina da Rua Senador
Feijó com o Largo da Sé. Amadeu havia sido indicado por essa denodada comunhão
política para Deputado Estadual, pelo 4º distrito. Comparecera ali o jornalista,
poeta e escritor, já então trazendo seu espadim acadêmico, a fim de confabular
com os chamados “cozinheiros", eleitorais do meu partido sobre os
trabalhos da sua eleição.
Logo que vi aberta uma brecha,
aproximei-me dele, para lhe oferecer os meus serviços à sua merecida
candidatura. Mas antes de qualquer palavra política, referi-lhe o incidente da
passada caravana, em Capivari.
Amadeu sorriu. Fixando-o mais
bem, verifiquei que os seus claros olhos haviam se umedecido.
Desviando-me do meu objetivo,
manteve a palestra em torno da sensibilidade da nossa gente. O traço de sua
bondade, acentuando-se cada vez mais no paulista, que fora mau, rude e bravo,
tomou-se o único tema da nossa conversa, naquela tarde chuvarenta.
Não se interessou mais pelo
assunto do pleito a que ele ia concorrer. Levei-o de auto à sua modesta
moradia, se bem me lembro, para as bandas do Jardim América, antes da baixada
já pontilhada dos telhados vermelhos do casario novo. Continuou sem uma palavra
sobre o pleito. Ofereceu-me sua residência. Despedimo-nos sem eu ter logrado jeito
de lhe tocar no assunto.
Fiz o que pude — na ocasião podia
menos que hoje — pela sua candidatura.
Veio a eleição. E esse autor de
mais de 20 notáveis trabalhos em prosa e verso, que alcançara consagração em
vida, acabou fragorosamente derrotado.
Com pouco mais de cinquenta janeiros,
a chamada idade da "juventude da velhice", faleceu daí a pouco tempo,
cerca de um ano antes da revolução de 1930, com a qual ele certo se alegraria,
como nós outros que tanto confiamos nela...
Com o seu nenhum sucesso na
política, mais uma vez me capacitei que essa sedutora carreira não foi feita
para os homens de letras e de coração.
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AURELIANO LEITE
Revista Ilustração Brasileira, setembro de 1937.
Pesquisa e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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