Florbela Espanca é um nome singular... um apelido feio, reunido a um nome romântico, e, todavia, os dois juntos — Florbela Espanca... — formam qualquer coisa que chama a atenção, qualquer coisa como uma flor despedaçada por um temporal...
Isto são impressões... impressões de poesia, dum subjetivismo triste, como se a tristeza de Florbela e a minha, duma psicologia tão diferente, se fundissem numa melancolia infinita.
Não conheci Florbela Espanca, nunca a vi, creio eu; sei dela apenas o que tenho lido em revistas e jornais: era nova, alentejana, morreu prematuramente, em Matosinhos. Disseram-me, também, que era irmã do aviador Apeles Espanca. Assim devia ser — Apeles, Florbela... o mesmo gosto romântico ou libertino, dos pais ou dos padrinhos, presidiu à escolha dos nomes. Fora isto nada mais sei senão que foi infeliz pela tortura incontida que soluça nos seus versos. E essa dor toca-me ainda mais do que o talento, — o que não admira, pois entre os poetas, como entre os cristãos, quando uns e outros o sejam sinceramente, há uma espécie de fraternidade, bem explicável: Cristo é o supremo poeta, tanto na sua vida terrena, como na sua divindade.
Há alguns anos, trouxeram-me, um dia, um livro duma nova poetisa: Sóror Saudade era o título do livro, era como Florbela chamava a si própria. Li-o e não me fez grande impressão, tanto que esqueci o livro e a autora.
Ultimamente, apesar das preocupações e cuidados que têm complicado a minha vida, interessaram-me os sonetos que li nos jornais e mandei vir a Charneca em flor. Neste livro senti palpitar um coração ardente, dolorido e profundo, através dum talento impetuoso, férvido, pungente, rico de expressão verbal, cheio de clarões e de e espinhos, recamado de flores silvestres e gritos, e que é, realmente, com as suas urzes de orquídeas estranhas:
...a charneca rude a abrir em flor!
como diz Florbela, no primeiro soneto desse livro póstumo.
No princípio do livro vem um retrato da autora: uma cabeça revolta, de cabelos espessos, erguida sobre um pescoço alto; os olhos, com um fundo de mágoa, parecem beber a luz, assim como os lábios, que avançam levemente, como que numa aspiração. Vi outro retrato de Florbela Espanca, no Portugal Feminino, que julgo posterior a este, pela expressão que a vida já marcou no seu rosto: a cabeça baixa-se um pouco, repousando na mão, nos olhos há mais melancolia do que ardor, e dos cantos da boca descem dois ligeiros vincos de amargura.
Esse retrato é, talvez, do tempo em que a poetisa, ferida pelo mundo dizia: "Tudo será melhor do que esta vida!..."
É um retrato que sofre, que medita, que recorda.
Pobre Florbela Espanca, que dizia que ser poeta "é ter fome, é ter sede de infinito!" Esperemos que a sua alma atormentada, de artista e de sonhadora de beleza, tenha encontrado a razão dessa fome e sede de infinito, que existe no fundo de todas as almas, mas que em algumas se desata em esplendores de talento ou de virtude, de bondade ou de amor...
Pobre Florbela! Que mágoas, que desilusões teriam dado à tua voz de poeta tão dolorosas e tão profundas vibrações, fazendo-te encontrar tantas notas dos sentimentos humanos?... até que cerraste os olhos docemente, "como à tarde unia pomba, que tem sono..."
— Eu fui na vida a irmã dum só irmão,
E já não sou a irmã de ninguém mais!
No destino dos dois irmãos houve uma estranha semelhança, simbolicamente.
Apeles Espanca ergueu-se num voo e afundou-se no mar; Florbela Espanca elevou-se, também, no azul esplêndido do Infinito a que estendia os braços, e caiu no mar tormentoso... decerto para erguer-se de novo, e de alma em luz, continuar o voo interrompido...
---
MARIA DE CARVALHO
Revista Lusitânia, 16 de abril de 1932.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...