3/26/2019

A Capenguinha (Conto), de Guy de Maupassant


A Capenguinha

Como são estranhas estas velhas recordações, que me perseguem, sem que eu delas me possa libertar. São to velhas, que não sei explicar como podem permanecer tão vivas e tão tenazes na minha memória.

Depois vi tanta coisa sinistra, comovedora e terrível, que não compreendo porque não posso passar um dia, um dia só, em que o rosto da Tia Capenguinha não se delineie diante dos meus olhos, tal qual a conheci um dia, há muito tempo, quando eu tinha dez ou doze anos.

Era uma velha costureira que vinha, uma vez por semana, às terças-feiras, coser a roupa branca de nossa casa. Morávamos em umas dessas casas de campo, a que chamam "Castelos" e que são simplesmente casas antigas de tetos pontiagudos, da qual dependem quatro ou cinco feitorias que a circundam.
 
A vila, um burgo, estendia-se numa distância de algumas centenas de metros, em torno da igreja, uma igreja velha, de pedras enegrecidas pelo tempo.

Todas as terças-feiras, a tia Capenguinha, chegava das seis e meia às sete horas e dirigia-se logo para o seu trabalho. Era uma mulher alta, magra, barbada, ou melhor peluda, porque tinha barba em todo o rosto, uma barba surpreendente, inexplicável, de pelos duros, que pareciam terem sido espalhados por um louco naquele rosto de gendarme.

Tinha-os no nariz, debaixo do nariz, à roda do nariz, no queixo, nas faces; suas sobrancelhas estranhamente espessa e longas, hirsutas pareciam pedaços de bigodes grudados sobre os olhos.

Capengava, não já como quem tem a perna estropiada, mas como um navio preso à boia.

Quando se apoiava à perna sã, seu corpo grande e ossudo, erguia-se como se quisesse desprender-se do chão para depois afundar-se num abismo. Seu andar dava ideia de uma tempestade, tanto ela se agitava; sua cabeça, coberta de uma grande coifa branca, parecia querer atravessar o horizonte, de norte a sul, de sul a norte, em cada um de seus movimentos.

Eu adorava a tia Capenguinha. Mal me levantava da cama, ia procurá-la no seu trabalho e encontrava-a cosendo com os pés sobre um banquinho. Mal entrava obrigava-me a sentar no banquinho para que eu não me resfriasse naquele grande aposento.

E contava-me histórias, sempre a coser com seus longos dedos tortos, mas ligeiros. Tinha, a julgar pelas coisas que me contava e que tanto comoviam o meu coração de criança, uma grande alma de mulher infeliz. Contava-me fatos da aldeia, a história de uma vaca que fugira e que fora encontrada depois perto do moinho de Prospero Malet, a olhar para as asas de madeira; ou a história de um ovo de galinha encontrado no pequeno sino da igreja, sem que se soubesse quem o pusera lá; ou a história do cão de João Pilás que fora buscar, a dez léguas da aldeia, as calcas do dono, roubadas por um transeunte, quando enxugavam na frente da casa. Contava-me estas aventuras ingênuas de tal modo que assumiam no meu espírito proporções de dramas comoventes, de poemas misteriosos; tanto que os contos engenhosos inventados por poetas, que minha mãe me contava, à noite, não tinham para mim a emoção das histórias da pobre mulher.

Ora, um dia, depois de ter passado toda a manhã com a tia Capenguinha, quando voltei de um passeio aos arredores, com o criado, quis ir vê-la de novo.

Abrindo a porta do quarto vi a velha costureira estendida no chão com a face para cima, os braços alongados, tendo ainda a agulha em uma das mãos e na outra uma das minhas camisas. Tiraram-me dali. Pouco depois. soube que a tia Capenguinha tinha morrido.

Não saberei nunca exprimir a profunda emoção que me abalou o espírito infantil. Desci depressa para a saleta, escondi-me atrás de uma velha poltrona e ajoelhado, pus-me a chorar.

Decerto fiquei ali muito tempo, porque depois veio a noite.

Entrou alguém com uma lanterna, mas não me viu e ouvi meu pai e minha mãe que vinham cochichar com o médico. Chamaram-no logo e ele explicou a causa do acidente.

Não compreendi nada.

Depois sentou-se e aceitou um cálix de licor e um biscoito.

Continuava a falar, e o que ele disse então ficou-me gravado n'alma.

Creio, deste modo, poder reproduzir suas palavras, quase textualmente:

— Ah! dizia ele, pobre mulher ! Foi a minha primeira cliente.

Quebrou a perna no dia em que cheguei e não tive tempo nem de lavar as mãos; mal havia descido da diligência, quando vieram chamar-me com pressa, porque o caso era grave, gravíssimo.

Tinha dezessete anos e era uma linda rapariga: linda, linda, ninguém diria agora.

Quanto à sua história, ninguém a sabia senão eu e outra pessoa que está longe daqui.

Agora que está morta posso ser menos discreto.

Naquela época veio estabelecer-se na vila um jovem professor, de belo aspecto e de estatura marcial. Todas as raparigas o requestavam, mas ele fugia-lhes, mesmo porque respeitava muito o mestre da escola, tio Grabu, que nem sempre estava de bom humor.

O tio Grabu já tinha como costureira a bela Hortênsia, agora falecida e que foi batizada por — Capenguinha— depois do acidente.

O jovem professor mostrou preferência pela rapariga, que se sentiu, naturalmente lisonjeada com a escolha. O fato é que se enamorou dela e obteve uma entrevista no sobrado da escola, num dia em que ela estivesse cosendo.

Ela fingiu então que ia para a casa, mas em vez de descer a escada, foi esconder-se num alpendre ao fundo, cheio de feno, à espera do amante.

Ele chegou pouco depois e começavam a conversar, quando a porta  se abriu  e apareceu o mestre da escola.

Que fazes aí, Sigisberto?

Compreendendo que tinha sido descoberto, o rapaz respondeu estupidamente:

— Vim descansar um pouco, Sr. Grabu.

O lugar era amplo  e  escuro. Sigisberto empurrava para o fundo a  rapariga espantada.

— Esconde-te.  Perco  o  meu  lugar. Anda, esconde-te.

Grabu  ouvindo  cochichar  perguntou:

— Não estás só?

— Estou, Sr. Grabu.

— Não estás; ouço-te falar.

— Juro que estou.

— É o que  vamos  ver.  E fechando a porta  à chave,  foi buscar uma  vela.  O rapaz,  um  verdadeiro  malvado  parecia ter perdido a cabeça e repetia:

— Mas esconde-te, que ele não  te  encontre! Estragas a minha carreira, Esconde-te.

Ouviu a chave girar de novo na fechadura.

Hortênsia fora para a pequena janela que dava para a rua; abriu-a rapidamente e depois disse com voz baixa e resoluta:

— Vem apanhar-me quando ele tiver ido embora.

E saltou.

Grabu não encontrou ninguém e retirou-se muito surpreendido.

Um quarto de hora depois Sigisberto procurava-me e contava-me o que havia acontecido. A rapariga ficara junto do muro, incapaz de andar, depois daquela queda.

Fui com ele ao lugar. Chovia a cântaros; trouxe-a para minha casa; tinha a perna direita quebrada em três pontos e os ossos haviam penetrado na carne. Não se lamentava e repetia apenas com uma resignação admirável:

— Fui castigada; fui bem castigada.

Mandei chamar ajudantes e os parentes da rapariga a que contei uma história de um carro que passara a disparada e a atirara por terra, estropiando-a. Acreditaram. A polícia, durante um mês, procurou em vão o autor do infortúnio. Eis aí. Aquela mulher foi uma heroína, do gênero daquelas que praticam bravuras na história.

Aquele foi o seu único amor. Morreu Virgem.

Se eu não tivesse por ela uma grande admiração, não lhes contaria esta história, que não contei a ninguém enquanto ela viveu.

O médico calou-se.

Minha mãe chorava, meu pai disse algumas palavras que não entendi bem. Fiquei de joelhos atrás da poltrona, soluçando, depois ouvi passos lentos no corredor e a escada ranger.

Levavam então o corpo inanimado de Capenguinha.


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Revista Fon-Fon, 1 de junho de 1912.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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