TENTAÇÃO
Insistiu
muito para que ele não fosse. Argumentava ter tido pressentimentos ruins
durante toda à noite. Dizia ainda que tivera sonhos horríveis, e que por isso
ele deveria adiar a viagem, pelo menos por hora.
—
Era como se fosse a própria voz de Deus pedindo para que você, meu amor, desistisse
dessa tresloucada viagem. Não vá, por favor! — implorava ansiosa ao marido, o
qual se mantinha irresoluto na sua decisão de partir ainda naquele mesmo dia.
—
Que besteira é essa agora, querida? Pressentimentos? Ora, não estamos mais na
Idade Média... Sossegue, é só uma viagem! — em vão tentava consolá-la,
acariciando-a no rosto com uma das mãos.
Assim
que almoçou ele foi arrumar as malas. Duas apenas. O suficiente para quinze
dias fora de casa. Casmurra ela recusou-se a ajudá-lo.
—
Não, não vou concorrer para essa loucura — resmungava andando de um lado para o
outro e toda aflita.
—
Pois então deixe que eu mesmo as arrume... Vá descansar um pouco.... Vá... Você
precisa descansar... Que coisa!
Triste
e desconsolada a mulher recolheu-se ao quarto, fechando violentamente a porta.
Com os olhos arrasados de lágrimas, ali se ajoelhou ao pé da imagem de uma
santa, suplicando-lhe com a alma toda contrita:
—
Oh, minha Virgem Santa, livrai meu esposo de todo o mal... Protegei-o das
astutas ciladas do maligno... Não permita, minha boa Senhora, não permita que
ele seja induzido à tentação da carne...
Durante
cerca de uma hora permaneceu enclausurada naquele aposento, na esperança de que
o marido, comovido com sua dor, abrisse mão voluntariamente de seu projeto.
Entretanto, passado algum tempo, ela caiu em si que ele não cederia aos seus
rogos e que sua atitude só fazia piorar todo aquele drama. Então numa quase
resignação, abandonou aquela clausura para tentar convencê-lo, ainda que pela
última vez, a desistir da viagem.
—
Se você renunciar a este seu louco intento, prometo-lhe um filho ainda para os
próximos meses. Está bom assim?
Faz-se
mister esclarecer que, embora já estivessem casados há quatro anos, não tinham
ainda filhos. A razão incidia sobre um suposto trauma que ela passou a
manifestar logo após o falecimento da única tia durante um parto. Justificava
ainda que não estava psicologicamente preparada para tamanha responsabilidade.
Era preciso aguardar só mais um pouco. E sempre as mesmas desculpas... Ele,
contudo, não aceitava tais argumentos, considerando-os como palavras evasivas e
desprovidas de qualquer sentido lógico, e muitas vezes ameaçou pedir divórcio.
Porém jamais seguiu adiante em tal resolução. Temia alguma consequência que lhe
fizesse se sentir culpado ou que lhe causasse um póstumo desgosto; ademais, nutria
grande esperança que de um momento para outro ela mudaria de ideia, afinal
fazer um filho não era assim tão complicado como fazer uma viagem à lua. Fosse
como fosse, era melhor deixar as coisas como estavam. E assim resignou-se na
sua própria incapacidade de convencimento.
A
proposta da mulher, agora, era tão absurda que por alguns instantes manteve-se
em profundo silêncio, como se não estivesse acreditando no que ouvia de sua linda
boca. Logo, porém, adiantou alguns passos e após um gesto de desdém, respondeu
com um sorriso sarcástico:
—
Ora, ora, então já acabou o trauma?
Neste
instante as lágrimas brotaram dela copiosas e desesperadas, e ele deixou-se
comover aproximando-se e apertando-a fortemente nos braços, ao mesmo tempo em
que prometia encurtar a viagem para uma semana.
—
Apenas uma semana, tudo bem assim?
Um
abraço prolongado selou as pazes entre ambos; um beijo ardente fez apaziguar no
coração dela a agitação e a dúvida.
A
viagem foi adiada para a manhã do dia seguinte. Chegado o momento, era visível
o contraste que se apresentava nos semblantes de ambos. Enquanto ela se
mostrava triste e ansiosa, ele fazia transparecer alegria e paz de espírito.
Trocaram
ainda algumas palavras, e despediram-se. Ao adentrar no veículo, um grito de
angústia e de saudade se fez ecoar. Era um grito sufocado e choroso:
—
Estarei rezando por você, meu amor... Deus há de livrá-lo da tentação!...
Esta
última palavra chegou-lhe aos ouvidos confusa e desprovida de qualquer sentido.
Não queria ela dizer “perigo”? Lembrou-se então de uma passagem da Bíblia, a
qual discorre sobre a fraqueza da carne e acerca da necessidade da vigilância
para se vencer a tentação. “Bobagem”, pensou e acelerou o carro...
Passou-se,
enfim, aquela eterna semana. Era visível o estado de ansiedade com que ela o
esperava. Há dois dias que não conseguia falar-lhe ao telefone, o qual dava
sempre ocupado. Pensamentos tenebrosos invadiram sua mente confusa. Nesta
angústia, recorreu novamente à santa. Apelou ainda a outros santos. Rezou o
padre-nosso: “E não nos deixeis cair em tentação”... E chorou o resto do dia.
Havia
preparado um almoço todo especial ele. Até tinha comprado um vinho importado e um
disco de bolero. Agora, porém, na sacada do apartamento, mirava o horizonte
tomada de todos os desesperos. De repente ouviu tocar o telefone. Era o marido
que avisava sobre um incômodo imprevisto que lhe forçava a adiar a viagem. Não
explicou, todavia, de que se tratava o tal imprevisto. Ficou apenas no
“imprevisto” e no silêncio do telefone.
Na
semana seguinte telefonou mais uma vez. Desta feita, porém, não falava em
imprevistos. Dizia que os negócios se avolumaram e que por isso deveria adiar
mais uma vez o seu retorno. Prometia, contudo, voltar sem falta dentro de
trinta dias.
E,
de fato cumpriu ele o prometido. Um mês depois regressou. O apartamento estava
vazio... Havia sujeira por toda a parte... Algumas luzes estavam acesas...
Observou contas atrasadas sobre a mesa, notou a geladeira desligada e sentiu
sair de dentro dela um insuportável cheiro de comida em putrefação... Muitas
roupas espalhadas pelo chão... A Bíblia aberta no Salmo 91... A imagem da santa
quebrada... A cama desarrumada e com um travesseiro de cada lado... No espelho
o desenho de um coração flechado feito com batom vermelho.
Com
as pernas trêmulas e o coração acelerado, ele anda de um lado para outro, gesticulando
e murmurando palavras soltas. Um turbilhão de dúvidas assalta-lhe a mente. Liga
para o porteiro do prédio, que afirma ter visto a mulher, dias antes, saindo
com duas malas, acompanhada por um homem alto, com paletó e de bigode.
—Não
vi mais nada — garantiu o atento vigilante.
Trôpego,
ele dirige-se à sacada do prédio. Lá de cima contempla o infinito. Nenhuma nuvem sombreia o céu azul.
Fixa em seguida o olhar para baixo. O chão está pálido como a morte. Caem-lhes
os óculos... O céu escurece...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Sugestão, críticas e outras coisas...