2/16/2019

Peregrinando no Hades (Conto), de Iba Mendes


PEREGRINANDO NO HADES 

Estava naquele instante da vida em que o homem se vê diante de uma encruzilhada existencial, quando se desponta em seu turvo horizonte um emaranhado de dúvidas que o faz questionar tudo e a todos. É quando ele sente, tal qual Hamlet, que há mais coisas no céu e na terra do que sonha a nossa vã filosofia.

Até ali, fora um amante contumaz da libertinagem e do prazer. Acreditava que a satisfação dos desejos era em si mesma o princípio e o fim de uma vida bem-aventurada. Quando lhe perguntavam se era feliz, dizia que a busca desesperada pela felicidade era a própria infelicidade do homem, pois o tornava submisso a algo impossível de ser alcançado. O que verdadeiramente importava, concluía quase em êxtase, eram os momentos que tornavam a vida menos afortunada, e isso podia estar numa conversa banal de botequim, numa simples xícara de café ou ainda num beijo de uma mulher feia.

Até ali, nunca havia se preocupado com questões metafísicas ou transcendentais. Encarava a morte como encarava a própria vida, isto é, como parte de um processo natural, do mesmo modo como se dava com as andorinhas e os cogumelos. Agora, porém, sentiu uma poderosa impulsão ao que transcendia para além dos limites da normalidade ou do puramente biológico. Preocupava-o, doravante, as controvérsias acerca da existência divina, os assuntos relacionados à imortalidade da alma, os grandes dogmas das religiões, os enigmas que assombram os homens, enfim, tudo aquilo porque até então não nutria qualquer interesse. Todavia, entre todas as questões que se elevavam acima do homem, a que mais lhe intrigava e a que mais lhe obstinava a curiosidade, eram as doutrinas que versavam sobre o misterioso inferno. O assunto de tal modo o impressionava que pactuou com ele sua própria conversão: abraçaria a religião que melhor lhe expusesse a doutrina do hades, o tenebroso subterrâneo dos mortos. A isto ele denominou de "a busca da suprema verdade", que seria o desfecho místico que faria sua alma "repousar em pastos verdejantes", sem se preocupar com mais nada.

Durante  longos anos peregrinou o nosso homem por um rosário de religiões. Na igreja pentecostal fora advertido de que o inferno era um lugar tenebroso, habitado pelo diabo e seus anjos, onde o tormento não cessa um só instante e onde serão lançados todos os ímpios que não se arrependerem de seus pecados. Na Igreja Católica, foi informado que as almas dos que morrem em estado de pecado mortal seguem imediatamente após a morte ao inferno, onde sofrerão as penas do fogo eterno, de modo que, uma vez lançadas na escuridão eterna, não poderão jamais receber perdão para os pecados que cometeram aqui na terra. No Espiritismo aprofundou-se nos estudos das doutrinas de Allan Kardec, e aprendeu que o inferno está em qualquer lugar onde houver almas atormentadas, o que equivale dizer que não existe um local específico de sofrimento eterno, o qual esteja reservado aos espíritos imperfeitos, local este que algumas vertentes dessa religião dão o nome de "umbral", cuja origem está nos escritos do grande médium Chico Xavier. No judaísmo ficou sabendo que não existe propriamente uma doutrina sobre o céu e o inferno, e que a ênfase fundamental da crença recai sobre o mundo em que se vive, pois é somente aqui que podemos exercer o nosso livre arbítrio; é onde decidimos acerca do bem e do mal e sobre o que queremos para nós mesmos e para aqueles que nos cercam. No islamismo foi advertido que a morte representa a passagem do homem para outro estágio de vida, onde ele ficará aguardando o grande Dia do Juízo, quando só então cada um saberá se irá para o paraíso ou se para o inferno. Seria assim uma espécie de "plano intermediário", que não é exatamente nem o céu nem o inferno. No temível Dia do Juízo, quando Allah julgar cada um conforme suas obras, então haverá a recompensa final. Os que se fizeram merecidos, isto é, os justos, estes serão galardoados com o paraíso; já os infiéis, ou seja, os que não obraram conforme a retidão e a justiça, esses serão lançados no fogo do inferno, onde permanecerão eternamente. No Budismo, que é fortemente influenciado pelos preceitos hinduístas, fora instruído que a alma, ao desprender-se do corpo, adentra numa espécie de túnel luminoso. Ali ela encontrá vários portais, que são os compartimentos do desejo, do medo, do prazer, da ambição, do ódio, entre outras sensações, e onde permanecerá o tempo necessário conforme o modo em que vivia enquanto estava encarnada, ou seja, enquanto estava no seu estado de consciência individual. Uma pessoa, por exemplo, que se apegou tenazmente à gula, ficará mais tempo no portal destinado aos alimentos. Superada a sua compulsão, ela se libertará daquele local e seguirá então seu processo reencarnatório, até atingir, por fim, o Nirvana.

Enfim, deu por concluída sua longa peregrinação ao "inferno". Agora, eis que ali, sozinho no quarto, a mirar o teto, com a cabeça entre as mãos, tinha ao redor de si um amontoado de folhas com anotações confusas, algumas das quais realçadas com duplos círculos e rubros traços; dispersos sobre a cama, via-se alguns luxuosos exemplares de livros sagrados, incluindo aí o Alcorão Santo no original árabe e a tradução latina da Bíblia feita por São Jerônimo; e, sobre uma velha estante de madeira, sobressaía uma grande ampulheta de puro mogno, de cuja âmbula superior escorria uma areia fina e azul; tudo isso reunidos entre si parecia destinados a uma mesma finalidade, e de tal modo que deixava o ambiente imerso numa áurea do puro mistério, ao mesmo tempo em que tornava a ocasião inevitavelmente propensa ao grande e esperado epílogo. Teria, enfim, chegado a uma decisão final?

Bruscamente voltou a si como se houvesse decifrado um enigma sagrado. Em movimentos rápidos, recolheu de sobre a cama as escrituras santas e reuniu numa só pasta toda mixórdia de papéis. Em seguida, dirigiu-se ao armário e retirou dentre seus preciosos souvenires, sua velha e elegante Remington Star, uma raridade datada de 1969, a qual ganhara do pai pouco antes do seu falecimento. Posta esta sobre a mesa, sentou-se, fechou os olhos e, num lampejo quase profético, começou a escrever impetuosamente como se tivesse alcançado o sétimo céu:

ESTATUTO DOUTRINÁRIO DA NOVA IGREJA MUNDIAL

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Sugestão, críticas e outras coisas...