O Corvo, de
Edgar Allan Poe
Tradução anônima de 1906.
Meia-noite.
Distraidamente, eu revia ao acaso certos volumes esquecidos, ainda que bizarros
e curiosos. Bateram de leve à minha porta.
Estávamos
em dezembro; os tições, extinguindo-se no fogão, projetavam silhuetas vermelhas
no ladrilho. Em vão, eu pedia a meus livros favoritos o esquecimento de minhas
penas. Pensava sempre nela, a minha Leonor perdida, a jovem de beleza rara e
deslumbrante cujo nome os anjos do céu repetem agora docemente: Leonor.
Tudo,
até o sussurro das cortinas de seda, enchia-me de um terror melancólico. Para
animar-me, disse comigo mesmo: É algum visitante retardatário, nada mais!
E
gritei, sem hesitar: Senhor ou senhora, peço-vos perdão. Dormia quase, quando batestes.
Não ouvi, a princípio, tão de leve o fizestes.
Então,
abri a porta: mas não vi nada, senão as da noite. Olhei mais atentamente na
sombra, porém sempre nada. Era, então, joguete de um sonho? Murmurei o nome de
Leonor. O eco reenviou-me esse nome. E foi tudo.
Tornei
a entrar no quarto; não tardou, porém, que ouvisse bater de novo, de um modo distinto.
Agora
pensei, é na persiana da janela. Esclareçamos esse mistério que turba-me o
coração, e saibamos, se não é senão o vento!
Abri
o postigo; um soberbo corvo lançou-se no meu quarto, batendo graciosamente as
asas. Não me cumprimentou. Entrou em minha casa como na dele, e veio pousar
cheio de majestade, com porte de um lord ou de uma lady, num busto de Palas, acima
da porta.
Não
pude impedir-me de sorrir, diante do modo grave desse pássaro de ébano: Dize-me,
gritei-lhe, qual é nome senhorial, na região noturna de Plutão? Ele respondeu:
“Nunca mais!”
Essa
resposta não tinha sentido algum. Era dado a qualquer um achar à meia-noite, acima
de sua porta, sobre o busto de Palas, um pássaro chamado: Nunca Mais?
O
corvo, porém, pronunciou somente estas duas palavras, de modo que elas encerrassem toda sua alma.
Então eu murmurei baixinho: “já outros amigos têm voado; amanhã ele deixar-me-á
bem como as esperanças me deixaram, absolutamente só...
E o pássaro repetia: “Nunca mais!”
Sem
dúvida, pensei, ele aprendeu esses dois vocábulos com algum senhor infortunado,
tão constantemente abatido pela desgraça, que não tenha querido mais esperar
“nunca mais!”
Coloquei
uma poltrona defronte do corvo e pus-me a buscar no meu espírito o que
pretendia dizer esse triste, magro e sombrio pássaro, com o seu estribilho “Nunca
mais!”
Não
lhe dirigi mais a palavra; seus olhos em flama queimavam-me o coração; sentei-me
olhando para adivinhá-lo. Minha cabeça repousava sobre um coxim de veludo
violeta, docemente iluminado por uma lâmpada que, esta lâmpada que Ela não acenderá mais, oh! nunca mais!
O ar pareceu maia sereno, como perfumado pelo
incensório invisível dos serafins: Oh! Miserável, exclamei, teu Deus enviou-te,
pelos seus anjos o repouso e a nepentes. Bebe! oh bebe essa boa nepentes e
esquece-te dessa Leonor!
O
corvo disse: “Nunca mais!”
Profeta
retorqui-lhe, pássaro do mal, pássaro ou demônio dize-me, eu te suplico, pois que o diabo te envia ao meu lar desolado,
dize-me imploro; ainda há bálsamo na Judá?
O
corvo repetiu: “Nunca mais!”
Proveta,
ave ou demônio, pelos céus, pelo Deus que ambos adoramos, dize, oh! dize à minha
alma, cheia de desgosto, se ela abraçará um dia, no Éden, uma jovem santificada,
uma jovem de beleza deslumbrante e rara, que os chamam Leonor?
E
o corvo: “Nunca mais!”
Pois
que falas assim, bradei enfurecido, vai-te! deixa-me! Vai-te na tempestade da
noite, às sombrias regiões de Plutão. Não deixes aqui uma só pluma negra, para
que não me recorde das palavras horrorosas, que acabas de proferir. Deixa-me sozinho
no meu abandono! Deixa esse busto, retira teu bico do meu coração, vai
projetá-lo fora daqui na maldita sombra!
E
o corvo: “Nunca mais!”
E
o corvo, sem mover-se, nem volitar, conserva-se ainda sob o busto de Palas, no
alto da minha porta. Seus olhos têm o fulgor dos olhos de um demônio que sonha;
minha lâmpada projeta sua maldita sombra no ladrilho da minha câmara.
—
E esta sombra não se extinguirá mais, oh! nunca mais!
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