2/03/2019

Michael Melnik (Conto), de Iba Mendes


MICHAEL MELNIK 

Tinha vinte e um anos quando chegou ao Brasil. Viera da Alemanha, em 1948, terminados os horrores da Segunda Guerra Mundial.

Seu nome era Machael Melnik. Nasceu no dia 27 de maio de 1927, numa pequena cidade do interior da Romênia, filho de uma jovem meretriz, que o concebeu no próprio bordel, onde oferecia seus serviços desde os quinze anos de idade. Não conhecera o pai, que a mãe dizia tratar-se de um soldado do exército nacional, o qual fora defender o país contra a invasão dos russos e que nunca mais retornara.

Durante o período do Estado Nacional Legionário, sob o governo de Ion Antonescu, a Romênia aliou-se a Hitler. Nessa época tinha Michael catorze anos e não nutria de qualquer sentimento nacionalista pelo país onde nascera. O que ele queria mesmo era lutar ao lado dos soldados alemães, pelos quais tinha devotada admiração.

Por ser menor de idade e a Lei não lhe permitir que se alistasse, consultou o padre da cidade, que logo tratou de torná-lo “apto para o combate”, alterando o ano do seu nascimento no batistério. Foi assim que ingressou na Guerra, não propriamente como soldado, mas como ajudante num dos restaurantes que serviam comida ao exército alemão.

Ao fim do conflito, juntou-se ele a um grupo de imigrantes italianos, vindo com estes para o Brasil, onde conheceu a fresca e bela Elisa, uma jovem imigrante alemã, que também viera no fluxo migratório do pós-guerra.

Casaram-se no ano seguinte, por conveniência, sem se amarem. Um estava para o outro como a água para o fogo. Michael era dotado de um gênio tempestuoso, ciumento e sovina. Elisa, ao contrário, era de um temperamento comedido, sem extremos, posto que fosse um pouco gastadeira e essencialmente vaidosa.

Os azedumes tornaram-se constantes já no início do casamento, agravando-se no decorrer dos dias, com permanentes crises de ciúmes por parte dele, que passou a desconfiar da mulher pelos mais simples gestos. Da desconfiança ele transitou para os insultos, e destes para as agressões físicas, que vieram acompanhadas de severas regras, como a proibição de sair de casa sozinha e de conversar com os vizinhos, seja lá quem fosse. Sentindo-se acuada e humilhada na sua dignidade de mulher, ela ameaçava deixar tudo e ir embora para casa dos pais, pois já não aguentava mais aquela vida, ao que ele reagia com uma chuva de impropérios e outras censuras injuriosas.

Era sexta-feira quando chegou e encontrou a casa vazia. Elisa tinha se retirado para o lar paterno, levando consigo roupas e alguns objetos de uso pessoal. Desesperado e com os olhos acesos de ódio Michael decidiu buscá-la e trazê-la de volta, ainda que à força. Entretanto, não se sabe se por temor ou se por alguma estratégia que aprendera na guerra, chegou à casa do sogro com a serena fisionomia de um manso cordeiro. Em vez de gritar e vociferar palavrões, como costumava fazer em seus frequentes acessos de cólera, conteve-se e, num gesto de extrema humildade, ajoelhou-se entre lágrimas aos pés da mulher e lhe implorou perdão. Prometeu-lhe isso e aquilo, ao que ela acedeu, porém, admoestando-o de que seria apenas pela última vez.

Os meses seguintes foram de paz e tranquilidade entre o casal. Michael cumpria exemplarmente seu papel de bom marido, tratando a mulher com um zelo até então nunca visto. E foi nessa atmosfera de harmonia conjugal que veio ao mundo o primeiro rebento, uma linda e robusta menina a quem deram o nome de Inês, que foi uma homenagem da esposa à avó materna, a qual morrera nos arredores de Berlim por ocasião da ofensiva soviética, no início de 1945.

As coisas iam assim até que, num lance repentino, ele começou a implicar com as feições da menina, as quais em nenhum aspecto lhe assemelhavam. A partir daí sobreveio-lhe um profundo agastamento que lhe corroía a alma e lhe fatigava a mente, foi quando aventou a hipótese de que poderia ter sido traído e se encasquetou sobremaneira com essa ideia, ruminando-a dia e noite. Em consequência disso, passou a hostilizar e maltratar a mulher, incriminando-lhe o tempo todo de traição e descaramento. Ela, por sua vez, não se defendia da acusação, limitando-se apenas a chorar resignadamente em seu canto.

E foi nesse ambiente de discórdia doméstica que nasceu a segunda filha. Élida foi o nome que ele mesmo escolheu, sem explicar, porém, as razões da preferência onomástica. A menina tinha as feições dele, os olhos azuis, os cabelos loiros, a testa grande, o queixo partido, entre outros traços físicos. Por isso concentrou nela todo o seu amor paternal, distanciando-se cada vez mais da primogênita, a quem não manifestava qualquer mimo ou apreço.

Nessa mesma situação de desentendimentos decorreram alguns meses, quando ele, sem dar qualquer explicação, anunciou que deixaria a casa. A mulher protestou, implorou-lhe que não fosse, pediu para que não desamparasse as filhas, que estas eram pequenas e que iriam sofrer etc., ao que ele reagiu com total indiferença e desprezo. Saiu de lá levando apenas as roupas e dois pares de chapéus. A pequena chorou durante alguns dias.

Semanas depois, chegou ao conhecimento da mulher que o marido estava entocado num meretrício, onde vivia dissolutamente sob os tratos de uma prostituta velha, uma sexagenária e mãe de santo, muito conhecida no bairro pela maestria dos seus despachos e pela fama de destruidora de lares.

— Faz dele gato e sapato! — diziam as más línguas, ao que ela exprimia com imensa satisfação: — Bem feito, bem feito!...

Ao cabo de quatro meses longe da família, Michael adoeceu de uma infecção genital que lhe tirou a libido e que fez minar todos os seus brios de vigoroso macho. Foi quando deliberou voltar aos braços da mulher, de quem sentiu saudades e um princípio de desejo. Nesse ínterim, porém, ela já havia se mudado para a casa de um parente no interior do Paraná, onde, segundo lhe disseram, tinha se amigado com um imigrante italiano, com o qual vivia feliz e esbanjando dinheiro e saúde.

Triste e desconsolado, comprou ele uma casinha humilde num lugar ermo da cidade, onde passou a viver sozinho e onde todas as noites ruminava seus remorsos e desgostos. Foi ali que prosperou e envelheceu, foi ali onde agonizou e morreu numa solidão desesperada. A filha preferida, comunicada do desastre, chegou na mesma noite de seu passamento. Estava devidamente acompanhada de um bacharel em Direito. Viera assim prevenida para o inventário.

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