Ana de Lisbeth
Ana de Lisbeth era uma moça linda; seu rosto irradiava juvenil alegria. Os
dentes pareciam pérolas finas, os olhos brilhavam como diamantes, diamantes
risonhos. Na dança, os pés muito breves saltavam com maravilhosa ligeireza.
Infelizmente, seus pensamentos eram ainda mais ligeiros. Apesar de inteligente,
deixou-se seduzir por um aventureiro, que em breve a abandonou. Nunca mais
houve notícias de tal homem.
Ana teve um
filho, criança forte e sadia, mas terrivelmente feia; a mãe sentia vergonha do
fruto da sua leviandade e encarregou da criação a mulher do coveiro, sua
vizinha. Depois, entrou como ama de leite em casa de uma condessa.
No opulento
palácio, deram-lhe um quarto elegante; deram-lhe também vestidos de veludo e de
seda. Então, fez-se exigente e embirrenta. Não aceitava observações; a mínima
contradição atacava-lhe os nervos.
O pequeno
conde era delicado como um príncipe, belo como um anjo; ela consagrava-lhe
todos os seus cuidados e caricias. E o seu filho continuava na casa do coveiro;
lá, poucas vezes assobiavam as chaleiras; em compensação, não faltavam más
palavras. O pobre menino estava quase sempre só, ninguém se importava com seus
gemidos; chorava até dormir; quando se dorme, não se sente fome ou sede.
Vaso ruim
não quebra, diz o provérbio; o filho de Ana de Lisbeth não o desmentiu.
Cresceu, cresceu sem conhecer a mãe; o coveiro recebera dinheiro para guardar
segredo.
Terminada a
criação do filho da condessa, despediram a ama, que foi morar na cidade, onde
se fez passar por burguesa honesta, vivendo de rendas, bem vestida, melhor
tratada, donairosa. Abandonara o filho à desgraça, como o pai a havia
abandonado.
O coveiro
tirava do rapaz todo o partido possível. O filho de Ana de Lisbeth passava uma
vida dura, sem vislumbre de esperança; sempre maltratado, suportando frios e
chuvas sem queixume, e como era feio, muito feio, toda a aldeia motejava dele;
ninguém o amava.
Mais tarde,
entrou como grumete numa chalupa miserável, e aí encontrou novos sofrimentos. O
capitão embriagava-se frequentemente, e em tais ocasiões o rapaz sofria uma
chuva de pancadas. O pequeno Lisbeth parecia ter nascido sob má estrela.
Um dia
estourou um vendaval. O capitão mal podia aguentar o leme, e, de repente, uma
tromba d’água envolveu o pobre barquinho e o fez voltear, já sem governo.
— Jesus! Meu
Deus! — gritou o rapaz; e chalupa, capitão e grumete, tudo mergulhou na
voragem.
Ninguém
presenciou o terrível acontecimento; só as gaivotas e os peixes poderiam contar
alguma coisa.
Nenhum
fragmento ficou boiando à tona para indicar onde o filho de Ana de Lisbeth
havia perecido; ademais, a ninguém fazia falta, ninguém sentia saudades dele.
Ana vivia na
cidade; muita gente a tratava por "minha senhora". Gostava de contar
a história da sua mocidade, de quando habitava no palácio da condessa e andava
de carro e conversava com baronesas e damas muito distintas. E não faltavam
elogios ao filho da condessa; era o seu ai,
Jesus! — lindo, lindíssimo, um verdadeiro anjo!
— Vou visitar
o meu menino e o grande palácio campestre onde passei tantos dias de esplendor
— disse ela certo dia. Ele há de lembrar-se de mim, daquele tempo em que me
queria tão ternamente e me rodeava o pescoço com os bracinhos brancos de neve.
Sim, hei de voltar a vê-lo.
Partiu, e
depois de uma longa jornada, ora em diligência, ora a pé, chegou à nobre
residência da condessa. Os criados eram-lhe estranhos, nenhum ouvira falar de
Ana de Lisbeth.
Depois de
ter esperado por muito tempo na antecâmara, um criado lhe abriu a porta do
salão e ela entrou pouco antes da condessa e de seu filho.
A dama
recebeu-a muito bem e dirigiu-lhe palavras muito amáveis; o condezinho estava
alto e delgado, formosos ainda os olhos, a boca, pequena e delicada. Olhou
friamente para Ana de Lisbeth. Sem proferir uma palavra, deixou-se abraçar por
ela com indiferença, desviando-se logo um pouco, e saindo em seguida. Esse foi
o acolhimento que ela teve da sua maior afeição, da criança amada de que se
sentia tão vaidosa.
Retomou o
caminho da cidade, sem poder conter as lágrimas. E, de súbito, um grande corvo
negro como azeviche, crocitando em ásperos gritos, veio pousar num ramo à beira
da estrada.
— Ah! que mau agouro! — murmurou ela — parece mesmo que está gritando para mim; que
desgraça teremos?
E pela mente
correram-lhe negros pensamentos, e sentiu calafrios por todo o corpo.
Pouco
depois, passava ela pela casa do coveiro; a mulher que estava sentada à porta,
disse-lhe:
— Como estás
sadia e bem conservada, Ana de Lisbeth! Tens passado boa vida, sem cuidados e
sem misérias.
— Nem sempre,
nem sempre...
— Nunca mais
houve notícias da chalupa, nem do grumete — continuou a mulher do coveiro. Afogaram-se,
é o mais certo; e tenho pena, porque o rapaz, continuando naquela vida, podia
de vez em quando mandar-me algum dinheiro.
— Ah! Julgas
que morreram afogados? — disse Ana de Lisbeth. E passaram logo para outro
assunto.
Ana estava
ressentida pelo frio acolhimento do condezinho; nada disse, porém, à mulher do
coveiro; queria que toda a gente julgasse ainda que estava em íntimas relações
com o aristocrático palácio.
E de súbito
apareceu outra vez o corvo com o seu crocitar lúgubre.
— Essa ave
negra me quer mal, anda hoje a me perseguir — disse Ana, inquieta e nervosa.
A mulher do
coveiro preparava o café e Ana, deitando-se no sofá, em breve adormeceu.
Viu, então,
no sono agitado, pela primeira vez, aquele com quem nunca sonhara: o filho das
suas entranhas, que naquela mesma casa havia sofrido fome e pancadas, e que
repousava agora no fundo do mar, sabe Deus onde.
Parecia-lhe que
um rapaz, alto e robusto, quase tão formoso como o condezinho, abria a porta e
dizia:
— Aí vem o
fim do mundo, agarra-te bem a mim, tu és minha mãe! No paraíso há um anjo que
só quer te salvar. Segura-te bem, para que ele te leve para o céu.
E sentiu-se
abraçada pelo mancebo; mas logo ouviu-se um grande ruído, como se o mundo
baqueasse, e o anjo elevou-se para o céu, sustentando-a pelas roupagens. Então,
começou uma luta tenaz, pois ao mesmo tempo que o anjo tentava levá-la para
cima, uma multidão de mulheres a segurava pelo vestido, loucas, desesperadas,
clamando em tumulto:
— Nós
queremos salvar-nos, também! Seguremo-la bem! Não a larguemos de modo nenhum!
Por fim,
rasgaram-se-lhe as roupas e Ana de Lisbeth viu-se abandonada do anjo,
despenhada em fundo abismo... e nisso acordou de repente, porque ia caindo do canapé
abaixo. De tal modo a perturbaram aquelas ideias que, a dizer a verdade, não
poderia contar o extravagante sonho; todavia, estava cheia de desconsolo, de
vagos, inexplicáveis sobressaltos.
Tomou uma
chávena de café com a mulher do coveiro e partiu logo, para não perder a
diligência; chegou, porém, atrasada, e só no dia seguinte partiria outra
carruagem. Não quis, contudo, passar a noite em casa do coveiro, e, como havia
esplêndido luar, resolveu ir a pé pela estrada, à beira-mar.
Na campina,
nenhum ruído; nem o coaxar das rãs, nem os assobios das corujas, nem mesmo o
brando marulhar das pequenas vagas. Naquele silêncio, havia um certo quê de
solene, de lúgubre.
Ana
caminhava; seguia resoluta pela estrada; a princípio, sem pensar em coisa
alguma; os pensamentos, porém, nunca abandonam completamente a mente humana. Às
vezes parecem adormecer, mais nada. Há muitas pessoas sempre tranquilas porque
sabem que nada têm a temer das leis, da justiça de seu país; não pensam nas
contas severas que têm de prestar ao Supremo Juízo das suas ações boas ou más,
até das mais ocultas. Ana de Lisbeth era assim: passava por pessoa honesta e
boa, e isso era-lhe o suficiente.
De súbito,
parou para ver um objeto que se destacava na praia; era um chapéu velho,
provavelmente arremessado pelo mar.
Depois de
ter examinado o chapéu por um instante, recomeçou a caminhar e estacou de novo
ante um objeto mais singular: julgou ver o corpo de um homem estendido sobre
uma pedra comprida. Um calafrio de terror lhe percorreu o corpo. Tentou fugir;
as pernas tremiam-lhe. E nada havia que temer; era apenas a sombra de uns altos
caniços projetada pelo luar.
Pouco a
pouco, porém, o pavor se apoderou dela e, agora, os seus pensamentos excitados
concorriam para essa impressão.
Em criança,
ouvira falar em fantasmas do mar, das almas penadas cujos corpos, não tendo
sido enterrados, apareciam aos viajantes, agarrando-os para que os levassem ao
cemitério e os cobrissem de terra sagrada.
— Segura!
Agarra! — gritavam sempre os lúgubres fantasmas.
Essa
lembrança recordou-lhe o pesadelo, o grito das mulheres que a tinham segurado,
o jovem querendo levantá-la ao momento supremo. Seu filho, a criança que ela
nunca amara, que havia esquecido, e que havia perecido tão miseravelmente no
naufrágio, não poderia voltar como espectro a bradar também: Segura! Agarra!
Leva-me para a terra sagrada?
Esses
terríveis pensamentos caíram como marteladas no coração de Ana de Lisbeth; a
custo, respirava; inquieta, olhava o mar; uma névoa espessa surgia das águas e
vinha rodear as árvores e os arbustos, dando-lhes aspectos inesperados.
Olhou para a
lua, e o astro melancólico pareceu-lhe agora frio e esquálido como um rosto
cadavérico; e no silêncio soturno do mar e na campina surgia, sim, surgia
agora, uma voz indefinida, nem grito nem gemido, mas pronunciando rápida e
constantemente:
— Segura!
Agarra! Leva-me para a terra sagrada!
Seria a alma
errante de seu filho? Da criança nunca amada que se perdera no mar?
Ana de
Lisbeth apertou o passo. Ia nervosa, febril. Resolveu tomar a direção da
igreja; ali, talvez, encontraria a paz; tentou seguir o caminho mais curto, mas
sentiu, então, um peso sobre os ombros e a tal voz, agora mesmo próxima do
ouvido, a murmurar, como num sopro a repetir sem cessar:
— Enterra-me, enterra-me!
Ana
tropeçou, ajoelhou-se e por um bocado caminhou de rastos. Se o túmulo fosse o
esquecimento de tudo, ela mesma teria aberto o seu túmulo. Levantando-se, viu,
então, quatro cavalos relinchando e vomitando fogo pelos olhos e ventas; puxavam
um carro fúnebre, e no carro ia sentado um malvado senhor que, havia um século,
muitos crimes cometera naquele local.
Todas as noites,
à hora dos fantasmas, rezava a tradição, ele entrava no velho castelo, e o seu
rosto, em vez da palidez da morte, era escuro como carvão.
Passando,
acenou a Lisbeth, dizendo-lhe:
— Cautela! Em
breve esquecerás do filho e poderás andar como eu nesta carruagem brasonada.
Impelida
pela coragem do desespero, Ana desatou a correr e entrou no cemitério. Estava
coberto de cruzes e de corvos negros como azeviche, que, ao luar, agora fraco, apenas
se podiam distinguir.
— A mãe dos
corvos! Olhem a madrasta! — crocitaram as aves fúnebres, avistando Ana de
Lisbeth.
Um pavor
imenso se apoderou da mulher; temia ser transformada numa daquelas aves, se a
sepultura não fosse aberta logo. Deitou-se sobre o solo e começou a abrir a
cova; a terra estava dura; em breve, ficou com as mãos ensanguentadas. O
queixume do fantasma continuava a soar nos seus ouvidos. Receava ouvir o cantar
do galo ou de ver o primeiro raio do sol, pois, em tal caso, estaria perdida.
Ora, ao
cantar do galo, ao romper da aurora, só havia metade da cova; sentiu uma gélida
mão pousar-lhe sobre a fronte, e outra no coração.
— Metade de
uma sepultura não basta! — gemeu o fantasma, que logo sumiu no fundo do mar.
Ana de
Lisbeth caiu sem sentidos, como morta.
Naquela
manhã, dois camponeses encontraram-na assim; não no cemitério, mas na praia
junto do mar; ela abrira um buraco na areia e estava com os dedos feridos pelos
seixos.
Ana padeceu
prolongada enfermidade; as angústias da consciência despertada pelo temor de Deus
transformaram-lhe a cabeça; acreditava ter só metade da alma; o filho havia-lhe
arrebatado a outra metade, levando-a para o fundo do mar; sem ela, não poderia
jamais entrar no Reino da Graça.
A custo a reconheceriam agora; só falava do espectro
do mar que devia enterrar em terreno sagrado, para ganhar a sua alma; muitas
vezes passava a noite à beira-mar, à espera do fantasma; um dia, desapareceu.
Na tarde
desse dia, quando o sineiro entrou na igreja, à hora do Angelus, viu Ana de Lisbeth de joelhos ante o altar. Estava fraca,
muito curvada; mas os olhos luminosos, o rosto risonho e os últimos raios do
sol, caindo sobre a Bíblia aberta, fizeram sobressair estas palavras do profeta
Joel:
"Rasgai
os vossos corações e não as vossas túnicas; lembrai-vos sempre do senhor".
Foi acaso,
dirá alguém; mas há muitos acasos como esse.
Contou ela,
depois, que durante a noite lhe aparecera a alma do filho.
"É
verdade — ouvira ela — que tu só me cavaste metade da sepultura; mas, faz agora
um ano que me sepultaste inteiro no teu coração, e é aí que as mães guardam bem
os filhos".
E,
entregando-lhe a outra metade da sua alma, conduzira-a à igreja.
— Agora —
acrescentou ela — agora estou na Casa do Senhor, onde se é sempre feliz.
Quando o sol
mergulhou não horizonte, a alma de Ana de Lisbeth subiu à morada onde nada
temem os que muito se arrependeram e muito padeceram.
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Tradução anônima:
Revista Carioca, 18 de setembro de 1947.
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