2/28/2019

A morte do cavalo (Conto), de Leon Tolstoi




A morte do cavalo

A manhã era calma e clara; os cavalos foram conduzidos para os campos.


Kholstomer, o velho cavalo doente, ficara na estrebaria.


Um homem estranho, magro, bronzeado, sujo e coberto com um casaco cheio de manchas pretas, apareceu.


Era o tratador. Puxou o cavalo pela brida, e, sem olhá-lo, partiu. Kholstomer seguiu-o tranquilamente, arrastando como sempre as pernas doentes, e batendo na palha o corpo descarnado.


Uma vez saído do portão o cavalo virou-se do lado do paço, porém o tratador puxou-o novamente, dizendo:


— Não vale a pena.


O tratador e o cocheiro Vaska que os seguia, chegaram a uma clareira, atrás do depósito de tijolos e aí pararam como se este lugar ordinário lhes apresentasse um interesse particular.


O homem magro, dando a brida a Vaska, arrancou o casaco, arregaçou as mangas e tirou das botas uma pedra de amolar e uma faca.


O cavalo espichou o pescoço para morder a brida, porém não pôde atingi-la. Suspirou e fechou os olhos. Deixou cair o beiço, mostrou os dentes amarelos e adormeceu embalado pelo barulho da faca que amolavam. A perna doente tremia.


Do repente sentiu que o agarravam e levantou a cabeça. Abriu os olhos.


Dois cães estavam na sua frente, um farejava do lado do tratador, o outro considerava o cavalo como o principal ator do que ia passar-se. Kholstomer, olhando-os, pôs-se a esfregar a face na mão que o agarrava.


— É para curar-me — pensou. — Que seja!


Com efeito sentia que lhe faziam qualquer coisa na garganta. Isto fez-lhe mal: tremeu, dobrou os joelhos, porém segurou-se e esperou o que ia seguir-se...


O que se seguiu foi um líquido que corria rapidamente sobre a garganta e o peito. Um suspiro prolongado escapou-lhe, sentiu-se aliviado, muito aliviado...


Aliviado do fardo da vida!


Fechou as pálpebras e deixou cair a cabeça; ninguém a segurou. As pernas tremeram, o corpo sacudiu-se; o que sentiu era antes a admiração do que o medo...


Tudo lhe parecia insólito!


Admirou-se, quis correr, pular... Mas as pernas mexendo-se no mesmo lugar embaraçaram-se; sentiu-se escorregar, quis andar, porém caiu sobre o peito e sobre o lado esquerdo.


O tratador esperou o fim das convulsões, espantou os cães que queriam se aproximar; agarrou o cavalo pelas pernas, virou-o de costas, e dizendo a Vaska para segurá-lo principiou o escorchamento.


— Assim mesmo era um cavalo! — exclamou o cocheiro.


— Se estivesse mais gordo a pele valeria mais.


À noite passaram os cavalos, e ao longe, ao lado esquerdo, viram marcas vermelhas, e junto cães que se mexiam e corvos que voavam. Um cão com as patas sobre o cadáver arrancava com barulho, sacudindo furiosamente a cabeça, o que as pernas presas tinham agarrado. Um burrinho parou, estendeu o pescoço e ficou muito tempo farejando o ar nesta posição.


De madrugada, num dos lados da velha floresta, lobos berravam alegremente. Eram cinco, quatro quase iguais em tamanho e um pequeno, tendo a cabeça maior que o corpo. A loba, magra, com ar zangado, arrastando o ventre cheio, cujas mamas pendiam até ao chão, saiu de um espinheiro e veio deitar-se junto aos lobinhos. Estes formaram meio círculo diante dela, chegou-se ao menor, abaixou a cauda e inclinando o focinho, fez uns movimentos convulsivos; abriu aquela boca cheia de dentes pontiagudos e depois de um último esforço, vomitou um grande pedaço de cavalo.


Os lobos maiores iam saltar sobre a carne, mas a loba os conteve com um gosto ameaçador e deu tudo ao pequeno. Este, encolerizado, agarra, rosnando, a carne e põe-se a devorá-la. O mesmo fez a loba para o segundo, o terceiro, enfim para todos os cinco. Então somente estendeu-se junto deles a fim de descansar.


Oito dias depois, atrás do depósito dos tijolos, não existia mais do que o crânio e os dois úmeros do velho cavalo; o resto tinha desaparecido. No verão o mujique que ajuntava os ossos para os refinadores, carregou com o crânio e os úmeros, para os quais acharam também uma utilidade.


O corpo morto de Serpoukovsky (antigo dono do cavalo), que andava no mundo comendo e bebendo, foi enterrado pouco tempo depois. Nem a pele, nem a carne, nem os ossos tiveram serventia.


Como este corpo morto que andava no mundo tinha durante vinte anos pesado sobre outros,  a sua morte foi só mais um encargo. Há muito tempo que não era mais útil, há muito tempo que incomodava o mundo. E, entretanto, os “mortos” que enterravam os mortos julgaram necessário vestir este corpo com um bonito uniforme e bonitas botas, deitá-lo num caixão novo, colocar este caixão num outro de chumbo, transportá-lo até Moscou, e ali remexer as velhas ossadas para enterrar bem no meio este mísero corpo, comido pelos vermes, mesmo no seu belo uniforme e botas envernizadas, e cobrir tudo com terra.



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Diário de Belém, 7 de abril de 1887.
Pesquisa, transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)

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