A morte
do cavalo
A manhã
era calma e clara; os cavalos foram conduzidos para os campos.
Kholstomer,
o velho cavalo doente, ficara na estrebaria.
Um homem
estranho, magro, bronzeado, sujo e coberto com um casaco cheio de manchas
pretas, apareceu.
Era o
tratador. Puxou o cavalo pela brida, e, sem olhá-lo, partiu. Kholstomer
seguiu-o tranquilamente, arrastando como sempre as pernas doentes, e batendo na
palha o corpo descarnado.
Uma vez
saído do portão o cavalo virou-se do lado do paço, porém o tratador puxou-o
novamente, dizendo:
— Não
vale a pena.
O
tratador e o cocheiro Vaska que os seguia, chegaram a uma clareira, atrás do
depósito de tijolos e aí pararam como se este lugar ordinário lhes apresentasse
um interesse particular.
O homem
magro, dando a brida a Vaska, arrancou o casaco, arregaçou as mangas e tirou
das botas uma pedra de amolar e uma faca.
O cavalo
espichou o pescoço para morder a brida, porém não pôde atingi-la. Suspirou e
fechou os olhos. Deixou cair o beiço, mostrou os dentes amarelos e adormeceu
embalado pelo barulho da faca que amolavam. A perna doente tremia.
Do
repente sentiu que o agarravam e levantou a cabeça. Abriu os olhos.
Dois cães
estavam na sua frente, um farejava do lado do tratador, o outro considerava o
cavalo como o principal ator do que ia passar-se. Kholstomer, olhando-os,
pôs-se a esfregar a face na mão que o agarrava.
— É para
curar-me — pensou. — Que seja!
Com
efeito sentia que lhe faziam qualquer coisa na garganta. Isto fez-lhe mal:
tremeu, dobrou os joelhos, porém segurou-se e esperou o que ia seguir-se...
O que se
seguiu foi um líquido que corria rapidamente sobre a garganta e o peito. Um
suspiro prolongado escapou-lhe, sentiu-se aliviado, muito aliviado...
Aliviado
do fardo da vida!
Fechou as
pálpebras e deixou cair a cabeça; ninguém a segurou. As pernas tremeram, o
corpo sacudiu-se; o que sentiu era antes a admiração do que o medo...
Tudo lhe
parecia insólito!
Admirou-se,
quis correr, pular... Mas as pernas mexendo-se no mesmo lugar
embaraçaram-se; sentiu-se escorregar, quis andar, porém caiu sobre o peito e
sobre o lado esquerdo.
O
tratador esperou o fim das convulsões, espantou os cães que queriam se
aproximar; agarrou o cavalo pelas pernas, virou-o de costas, e dizendo a Vaska
para segurá-lo principiou o escorchamento.
— Assim
mesmo era um cavalo! — exclamou o cocheiro.
— Se
estivesse mais gordo a pele valeria mais.
À noite
passaram os cavalos, e ao longe, ao lado esquerdo, viram marcas vermelhas, e
junto cães que se mexiam e corvos que voavam. Um cão com as patas sobre o
cadáver arrancava com barulho, sacudindo furiosamente a cabeça, o que as
pernas presas tinham agarrado. Um burrinho parou, estendeu o pescoço e ficou
muito tempo farejando o ar nesta posição.
De
madrugada, num dos lados da velha floresta, lobos berravam alegremente. Eram
cinco, quatro quase iguais em tamanho e um pequeno, tendo a cabeça maior que o
corpo. A loba, magra, com ar zangado, arrastando o ventre cheio, cujas mamas
pendiam até ao chão, saiu de um espinheiro e veio deitar-se junto aos lobinhos.
Estes formaram meio círculo diante dela, chegou-se ao menor, abaixou a cauda e
inclinando o focinho, fez uns movimentos convulsivos; abriu aquela boca cheia
de dentes pontiagudos e depois de um último esforço, vomitou um grande pedaço
de cavalo.
Os lobos
maiores iam saltar sobre a carne, mas a loba os conteve com um gosto ameaçador
e deu tudo ao pequeno. Este, encolerizado, agarra, rosnando, a carne e põe-se a
devorá-la. O mesmo fez a loba para o segundo, o terceiro, enfim para todos os cinco. Então somente estendeu-se junto deles a fim de descansar.
Oito dias
depois, atrás do depósito dos tijolos, não existia mais do que o crânio e os
dois úmeros do velho cavalo; o resto tinha desaparecido. No verão o mujique que ajuntava os ossos
para os refinadores, carregou com o crânio e os úmeros, para os quais acharam
também uma utilidade.
O corpo
morto de Serpoukovsky (antigo dono do cavalo), que andava no mundo comendo e
bebendo, foi enterrado pouco tempo depois. Nem a pele, nem a carne, nem os
ossos tiveram serventia.
Como este
corpo morto que andava no mundo tinha durante vinte anos pesado sobre outros, a sua morte foi só mais um encargo. Há muito tempo que não era mais útil,
há muito tempo que incomodava o mundo. E, entretanto, os “mortos” que
enterravam os mortos julgaram necessário vestir este corpo com um bonito
uniforme e bonitas botas, deitá-lo num caixão novo, colocar este caixão num
outro de chumbo, transportá-lo até Moscou, e ali remexer as velhas ossadas para
enterrar bem no meio este mísero corpo, comido pelos vermes, mesmo no seu belo
uniforme e botas envernizadas, e cobrir tudo com terra.
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Diário de Belém, 7 de abril de 1887.
Diário de Belém, 7 de abril de 1887.
Pesquisa,
transcrição e adaptação ortográfica: Iba Mendes (2019)
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