Aquele
homenzarrão de ventre farto, bigodeira atrevida, sorriso sardônico, olhos
claros, gargalhada franca, lembrando um "bersaglière" alegre e
bulhento, devorador de salame e esvaziador de garrafas de Chianti, foi o Emílio de Menezes que o Rio de Janeiro conheceu,
amou e temeu. Esse, o quarto ato do drama de sua vida inquieta e tumultuosa.
Drama em cinco atos.
O
primeiro ato é o de sua adolescência. Aluno do professor Brandão Proença, avô
do fulgurante poeta Francisco Leite. Era magro, pálido, cabelos negros
espalhados pela testa larga, as pernas assemelhadas a um X. Tipo embrionário de
"romântico 1830". Tinha, entre os colegas, o apelido de "doutor
mosquito". Mordia e cantava. Prognóstico de um destino?
No
segundo ato ele aparece já com um buço petulante, a perambular pelas ruas de
Curitiba, ensaísta da ironia e candidato ao Parnasianismo. Por essa época apareceu
na capital paranaense um violinista húngaro, que deu alguns concertos no antigo
teatro São Teodoro. Emílio assistiu-os. E impressionado com a técnica do artista,
escreveu e publicou o seu primeiro
soneto, que é este:
O VIOLINO
São, às vezes, as surdinas
Dos peitos apaixonados
Aquelas notas divinas
Que ele desprende aos bocados...
Tem, ora os prantos magoados
Dessas crianças franzinas,
Ora os risos debochados
Das mulheres libertinas...
Quando o ouço vem- me à mente
Um prazer intermitente...
A harmonia, que desata,
Geme, chora... e de repente
Dá uma risada estridente
Nos allegros da "Traviata".
Esses
quatorze versos trazem a data de 1884. Publicou também, nesse ano, um
improviso, a que não acrescentou a assinatura. Trata-se de uma sátira contra um
coronel do exército, comandante do regimento de artilharia, então alojado em Curitiba.
Era um oficial valente e culto, mas, como Emílio, boêmio incorrigível, e de Emílio rival no enxugar copos de chopes.
Houve entre eles uma desavença, e o poeta paranaense chispou-lhe esta ferroada:
Aquele negro capacho
Caiu
de uma escada
abaixo
Em noite de carraspana...
Mentiu, depois, que a bicheira
Que rareou-lhe a cabeleira.
Fora uma bala certeira
Da pífia gente solana.
Injustiça
do Emílio. Esse oficial havia se portado bravamente na guerra do Paraguai. As
medalhas militares que conquistara, eram brilhantes atestados do seu heroísmo.
O
terceiro ato, que Emílio de Menezes representou, é marcado pelas pompas e
grandezas. Nesse, é de marcante relevo o homem de sociedade. Emílio
apresenta-se sempre irrepreensivelmente trajado. Alto, esguio, aprumado, era de
ver-se a elegância que ele punha na sua pessoa e nos seus gestos. Envolvido no
turbilhão do "encilhamento", o desenfreado jogo da bolsa que caracterizou os primeiros dias da nossa
vida republicana, fazia dinheiro à rodo, e gastava furiosamente com os amigos,
com os conhecidos e com os próprios desconhecidos. Proprietário da um lindo
chalé em Petrópolis, ele, aos domingos, mãos enluvadas, guiava destramente a
sua vistosa carruagem pelas ruas e avenidas da encantadora cidade das hortênsias.
Eis, porém, que o governo chefiado por Lucena resolve acabar com essa babel de
negócios, que especulava e se transformava em grandes fortunas.
Cassada
a especulação, começou a derrocada. Foi o doloroso reverso da medalha. E os
ricos de ontem se fizeram os pobres do dia seguinte. Emílio foi levado neste
arrastão. E quanto mais se lhe esvaziavam os bolsos, mais aumentava em banhas. Daí
vai-se ao quarto ato. Esse foi o mais longo do drama. E o mais conhecido por
todo o Brasil. Nele surge o Emílio dos epitáfios, dos anúncios em quadrinhos,
das sátiras dos Pingos e Respingos,
do Correio da Manhã, mas também o
Emílio parnasiano insigne, burilador de joias do mais alto preço, o cantor
admirável da "Romã" e do "Helianto", o lírico soberbo do "este
leito que é o meu, que é o teu, que é o nosso leito", o intérprete suave
dos "Três olhares do Maria". O Emílio temido e admirado. O boêmio assíduo
da Paschoal e da Colombo.
O palestrante sempre interessante, de uma mordacidade terrível, mas ao mesmo
tempo da uma bondade cativante.
O
quinto ato é a melancolia, é a tristeza, é o desmoronamento daquela robustez física,
que parecia de uma solidez capaz de desafiar um século de resistência. Doloroso
o lento declinar de um crepúsculo sombrio... Mas o espírito com a mesma
vivacidade e a mesma beleza. Doente da "wiskite aguda", como ele mesmo
denominava sua enfermidade, jamais deixou de ter nos lábios um sorriso, embora por vezes, cheio
de amarguras. Os médicos que o assistiam, resolveram fazer-lhe uma punção para aliviá-lo
de atrozes padecimentos. Entre os poucos amigos presentes à cirurgia,
encontrava-se um que nunca o abandonou: José Pires Brandão, o generoso. E o
enfermo vendo que lhe escorria pelo ventre um líquido claro, chamou a atenção
dos amigos. Vejam vocês a ironia das
coisas! Sai-me da barriga um líquido que nunca bebi: água!
Foi
esta a última o acerba piada de Emílio de Menezes...
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LEÔNCIO CORREA
Revista "Fon-Fon", 14 de
setembro de 1939.
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